Funções psíquicas e tronco cerebral.

FUNÇÕES PSÍQUICAS E TRONCO CEREBRAL1

(Prof. Dr. Karl Kleist (Frankfrut a. M.)

A existência psíquica não está somente ligada ao córtex cerebral, mas também finca suas raízes – por assim dizer – até as regiões mais profundas e antigas do cérebro, desde os gânglios do cérebro anterior, o diencéfalo, o mesencéfalo e o rombencéfalo, até mesmo às próprias fronteiras da medula espinhal. As funções psíquicas primordiais correspondem, formam, consideradas em conjunto, o que eu chamo em alemão “das Wesen des Menschen”, o ser vital do homem. 

Quisera antecipar-me a um possível mal-entendido. O fato de que as funções psíquicas estejam ligadas a certas formações cerebrais, não implica nenhuma identidade nem nenhuma ligação causal num sentido materialista, mas tão somente uma correspondência recíproca do tipo de um paralelismo psico-físico.

Assim, pois, podemos distinguir nas mais elevadas e mais recentes funções psíquicas corticais, funções primordiais infracorticais como as de origem exteroceptivo, proprioceptivo e interoceptivo. As funções próprias do ser vital, contrariamente aos processos psíquicos ligados ao córtex cerebral, não se distinguem muito entre si, mas vivem como em estados de conjunto psíquico que conhecemos como consciência, vigília e sono, orientação no espaço e no tempo, temperamentos e outros.

No terreno da enfermidade, tais funções não correspondem a sintomas parciais de déficit, mas se manifestam em unidades de sintomas, que se designam com o nome de síndrome. Entre elas temos o delírio onírico e a síndrome maníaca. 

O “eu” coloca-se muito mais em evidência nos sintomas do ser vital do que nos estados psíquicos diferenciados do córtex, de modo que as atividades exteroceptivas e proprioceptivas aparecem em sua existência e em seu particular, como dependentes das atividades interoceptivas. 

  1. – Devemos considerar como a forma mais profunda do ser vital (WESEN) uma consciência primordial (URBEWUSSTSEIN) que seria a que possui o recém-nascido e a dos sujeitos com deformidades do cérebro com falta do córtex cerebral e de parte do tronco cerebral, como ocorria nas observações de GAMPER e de R. A. PFEIFER. No primeiro destes casos, o cérebro constava do rombencéfalo, cerebelo, mesencéfalo e uma porção muito pequena do diencéfalo, o segundo caso dispunha somente da metade posterior do rombencéfalo. Um ser assim configurado encontra-se totalmente dominado pelas impressões e reações interoceptivas, dependentes do sistema nervoso vegetativo tais como a fome, a sede, a saciedade, o bem-estar e o mal-estar, o repouso e a atividade, estados que ainda não gozam da mudança regular de vigília e sono. O caso de GAMPER só sentia os estímulos cutâneos se se irritasse uma superfície de uma certa extensão. A observação de PFEIFER demonstra que o substrato anátomo-fisiológico da consciência primordial se encontra na porção caudal do rombencéfalo.

Os experimentos realizados por BRESLAUER em cães nos ensinaram que a consciência cessa no momento em que se ofendem mecanicamente os núcleos vegetativos dos nervos vagais, na parte posterior do rombencéfalo. Isto terá como resultado a ausência de consciência consistente na perda da consciência primordial, dependente do rombencéfalo. As observações que se puderam levar a cabo em ambas as guerras mundiais, assim o têm confirmado em numerosos casos. Um soldado ferido por um projétil, que entrou pela bochecha esquerda e atravessou o palato mole para sair à esquerda da terceira vértebra cervical, quase a tocando, referiu-me, por exemplo, que poucos momentos após seu ferimento, sua consciência foi desaparecendo de um modo gradual e que, durante várias horas, não sabe o que ocorreu com ele. Neste caso, a perda da consciência foi provocada por uma comoção do rombencéfalo, que foi transmitida através da coluna cervical e da base do crânio. 

