Quadros clínicos na demência senil

QUADROS CLÍNICOS NA DEMÊNCIA SENIL1

O tema que vamos ver hoje são os quadros clínicos da Demência Senil. Quadros clínicos porque geralmente é uma configuração bem estabelecida. Hoje em dia não há a menor dúvida quanto às formas mais características da Demência Senil, mas há outras formas atípicas que merecem ser discutidas.

A primeira referência mais direta à demência senil apareceu no século passado, em 1883, por Voisin, logo depois, quase simultaneamente, em 1891, Klipel descreveu quadros demenciais que atribuiu à arterioesclerose. Descreveu a chamada Demência Arterioesclerótica, que tinha um colorido particular, porque, como eles descreveram, havia fabulações, havia perda de contato com a realidade, uma amnésia muito acentuada e uma série de outros fenômenos, havendo também depressão, mas com reduzida irritabilidade. De modo que o quadro descrito por Voisin e por Klipel corresponde ao que hoje temos como Demência Senil. Já bem mais tarde, Wernicke retomou a descrição feita por Kahlbaum, aceitando inclusive o termo de Presbiofrenia, que Kahlbaum havia estabelecido, como equivalente a um Estado Demencial, com desinteresse pelo mundo exterior, com aqueles coloridos particulares que havia na Hebefrenia descrita por ele, com a diferença de se apresentar no final da vida, daí o nome de Presbiofrenia, que Kahlbaum procurou opor à Hebefrenia. Wernicke retomou no fim desse século esta descrição de Presbiofrenia de Kahlbaum, mas mostrou que havia duas formas: uma delas que era reversível em que havia o que ele chamou de processo agudo e uma outra forma, delirante, que evoluia rapidamente para o Estado Demencial. Esta forma delirante tomou o nome de Paranoide, por analogia à Paranoia.

Havia, portanto, no quadro clínico essa dúvida: se um paciente que apresenta distúrbios mentais, seria um demente no sentido arterioesclerótico, um doente que iria logo ficar totalmente à margem da vida ou se seria um paciente que iria retomar a atividade anterior.

Quem mais tarde fez essa distinção foi Kleist, quando mostrou que no grupo examinado por todos os autores, inclusive Wernicke, havia pacientes de condições heterogêneas. Havia pacientes que evoluiam para um estado demencial e pacientes que apresentavam quadros clinicos do tipo reversível, com recuperação integral. 

Dessa maneira, esse quadro de Presbiofrenia descrito por Wernicke é um caso particular dos quadros psiquiátricos em geral. E que só foram, suficientemente, desmembrados quando Kleist estudou todos os componentes do quadro clínico pelo prisma da patogênese. Dessa forma, um grupo de doenças heterogêneas foi desdobrado em sub-grupos mais homogêneos quanto à patogênese, isto é, quanto à sua base fisiogenética.

A forma reversível, com manifestações agudas, corresponde ao que Kleist, mais tarde,  chamou de Paranoia de Involução, em que há alterações delirantes que correspondem à época de involução sexual em geral, mas que é passível de regressão, é muito mais próxima, portanto, da PMD. Assim, já houve no início deste século uma série de quadros clínicos bem descritos, tanto por autores franceses como alemães, mostrando que há um quadro clínico particular que aparece tardiamente.

A questão da época de incidência foi abordada pelos estudos, especialmente, de Alzheimer e de Pick. Ambos demonstraram um quadro demencial, que de início Alzheimer também chamou de Presbiofrenia, mas que aparecia muito mais cedo do que a demência arterioesclerótica, na acepção do século passado, de Voisin e de Klipel, ou das outras formas de arteriosclerose cerebral, que foram distinguidas com os desmembramentos dos quadros chamados de Demência Senil, dos quadros benignos ou dos quadros de evolução mais lenta. 

Assim, Alzheimer, primeiramente em 1905 e depois em 1911, estudou os casos que chamou de Presbiofrenia que apresentavam a particularidade de ser mais frequente na mulher do que no homem e de aparecer mais precocemente do que as formas demenciais tardias, para os quais reservou o termo de Demência Senil. Pick, na mesma época, um pouco depois, em 1914, descreveu os quadros demenciais que passavam logo para o embrutecimento e eram acompanhandos de distúrbios neurológicos mais no sentido de hipertonia muscular. 

De modo que a doença de Alzheimer, que a princípio descreveu como Presbiofrenia, passou depois a ser a Doença de Alzheimer, no consenso dos autores. Alzheimer descreveu com muita precisão as várias condições anátomo-patológicas que correspondem a essa forma demencial. Já mesmo antes dessa descrição de Alzheimer, Binswanger, descreveu um quadro que aparecia na idade senil avançada, caracterizada por alterações celulares generalizadas e que tinha, portanto, uma entidade clínica que correspondia ao que hoje chamamos Demência Senil. Esta forma segundo mostraram os autores, especialmente Binswanger demonstrou isso, apareciam mais tardiamente, geralmente entre 65 e 80 anos de idade, na maioria dos casos. Tinha a característica descrita por autores anteriores de ser um Estado Demencial que não se pronuncia imediatamente, mas tem uma evolução mais ou menos arrastada, em geral com a duração de 5 a 10 anos, portanto, muito mais arrastada do que outros quadros clínicos que começam em geral mais cedo. E assim foi possivel distinguir uma série de quadros, que a princípio estavam confundidos num quadro comum, que era a arterioesclerose.

