Sentimentos: Funções da sociabilidade

Sentimentos1
Funções da sociabilidade
(Lucia Maria Salvia Coelho)

Apego:

Já podemos observar a manifestação do apego entre as aves e, particularmente, entre os pombos, animais facilmente domesticáveis. Nos animais superiores, encontramos a expressão deste sentimento básico tanto entre os indivíduos da mesma espécie como entre o animal sub-humano e o homem que o criou. Graças ao apego, torna-se possível o amestramento dos animais e evidenciam-se as manifestações de solidariedade entre eles.

Na criança pequena, o apego aparece com grande carga de individualidade. Esse sentimento resulta da própria experiência direta da criança com o meio ambiente e sua expressão não se confunde com a manifestação do conhecimento intelectual. Assim, o apego, como todo sentimento, acompanha-se de um valor emocional: o bebê pode sentir o amor materno sem compreendê-lo. Mesmo entre os adultos, a ligação afetiva expressa através do apego assume um caráter pouco objetivo, difuso e, no entanto, com elevada carga emocional. 

Logo após o nascimento, as reações instintivas do ser humano são regidas pelo sentimento do apego. Esta afirmação da participação do apego nas fases iniciais do relacionamento interpessoal resulta apenas de uma inferência, pois que não permite uma verificação direta. Graças a um processo empático, o adulto atribui determinadas reações do comportamento infantil como sendo uma manifestação do apego. O instinto nutritivo que prevalece nesta fase inicial representa o principal estímulo à expressão deste sentimento básico. Assim a criança sente necessidade de alimento e de cuidados e, então, apega-se ao adulto, que lhe proporciona sua satisfação instintiva. E, nessa época, a noção de realidade resulta do apego aos elementos ambientais que satisfazem as necessidades nutritivas da criança, porém esta noção não atinge o nível da abstração, pois as áreas cerebrais correspondentes ainda não estão amadurecidas. 

O apego corresponde ao sentimento predominante na fase inicial do desenvolvimento humano, entretanto, ele permanece ativo durante toda existência individual. Este sentimento se manifesta em vários níveis do comportamento subjetivo e objetivo.

Inicialmente, a criança se apega de modo indiferenciado aos seres e aos objetos que lhe proporcionam satisfação. Ela ainda não conseguiu distingui-los entre si e nem mesmo ela tem noção de sua própria identidade. Entretanto, mesmo neste nível, ela sente ao mesmo tempo uma sensação do relaxamento após a satisfação de um impulso instintivo e a sensação de conforto, de aconchego, de proteção, que já correspondem às emoções resultantes do sentimento do apego. Em períodos ulteriores e diante de uma situação difícil, o sentimento de apego passa novamente a predominar e ela busca a proteção da mãe ou de pessoas com as quais ela mantém uma ligação afetiva mais intensa. Nesta fase, o apego pode expressar-se através do instinto de posse e o estabelecimento de relações interpessoais ainda é rudimentar, indefinido intelectualmente. Apesar dela não se distinguir como ser autônomo e de não reconhecer a identidade dos demais, a expressão de seus sentimentos acompanha-se de intensa carga afetiva.

Por estar mais diretamente ligado às tendências instintivas, o apego revela-se como uma natureza mais conservadora e egocêntrica. Este sentimento pode manifestar-se como resistência a mudanças, como medo de progredir. No caso de prevalência do apego, o indivíduo revela relutância em abandonar sua situação atual, sua casa, sua terra natal, ou teme mudar de trabalho ou de concepção de existência. Ele evita arriscar-se, teme o que lhe é desconhecido e tende a apegar-se em sua situação atual.

Deste modo, o apego pode traduzir tanto em seu caráter de ligação afetiva profunda e intensa com os demais indivíduos, facilitando a “empatia”, o contágio afetivo, ou a ligação de dependência e de posse em relação ao outro ser, como sua expressão de relutância na busca da afirmação pessoal e na realização do progresso social.