A perda de consciência também pode ser produzida por uma hemorragia no Quarto Ventrículo que leve à compressão dos núcleos vagais situados no fundo da fossa romboidal. ROSENFELD foi o primeiro a comprovar a perda de consciência decorrente de uma hemorragia no Quarto Ventrículo, devido a um tumor de cerebelo. Tive a ocasião de observar um enfermo hipertônico cuja consciência se obscurecia progressivamente nos últimos dias de sua vida, por causa de uma hemorragia neste mesmo ventrículo. 

A síndrome de perda brusca de consciência acompanha-se além disso, de transtornos neurovegetativos como aqueles da frequência cardíaca, da respiração, a ocorrência de palidez, náuseas, vômitos, sudorese profusa, ou seja, manifestações de choque que dependem do bulbo raquidiano. Torna-se fácil compreender o desaparecimento de todas as percepções táteis, assim como as da gustação e da audição, quando falta a consciência, se se leva em conta a situação dos núcleos dos fascículos posterior e dos núcleos dos nervos trigêmeos, glossofaríngeos e acústicos. A alteração dos núcleos vestibulares causa transtornos do equilíbrio e torna impossível a postura ereta. As percepções olfativas estão também ligadas ao rombencéfalo pelos fascículos de Schültz. Não muito distante encontraremos a estação mais caudal dos nervos ópticos, quer dizer, os corpos quadrigêmios anteriores. Os experimentos de KNAUER e de ENDERLEIN em cães, relativos à perda traumática da consciência, demonstraram que as lesões chegavam até os corpos quadrigêmeos e ao mesencéfalo. 

Assim, pois, falta a base das funções psíquicas mais elevadas e localizadas mais frontalmente; pode-se, portanto, se conceber sua total eliminação sem necessidade de recorrer a ações a distância do rombencéfalo sobre o córtex cerebral.

  1. – Num plano mais elevado encontramos o estado de conjunto psíquico, cujo transtorno mórbido provocará uma obnubilação da consciência, chamado estado crepuscular (“Dämmerzustand”). Há estados crepusculares tranquilos e estados crepusculares agitados, e é possível encontrar distintos níveis de obnubilação. A excitabilidade de todas as percepções sensoriais…elaboração e as reações correspondentes estão diminuídas. A elaboração intrapsíquica se encontra inibida em seu maior grau e como consequência, a reprodução das representações (“die Besinnung”) se encontra dificultada. O enfermo crepuscular dificilmente será capaz de reprodução, suas representações lhe chegam com grande lentidão e se desvanecem com lentidão ainda maior, disto tudo resultará a perseveração: o enfermo fica aderido a algum pensamento ou resposta que já tenha produzido anteriormente. 

Nos enfermos arterioscleróticos que apresentavam obnubilação da consciência e perseveração, encontraram-se pequenos amolecimentos no tálamo nas paredes cinzentas do terceiro ventrículo, ou também hemorragias neste ventrículo. Os feridos de cérebro que apresentaram estados crepusculares tinham lesões nas quais participava o diencéfalo ou então se tratava de feridas situadas nas proximidades do diencéfalo, no lobo temporal ou no lobo orbitário. 

A perseveração que se observa em quadros de afasia, de apraxia ou de agnosia é tanto sintoma próprio de um destes transtornos como sinal de uma obnubilação concomitante, às vezes bem leve, que só se manifesta através de uma função debilitada por uma lesão cortical. Isto explica que desapareçam no curso da melhoria de uma afasia sensorial, por exemplo, melhor do que na surdez verbal ou nas parafasias, como tive a ocasião de observar com frequência nos feridos e nos enfermos focais do cérebro. 

Para que estes fenômenos se produzam é necessário que ocorra o estado crepuscular. Esta concepção parece menos surpreendente se se levar em conta que não só os núcleos ventrais sensíveis do tálamo, o corpo geniculado medial e corpo geniculado óptico, estão em relação com o córtex cerebral, e para ser mais preciso respectivamente com a circunvolução central posterior, a temporal profunda, e os lábios da cissura calcarino, mas que também o núcleo médio, o lateral e o pulvinar do tálamo mandam fibras ao córtex, a saber, às zonas psíquicas dos lobos frontal, parietal, temporal e occipital, portadores das representações. As representações primordiais, base das representações mais desenvolvidas do córtex, talvez sejam produzidas nestes últimos núcleos talâmicos. 