Portanto, de acordo com a época do aparecimento, temos:

  1. A doença de Pick, que tem alterações, principalmente, na articulação verbal, na linguagem;
  2. A doença de Alzheimer, que aparece um pouco mais tardiamente, mas que tem uma evolução mais rápida;
  3. A arterioesclerose encefálica que leva habitualmente ao Estado Demencial;
  4. A Demência Senil/Presbiofrenia, que aparece mais tardiamente;

Geralmente, a doença de Pick e de Alzheimer tem início entre 45 e 50 anos. A arterioesclerose, geralmente, em torno de 61 anos e a Demência Senil, como ficou estabelecido, dos 65 aos 80 anos. Assim, consideramos como sinônimo de Presbiofrenia esses quadros clínicos descritos por autores, a partir de Binswanger, com alterações gerais no comportamento, uma dificuldade em adquirir novos conhecimentos, um prejuízo progressivo no contato com a realidade e que se caracteriza como um quadro clínico típico.

No Quadro abaixo, que será discutido mais adiante, se apresentam as característucas das formas tipícas e atípicas.

Na forma típica temos as seguintes características: início tardio, confusão completa em relação ao meio exterior; possíveis alucinações que podem determinar confusão mental, mas independentemente da confusão, porém só o fato de haver pouca atenção para com o mundo externo, uma tendência para voltar-se para si próprio, acarretando a confusão entre a realidade com as próprias intenções levando a fabulações;  excitação psíquica, o que diferencia das outras formas como o Pick, por exemplo, em que há um apagamento contínuo e não excitação; fabulações, de certa maneira decorrência da dismnésia (falta de fixação).

            O comportamento se distingue pelo aspecto de ser fundamentalmente infantil, o indivíduo se mostra alegre, comunicativo e, ao mesmo tempo, apresenta choro intencional devido à emotividade excessiva e, ainda, ao mesmo tempo, não dá atenção ao que se passa ao redor dele, confunde as coisas, faz certas pirraças, como faria um indivíduo na excitação psíquica, na Mória (só que não tem a intensidade da Mória), correspondendo mais a uma dispersão da atividade

            Ao mesmo tempo apresenta falsos reconhecimentos, que estão ligados também com esse conjunto de excitação psíquica e falta de atenção. Em alguns casos se observa uma acessibilidade, são indivíduos facilmente acessíveis, são sugestionáveis, podem fazer grandes doações de dinheiro a título de amizade, traduzindo um comportamento completamente insensato. 

A forma típica é essa com evolução lenta. No começo, o que caracteriza o quadro clínico, devido a uma série de alterações da personalidade é o comportamento anormal, um distúrbio de caráter. Assim, um prenúncio desse quadro clínico são os distúrbios de caráter. São indivíduos que cometem injustiças, cometem perversidades, às vezes, calúnia mesmo, mas que estão baseados mais nos fenômenos alucinatórios que aparecem no início desse quadro clínico que, ainda, não se manifesta como decadência; o comportamento sexual também é anormal, um distúrbio do comportamento sexual, mais no sentido libidinoso (às vezes isso é interpretado como sendo uma compensação da decadência sexual). Na realidade isto aparece como consequência da falta de noção da situação, são indivíduos que podem nessa fase ter um comportamento incestuoso, um comportamento de sedução decorrente da falta de crítica, da falta de noção da situação em que estão, de modo que não seria imputados como criminosos nesse sentido sexual, mas seria como uma decorrência da falta de noção. Como isso aparece alguns anos antes de se instalar o quadro clínico, esses pacientes são tomados como indivíduos com distúrbio de caráter, indivíduos de mal comportamento, sendo visados por isso. A não ser que o problema seja muito anormal, por exemplo, o indivíduo urina na via pública, então isso chama atenção, pois o indivíduo habitualmente não tem esse comportamento anormal. No final, o indivíduo entra em caquexia por falência da zona orbitária.

Nas formas atípicas (que são as que decorrem de lesões cerebrais localizadas) encontramos as seguintes características: 1. Forma melancólica ou depressiva – emotividade excessiva, choro fácil, sentir-se rejeitado e esse quadro confunde-se com a fase melancólica da PMD; mas além da melancolia há o aspecto delirante. Na fase inicial é realmente difícil distinguir da PMD. e da Melancolia de involução; 2. Forma delirante: há irritabilidade que geralmente é decorrente dos distúrbios senso-perceptivos, geralmente alucinações. Há um quadro clínico onde predomina o falso reconhecimento, toma parentes por pessoas estranhas, trata o irmão, o sobrinho ou o neto como pessoa estranha, como se nunca tivesse visto ou então, pelo contrário, ele identifica pessoa que encontra como se fosse pessoa da família, e a fabulação é tão intensa que se confunde com o quadro de Korsakoff, que aliás foi descrito no início como integrante da Demência Senil.