Em nível mais diferenciado de desenvolvimento individual, o sentimento de apego se combina com o da bondade e perde assim seu caráter predominantemente individual e irracional.

Veneração

A expressão da veneração corresponde à disposição do ser humano em subordinar-se voluntariamente a valores extra-individuais. Esta necessidade de participar de um universo mais amplo, de compartilhar com os demais determinados valores, aspirações, modos de conduta e de pensamento, ainda possui componente de individualidade que corresponde à necessidade de aprovação.

A manifestação deste sentimento exige já um certo nível de amadurecimento biológico e um funcionamento neurofisiológico mais diferenciado. A veneração e o apego são órgãos que se assistem mutuamente, sobretudo na fase inicial de assimilação dos valores grupais. Este sentimento corresponde a uma fonte poderosa de estímulos para o comportamento humano. Ele se manifesta em várias formas de comportamento cotidiano, entretanto, nunca se traduz isoladamente, mas sempre associado a outras funções psíquicas. Assim, por exemplo, o sentimento complexo de lealdade à família, à religião, à pátria, ou mesmo à gang, possui como função primordial o sentimento de veneração.

A fase em que predomina o sentimento de veneração corresponde ao momento crítico de aculturação individual. Consideramos cultura como um corpo organizado de padrões de comportamento que se transmite pela tradição e que é característico de um grupo definido de pessoas. Assim, a cultura define o que é “próprio” e o que é “impróprio” no comportamento. As sanções culturais e os tabus, embora possam ser dirigidos às funções fisiológicas primárias, referem-se predominantemente aos modos de se estabelecer os diversos relacionamentos humanos. A veneração é um sentimento indispensável à harmonia psíquica que decorre do ajustamento social. Em sua expressão individual, este sentimento é responsável pelo desenvolvimento dos auto-ideais e das aspirações de existência. Neste sentido, ele se manifesta como sentimento religioso, como amor à natureza ou como respeito aos valores éticos. 

A importância da assimilação dos valores culturais consiste na necessidade de o indivíduo sentir-se como membro da comunidade, como uma parte da coletividade. Tal sentimento proporciona segurança emocional que é indispensável ao estabelecimento da autoafirmação. Enquanto o sentimento de apego faz com que o indivíduo se ligue predominantemente aos valores que lhe são imediatos, presentes, o sentimento da veneração faz com que o indivíduo atribua maior importância ao passado cultural. 

De modo análogo ao que se passa com os demais sentimentos, a veneração, que implica em um processo de socialização, traduz-se de modo diverso, conforme a fase do desenvolvimento ontogenético. Assim de início, ela se apresenta como submissão, de ordem predominantemente passiva, aos valores do ambiente. Nessa fase, a criança imita os pais e os adota como modelo de conduta ideal. Ela ensaia seus principais papéis sociais, através dos jogos em grupo, quando começa a partilhar com os demais as mesmas regras de conduta e as mesmas emoções de alegria ou de fracasso. Nota-se que todo o aprendizado decorre basicamente da veneração, ou mais precisamente, o nível elementar de aprendizagem depende da fusão dos sentimentos de apego e veneração – que presidem o contato indispensável do adulto com o meio social – e que resulta da disposição a captar os valores externos.

 O sentimento de veneração apresenta uma direção inversa, embora não necessariamente conflitiva, àquela das necessidades egoístas. Enquanto estas últimas impelem o indivíduo para o desenvolvimento de sua autonomia pessoal, a veneração estimula a subordinação do indivíduo a um universo mais amplo, onde ele assume apenas uma posição de um dos membros participantes. Apenas com o desenvolvimento do altruísmo, estas tendências gerais – autocêntricas e alocêntricas – encontram uma síntese harmônica: o ser humano atinge sua autoafirmação e ao mesmo tempo a sua capacidade de dar de si.