  1. – Em um nível ainda mais elevado encontraremos a sede dos estados de sonolência, quer dizer, o sono simples e sossegado e o sono cheio de sonhos e inquieto. 

No sono simples e sossegado estão abolidas as impressões e as reações externo e proprioceptivas. Só se mantém as impressões interoceptivas pertencentes ao eu e às funções vegetativas-nervosas, com certo grau de sobrecarga de excitações parassimpáticas como demonstrou HESS, contrariamente ao que ocorre no estado de vigília, em que predominam as reações simpáticas. Só se observou sono simples e prolongado em feridos cerebrais em caso de feridas profundas, situadas em distintos lugares, que na maioria dos casos, penetravam até o tronco cerebral. Durante a segunda guerra mundial ZUICH comprovou, mediante raios X a existência de pequeníssimos pedaços de projéteis de metralhadora situados no diencéfalo, que tinha sido a causa do aparecimento de um sono mórbido. Os tumores da epífise, os pincalomas2, acompanham-se de sono mórbido como consequência da compressão do aqueduto de Silvius, assim como das paredes do terceiro ventrículo. Certos amolecimentos pequenos devidos à arteriosclerose, situados na substância cinzenta do terceiro ventrículo, na comissura média e no núcleo da lâmina média da capa óptica, permitiram-nos chegar a conclusões mais exatas. HASSLERS afirma que estes núcleos não têm nenhuma relação com o córtex cerebral e que pertencem às partes mais antigas do tálamo. 

Nos quatro enfermos que padeciam de amolecimentos do núcleo da lâmina medialis pude observar sono mórbido prolongado. SCHALTENBRAND  descreveu um caso parecido há pouco tempo e HESS conseguiu produzir sono durante experimentos com corrente elétrica em gatos, nesta mesma região. Assim, ficou confirmada, de uma maneira mais exata, a antiga teoria de TRÖHMER sobre a origem talâmica do sono. Isto explica o sono como uma inibição que parte dos núcleos diencefálicos e vegetativos, suprimindo as funções exteroceptivas e proprioceptivas e, inclusive as representações primordiais impressas no tálamo. 

  1. – O delírio onírico é o correlato mórbido do sono inquieto e cheio de sonhos. Nele está abolida a orientação especial e as alucinações ópticas e tácteis fazem brotar um mundo imaginário e confuso no qual se move o enfermo, atarantado e inquieto. Os fenômenos exteroceptivos sensoriais, motores e intrapsíquicos do ser vital se distanciam mais entre si no delírio onírico do que no estado crepuscular. 

As alucinações representam um déficit psíquico na medida que não faz diferença alguma entre percepção e representação, reduzindo-se os fenômenos correspondentes a uma função primitiva e exclusivamente sensorial, como se pode ver nas crianças e nas pessoas eidéticas. Ainda não se diferencia a realidade de um modo preciso no movimento psíquico e isso faz que o eu participe ainda mais nos fenômenos sensoriais e se sinta impressionado por eles. 

As feridas cerebrais nas quais observei delírios oníricos estavam situadas ou nas proximidades do diencéfalo, ou no lobo temporal ou no lobo orbitário. Os amolecimentos que produziram alucinações oníricas em meus enfermos invadiam o tálamo e as paredes cinzentas do terceiro ventrículo. 

Os tumores que produziam alucinações eram todos tumores desenvolvidos na base do diencéfalo e na hipófise, o que já tinha sido descrito por RECHART.

Não há dúvida de que existe nesta região uma distribuição de funções mais finas e diferenciadas do que indicam os resultados de HESS, já que os experimentos em cães não podem dar informação suficiente sobre fenômenos e processos psíquicos. As alucinações que se produzem nas lesões diencefálicas supõem, além disso, que deve haver representações primordiais relacionadas com o tálamo.