Mas esse quadro atípico corresponde à fase inicial, depois se torna típico; 3. Distúrbios neurológicos – perda da capacidade de audição; alteração na expressão verbal com ecolalia; perda da memória e fabulação decorrente; hipertonia muscular, marcha em pequenos passos, alteração da praxia como na doença de Pick; alteração da linguagem verbal: ecolalia, afasia, palilalia que a aproximam mais ao Pick. Como diagnóstico diferencial para com a arterioesclerose encefálica, encontramos a irritabilidade e compulsões características da arterioesclerose. Quanto ao tipo de alteração cerebral, seriam alterações difusas e não em focos – orbitário, frontal, parietal – como no Pick e no Alzheimer; são alterações que aparecem em todas as regiões cerebrais – alterações difusas que abrangem toda a corticalidade, especialmente as camadas III e V, dando consequentemente alterações na emissão e na recepção do estímulo. O distúrbio celular é o mesmo nas três formas; distúrbio abiotrófico, placas senis que se difundem por toda a corticalidade.

Cumpre salientar que esses quadros atípicos correspondem à fase inicial, depois surgem sintomas que podem ser de ordem psicológica, mas que algumas vezes também representam fenômenos motores, portanto, distúrbios neurológicos.

Tais distúrbios neurológicos no sentido da senso-percepção, a audição, por exemplo, a otoesclerose começa muito mais cedo, mas nesse caso o indivíduo tem uma perda consecutiva da capacidade de audição.

Os fenômenos do tipo da logofonia, a ecolalia e outros que aparecem na doença de Pick, também podem aparecer, no início, com esse caráter neurológico, embora tenha também um comportamento de perda de memória, a fabulação consequente a isso, e outras manifestações decorrentes da perda de contato com a realidade exterior. Outros aspectos que também chamam a atenção, a hipertonia (que não é comum na arterioesclerose), a marcha em pequenos passos, as apraxias, como acontece na doença de Pick. Assim, temos um comprometimento mais marcado de certas zonas cerebrais, como as alterações da linguagem verbal, bem como a palilalia ou ecolalia e, às vezes, há afasia. Essas são as alterações atípicas mais frequentes nesse processo e nesse caso o quadro clínico se aproxima mais de Pick e do Alzheimer do que da Demência Senil. E a distinção com a arterioesclerose encefálica é porque não é característica a irritabilidade, tampouco aqueles momentos de agressividade, não há também convulsão: portanto, são elementos que estão mais ligados à arterioesclerose encefálica em territórios particulares e que podem levar ao estado demencial, mas que não são frequentes, não são constantes na Demência Senil.

Com relação às alterações cerebrais, na Demência Senil há um alteração difusa. Na doença de Pick temos, no início, focos orbitários, posteriormente, foco temporal ou parietal maciço, ou frontal maciço, também não são focos esparsos na zona posterior do cérebro, na zona média e secundariamente na zona anterior. Na doença de Alzheimer, são alterações que aparecem em todas as regiões, quase indiferentemente, mas quando abrange mais a zona extra-piramidal do córtex ou zona motora (ou zona anterior), vai ocasionar distúrbios neurológicos que se tornam evidentes, devido a sede particular das lesões que abrange toda a corticalidade, especialmente, as camadas III e V do córtex. 

De maneira que abrange tanto os sistemas cerebrais emissores dos estímulos quanto os que recebem os estímulos também. Fica, portanto, um apagamento completo. O processo é lento. Há, portanto, distinção a fazer com as formas de Pick e Alzheimer e a Demência Senil porque o distúrbio celular é o mesmo, há uma abiotrofia, que se manifesta no mesmo quadro clínico, em áreas pequenas, chamadas placas senis que aparecem em todos os quadros clínicos e que se difunde por toda a corticalidade. 

Na senilidade, aparece uma tendência para fabulações, certa irritabilidade, auto-referência, mas aqui esse modo de reagir assume um feitio patológico, é uma psicose realmente. As alterações no Pick estão mais ligadas com as fibras de projeção, e não com os sistemas de associação intercorticais do Alzheimer e da demência senil, por isso a demência senil está mais próxima pelo aspecto histológico, com a doença de Alzheimer. No entanto, cumpre lembrar, que na doença de Alzheimer os núcleos da base também são envolvidos.

Alguns sintomas podem e devem ser valorizados. Um aspecto é uma debilidade da apreensão, que pode ser um sintoma precoce. Um outro aspecto está relacionado com a notável conservação de determinadas funções psíquicas, pois a afetividade está pouco alterada, o que dá como resultado o empenho dos pacientes para atender-nos, apesar da grande intranquilidade e luta contra seus defeitos psíquicos, mesmo quando já em estado de demência progressiva: atendem a nossos pedidos, permanecem acessíveis, o que revela uma conservação da personalidade. 

  1. Texto organizado por Roberto Fasano Neto, em 2003, a partir de aula de Aníbal Silveira proferida em 04/11/1971, sem referência de lugar, sendo revista, em 14/02/23, por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flávio Vivacqua, Francisco Drumond de Marcondes de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano Neto. ↩︎