A evolução do sentimento de veneração supõe já uma participação ativa no processo de seleção, de assimilação e de adoção dos valores grupais. Deste modo, o indivíduo não assimila os valores sociais em si, mas tal como ele os interpreta. Uma função simples que em nível elementar surge com respeito absoluto, admiração dos valores externos que neste caso são considerados como “superiores”, evolui através do estabelecimento de relações interpessoais cada vez mais complexas e mais diferenciadas, até atingir as concepções de ordem mais abstrata e geral.

Bondade, amor universal ou altruísmo

Este sentimento caracteriza-se basicamente pela capacidade de dar de si, pelo estabelecimento de uma ligação eferente, espontânea e criativa para com o ambiente. A expressão plena do amor universal supõe o estabelecimento adequado na noção de própria identidade e capacidade pessoal, implica no conhecimento do lugar que o indivíduo ocupa em relação ao ambiente físico e social; supõe o amadurecimento da elaboração lógica e a adoção consciente de normas de conduta pessoais, de atitudes básicas com relação ao meio social. Mas, este sentimento se acompanha sobretudo de um desprendimento moral e de aceitação da responsabilidade social e do respeito pelos sentimentos e pelas convicções alheias. O indivíduo capaz de desenvolver plenamente este sentimento atinge o grau mais elevado de socialização e consegue uma integração harmônica das funções da personalidade. 

Seu comportamento se caracteriza pela flexibilidade de ação e pela capacidade de transformar ativamente o ambiente, promovendo assim o progresso social.

Deste modo, a bondade é a função afetiva que estabelece o contato mais direto com o meio externo, e de um modo geral mais fecundo. A bondade e o instinto nutritivo representam os polos extremos do interesse, respectivamente, em relação ao ambiente social e em relação ao meio biológico interno. Os três órgãos simpáticos ligam-se apenas de modo indireto com a vida nutritiva, através de suas relações com as inclinações egoísticas.

Graças ao amadurecimento psicológico, o indivíduo sente-se capaz de exercer uma crítica construtiva das condições ambientais e, em particular, dos sentimentos alheios. Ele já conhece sua responsabilidade como agente social. Neste nível, o indivíduo já não busca apenas a aprovação alheia e nem se satisfaz em submeter-se passivamente aos valores coletivos, mas sente-se impelido a contribuir para o progresso social.

Este sentimento já se manifesta em fases mais precoces do desenvolvimento individual – a criança revela uma tendência espontânea em dar seu amor aos demais.

Além disso, este sentimento atua de modo indireto na evolução dos sentimentos mais básicos e na própria expressão intelectual e nas disposições conativas.

O amor universal desenvolve-se a partir da autoafirmação e do julgamento objetivo das próprias capacidades e ele depende do interesse real pelos outros seres humanos e pelo respeito pelos sentimentos alheios, que são percebidos como características do outro e não necessariamente coincidentes com o próprio modo de pensar e de sentir do indivíduo que ama. Como expressão atuante no processo intelectual, este sentimento altruísta estimula o próprio progresso científico e cultural do ser humano.

Quanto à bondade não se desenvolve suficientemente, em decorrência de uma deficiência no processo de integração social, o indivíduo tende a expressar sua afetividade, através da necessidade de domínio e da necessidade de aprovação. Neste caso, o relacionamento interpessoal pode assumir um feitio de troca de interesses materiais em termos de meios e fins.

  1. Apostila produzida na Faculdade de Medicina de Jundiaí, como complemento ao curso de Psicologia Médica, para o curso de Psicologia Médica para os médicos residentes em Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Jundiaí e para o Curso de Teoria da Personalidade para a Sociedade Rorschach de São Paulo. Composta em agosto de 1978. Já considerada em parte superada por sua autora que já reescreveu o tema sob novas perspectivas. No entanto, eu, Roberto Fazzani redigitalizei e formatei o grupo de apostilas ao qual esta pertence pois poderão ser úteis na compreensão inicial da Teoria Sociológica da Personalidade por nós adotada. ↩︎