O sono carregado de sonhos e o delírio onírico são o revés da medalha do sono simples e todo delirium tremens se segue de um sono profundo. O contraste destas duas formas de sono manifesta uma lei que seguem as síndromes infracorticais normais e mórbidas, qual seja, que tais síndromes são causadas umas e outras em sua aparência, como pudemos já ver pela oposição entre o estado crepuscular tranquilo e o estado crepuscular agitado. Torna-se manifesto que estas unidades funcionais estejam estabelecidas num mútuo equilíbrio, o qual não se verifica nas funções e nas síndromes corticais. 

O primeiro grupo de fenômenos e de estados de conjunto…que foi descrito até agora se caracteriza por uma consciência limitada ou mais ou menos obnubilada. As formações correspondentes do tronco cerebral começam na parte mais posterior e mais arcaica do cérebro, no rombencéfalo, e se estendem até o diencéfalo. A seu lado temos um segundo grupo de estados vitais normais e patológicos, que se vivem em estado de consciência clara e viril e nos quais o sono está inclusive mais ou menos inibido. Sua correspondência anatômica se estende desde o diencéfalo até os gânglios do cérebro anterior. 

  1. – A síndrome de amnésia temporal é o contrário da orientação temporal do eu, estreitamente ligada ao arquétipo da memória, quer dizer, à memória de fixação (MERKNAHIGKEIT). Como GAMPER demonstrou, está relacionada com a base do diencéfalo, especialmente com os corpos mamilares, ali situados. Pude confirma-lo em casos de tumores da base do diencéfalo, da hipófise e do terceiro ventrículo. Os feridos cerebrais que apresentavam desorientação temporal, perda da fixação mnésica e da recordação de fatos recentes, tinham em sua maioria, lesões na parte anterior da base do cérebro, na região do lobo orbitário, de modo que é possível que os corpos mamilares tivessem sido afetados. Muitos destes feridos tinham além disso, outros sintomas do eixo cerebral. Em vários enfermos que pude observar com arteriosclerose cerebral e sintomas de amnésia temporal, o fascículo mamilotalâmico se encontrava interrompido por pequenos focos de amolecimento no tálamo. O transtorno da memória de fixação se explica em caso de que os processos sensitivos deixam marcas não só no córtex cerebral, mas também no diencéfalo, como indiquei já anteriormente. Tais marcas se registram segundo sua ordem cronológica e podem ser revividas durante um tempo determinado. 

As etapas primordiais da representação recebem sua pauta cronológica das excitações nervosas autônomas que fluem constantemente junto a oscilações periódicas de origem vegetativa, e cujo trajeto vai desde as vias da sensibilidade interior até o corpo mamilar. 

A amnésia, a desorientação temporal e as falsas lembranças cronológicas se produzem através de transtornos do registro dos engramas diencefálicos. 

Frente à síndrome de amnésia temporal, representante da debilitação de certas atividades do ser vital, se acha uma síndrome com aumento parcial das mesmas atividades ou de atividades parecidas conhecida sob o nome de síndrome de KORSAKOFF. Nela se reúnem os transtornos da memória de fixação e da orientação temporal com um excesso de representações vividas como lembranças pessoais: as confabulações. O excesso de representações pode ser considerado como o reverso da dificuldade de evocação (SCHERBESINNLICHKEIT), observado nos estados crepusculares. A facilidade de evocação (LEICHTBESINNLICHKEIT) se expressa também por uma grande riqueza de vocabulário, por uma logorréia sem fuga de ideias e por um excesso de ocupações (VIELGESCHAFTIGKEIT) que se poderia denominar pratorreia. Os feridos cerebrais que apresentavam a síndrome de Korsakoff tinham lesões do lobo temporal que penetravam profundamente, até o diencéfalo. Num caso o diencéfalo tinha sido alcançado diretamente por uma bala que atravessou o olho esquerdo e chegou até a bochecha direita. Isto corresponde às confabulações que eu, PFERSDOF e DÜUS observamos nos tumores do terceiro ventrículo, da hipófise e do tálamo. 

  1. As síndromes da qualidade da impressão são determinadas por certas qualidades particulares da impressionabilidade do eu (“Eindrucksqualitäten) na vivenciação das percepções, das representações, dos raciocínios e dos atos, ou também o aperceber-se de sua ausência. Podemos além disso, distinguir síndromes de aumento ou de debilitação destas qualidades. Na debilitação as percepções parecem sem vida, estranhas, distanciadas, perderam o contato com o eu que as percebe. As representações parecem pálidas e incompletas, só podem se despertar com dificuldade. 

Os atos de falar, de atuar e de pensar perdem sua qualidade de ter sido queridos e o enfermo os sente fluir de um modo automático. Todas estas manifestações, bem conhecidas como despersonalização, constituem uma síndrome que aparece com frequência ligada a uma depressão afetiva. Nos casos de aumento da impressionabilidade, todas as percepções e todas as representações parecem mais vívidas e mais próximas e o eu fica impressionado com maior força. 

As qualidades de já-conhecido (“Bekanntheitqualität) é uma forma especial destas funções, que se encontram aumentadas nos já mencionados estados de “déjà vu” e cuja debilitação deve contribuir na gênese da perplexidade (RATLOSIGKEIT). Existem outras qualidades de impressionabilidade como são os fenômenos de auto-referência e os fenômenos de significação. No primeiro destes casos, se vive todos os acontecimentos do mundo exterior percebidos como relacionados com o eu; no segundo caso, adquirem uma significação simbólica dentro da qual a significação das coisas e das pessoas se faz insegura e oscilante. Tais formas de impressionabilidade transtornadas associam-se às vezes a outros fenômenos do ser vital, especialmente aos de natureza afetiva. Assim, a auto-referência se associa à ansiedade ou à desconfiança, as impressões significativas se associam ao êxtase ou às preocupações, às dúvidas e à perplexidade. Podem se somar às ideias de autorreferência acompanhadas de ansiedade, alucinações auditivas concordantes e constituir-se, então, a  síndrome da alucinose.

Os estados das qualidades da impressão derivam todos do diencéfalo e prova disso são as observações levadas a cabo nos feridos cerebrais, nos tumores e na encefalite publicados por V. STOCKERT, PÖTZI e por mim mesmo. No entanto, ainda não é possível se fazer responsável de nenhuma destas manifestações a partes determinadas do diencéfalo.

  1. As síndromes da corporalidade e do caráter.

Neste apartado distinguimos o eu corporal, com suas sensações interoceptivas, intimamente ligadas aos processos nervosos vegetativos, o eu próprio, com suas qualidades pessoais, o eu coletivo com seus sentimentos morais, e finalmente o eu do mundo (WELT-ICH), ou ainda o eu religioso, com a integração consciente do eu no conjunto do mundo e da ordem cósmica. 

As observações levadas a cabo em feridos, em tumores, em focos de amolecimento e em atrofias cerebrais circunscritas, demonstram que todos estes campos do eu, possuem, além da capa cortical, uma capa diencefálica. As funções diencefálicas do eu se regulam segundo um nível de excitabilidade variável e individual e se manifestam como transtornos mórbidos segundo síndromes contrapostas de aumento e de debilitação. 

Assim, no eu corporal, conhecemos a disforia hipocondríaca acompanhada de uma diminuição global das sensações corporais, de d… de temores e representações somáticas falsas. Seu contrário é a euforia enferma com aumento do sentimento de bem-estar corporal, falta de consciência da própria enfermidade e supervalorização corporal. Nos feridos do cérebro a euforia não costumava demorar para retroceder e então, converter-se em disforia. 

No eu próprio observou-se, ora aumento dos sentimentos do próprio valor, com presunção, orgulho e atitude fanfarrona, ora uma diminuição do próprio valor com desânimo, pensamentos de inferioridade e cansaço da vida. Esta debilitação subjetiva do próprio eu acompanha-se, com frequência, de humor depressivo. Minhas observações em feridos cerebrais da primeira guerra foram completadas durante a segunda guerra por comunicações de FAUST, ZILLIG e ZUICH sobre psicoses traumáticas de matiz expansivo ou com oscilações entre a supervalorização e a subestimação do eu. Na maioria de tais casos pode-se demonstrar, graças aos raios X, lesões do diencéfalo causadas por pequenos estilhaços de metralhadora.

Em alguns casos observados pessoalmente por mim estava alterado o eu coletivo; havia sentimentos de desconfiança, ódio, irritabilidade e tendências querelantes: outros enfermos, pelo contrário, manifestavam aumento dos sentimentos coletivos que se exteriorizavam na forma de um transbordante amor ao próximo. Poucas vezes participava nestes quadros o eu religioso, com inspirações e com uma felicidade de tipo eclesiástico. Um de meus feridos apresentou oscilações do humor que variavam, de um modo fásico, de uma conduta cheia de ódio persecutório a uma conduta que se resolvia em amor. Os estados expansivos podem se acompanhar de uma facilidade de evocação de pensamentos que aumenta a produção de ideias de hipervalorização do eu, de relatos fantástico e de descobertas confabulatórias. Dentro da exaltação extática do eu religioso, acham-se frequentemente ideias de inspiração e os estados persecutórios que se combinam facilmente, com o qual emana a síndrome de uma alucinose, como pudemos já ver.

  1. As síndromes do temperamento.

Os fenômenos afetivos, os instintos e os impulsos estão também relacionados com o diencéfalo, além dos gânglios do cérebro anterior. As variações individuais de seu modo e de sua intensidade constituem os temperamentos. O temperamento alegre (sanguíneo) e o melancólico são estados afetivos, enquanto que o temperamento colérico e o temperamento fleumático derivam da força ou da debilidade dos instintos. Existem também temperamentos psicomotores que são impulsos aumentados ou diminuídos, que não tinham sido ainda individualizados na antiga doutrina dos temperamentos. As variações patológicas dos temperamentos normais se manifestam nas síndromes melancólica e maníacas, nos estados de excitação colérica dos enfermos comiciais, e em certos estupores assim como nas síndromes hipercinética e acinética.

Há que se distinguir as sensações subjetivas dos afetos, dos instintos e dos impulsos, os movimentos de expressão e a atividade de tais fenômenos. Os gânglios do cérebro anterior, e de um modo especial o núcleo caudado participam na atividade e nos movimentos de expressão.

Um doente que sofria de um tumor do terceiro ventrículo que comprimia a capa óptica e o hipotálamo, apresentou uma excitação instintiva excessiva com expressões de cólera e de defesa. Gritava, vociferava, insultava e atacava qualquer um que estivesse à sua volta. 

Noutro caso o que dominava era uma excitação hipercinética. O estriado do lado esquerdo, especialmente o núcleo caudado, estava destruído por um amolecimento de origem vascular. O núcleo caudado do lado esquerdo apresentava lesões puntiformes. 

Os temperamentos e suas síndromes patológicas correspondentes implicam sempre outras síndromes, além de seus sintomas essenciais, e assim, por exemplo, a síndrome maníaca compreende a hipervalorização do eu, os desejos de falar e de atuar, e a fuga de ideias. A atenção, a ordem e a medida dos temperamentos. Os transtornos da ordem e da atenção variam de um modo polar. O estímulo do curso do pensamento, acompanhado de relaxamento da ordem e de ampliação da penetração das representações, traz como consequência a fuga de ideias e a incoerência. Em vez disso, o atraso acompanhado e uma ordem mais rígida e uma penetração mais limitada das representações, segue-se de inibição e de vazio do pensamento. O estímulo ou o atraso exercem sua influência ou mais sobre a vertente sensorial da atenção, isto é, sobre as representações, e consequentemente, levando à fuga de ideias, ou a inibição do pensamento, ou mais sobre a atividade da atenção, o que leva à incoerência ou pensamento vazio.  No primeiro caso, se combina com excitação ou atenuação dos dos fenômenos afetivos e nos últimos com um aumento ou uma diminuição da psicomotilidade. Tanto nos feridos cerebrais como nos enfermos focais, só se apresentavam síndromes do temperamento e alterações da medida, da ordem e da atenção, quando tinham lesões do diencéfalo ou dos gânglios do cérebro anterior. Muitas vezes se combinavam com agitação motora unilateral, em forma de movimentos lúdicos, paracinéticos ou coreicos. 

  1. Síndromes de tendências, de obsessões e de ideias fixas.

Temos que distinguir, ao lado dos impulsos, que oscilam segundo a oposição acinesia-hipercinesia, no comportamento psicomotor, as tendências, que também dependem do diencéfalo e além disso, do cérebro anterior. Também aparecem em forma de oposições polares, mas não se trata já da oposição entre aumento e diminuição, mas da oposição de direções: negação ou afirmação, negativismo ou relaxamento; inclusive ocorrendo a imitação da ecopraxias e a procinesia, há introversão e autismo ou pelo contrário, extroversão, estereotipia e iteração; todas estas tendências têm sua influência sobre a conduta e a ação, o discurso e o pensamento, de modo que podem também produzir síndromes.

As obsessões se parecem com as tendências, assim como também se parecem os exclusivismos fanáticos e fechados que levam às ideias fixas.

Resulta de um interesse fundamental o fato de que as tendências que se manifestam de um modo especial nos esquizofrênicos, e sobretudo nas catatonias, se encontram também nos feridos cerebrais e em outras enfermidades locais do cérebro. Há que separar o que é sensação subjetiva da tendência, das ações que se devem a elas, como ocorre nos impulsos. As sensações subjetivas das tendências derivam, com toda probabilidade, do tálamo, enquanto que as tendências mesmas derivam provavelmente do núcleo caudado. Também, as obsessões não aparecem unicamente em psicopatas, mas também se observam no curso da encefalite letárgica crônica, quer dizer, numa enfermidade infracortical bem definida.  

  1. A unidade do ser vital e sua alteração.

Do mesmo modo que as capacidades psíquicas condicionadas pelo córtex corporal estão reunidas com o eu corporal junto ao caráter dentro da unidade da personalidade, existe também uma unidade dos fenômenos do ser vital, relacionada com o tronco cerebral em cujo centro se encontra o ser corporal. Esta unidade pode desfazer-se com uma facilidade relativa, inclusive no estado de saúde psíquica, através de sobrecargas psíquicas e sua dissociação patológica se manifesta através dos sintomas histéricos. 

O processo atuante é, neste caso, a sugestibilidade que já no indivíduo normal varia mais ou menos e que pode aumentar em um maior grau em certo tipo de psicopatas, mas que também pode se apresentar como consequência direta de lesões traumáticas do cérebro. Em tais casos é decisiva a lesão do tronco cerebral. Num caso de minha observação, o diencéfalo tinha sido atravessado por um projétil procedente do occipício e encontravam-se estilhaços de metralhadora na sela túrcica. O jovem ferido, que até então tinha sido um rapaz completamente equilibrado, reagiu de um modo histérico, sintomatologia que desapareceu mais tarde.

A alteração histérica do ser vital consiste numa debilidade inata ou adquirida da colaboração do eu corporal diencefálico com as demais atividades do ser vital. Como consequência, as dores corporais que se apresentam no transcurso de uma enfermidade ou com a ocasião de alguma ferida, se transformam facilmente em temores e delírios com suas representações correspondentes, o que produz reforços, fixações, amnésias e conversões causadas pela autogestão ou de natureza histérica. Além disso, os afetos, os instintos e os cuidados, as esperanças e os conflitos que com eles se apresentam, trazem facilmente, como consequência, reações corporais, acessos, paralisias e anestesias ou ainda outros transtornos corporais equivalentes através do mesmo mecanismo sugestivo. 

  1. Conferência dada por convite do Conselho Superior de Investigações Científicas de Madrid, da Sociedade de Neurología e de Psiquiatria de Lisboa e pela Faculdade de Medicina de Coimbra (outubro e novembro de 1950).  Traduzido do francês pela Dra. A. F. Vidal Parellada (ao espanhol) e do espanhol ao português por Roberto Fazzani Neto. ↩︎
  2. Nota do tradutor: Pincalomas são tumores de tipo germinomas da glândula pineal. ↩︎