A PATOLOGIA CEREBRAL SEGUNDO KARL KLEIST1
(E. E. Krapf)
A literatura médica conta já com três grandes sistemas de patologia cerebral. De 1881 a 1883, C. Wernicke publicou seu “Tratado das enfermidades cerebrais”; em 1897 apareceu a “Patologia Cerebral” de C. von Monakow, em 1924 editou-se o último dos oito volumes das “Contribuições Clínicas e Anatômicas na Patologia do Cérebro” de S. E. Henschen. Trata-se de três obras realmente monumentais, cuja influência sobre o pensamento neuropsiquiátrico de suas épocas respectivas seria difícil sobrestimar. Enquanto tanto a investigação neuropsiquiátrica adquiriu um incremento tal, que de ano a ano parecia mais difícil que pudesse um só homem, uma vez mais, abarcar o tema em sua totalidade. Apesar disto, Karl Kleist se animou a empreender a gigantesca tarefa. Em doze anos de trabalho assíduo escreveu um tomo de 1065 páginas; e em 1934 apareceu (publicado por J. A. Barth de Leipzig) sua Gehirnpathologie”, uma obra que não se pode elogiar mais pela simples constatação de que está completamente a par de seus predecessores.
Não cabe dúvida que esse tratado marcará rumo para toda uma geração de neuropsiquiatras. Todo investigador interessado nos problemas deveria, por tanto, estudar a obra original. Por outro lado, é indiscutível que uma obra escrita em alemão, e ainda mais, no idioma científico muito pessoa de Kleist, não é de fácil alcance para o especialista latino-americano. Eis aqui o motivo desta “mise a point” brevíssima, que não pode fazer mais do que tocar os pontos mais importantes, e que, em meu modo de ver, não deveria ser tomado por um substituto do original, mas servir como uma espécie de introdução ao modo de pensar do mestre de Frankfurt.
Primeiro duas palavras sobre a origem da obra e o fundamento clínico em que se baseia. O que Kleist tentou fazer num princípio era uma descrição dos ensinamentos neuropsiquiátricos da guerra de 1914-1918. Daí que a maioria das observações próprias comunicadas (277) se referiam a traumatismos cerebrais. Mais adiante, no entanto, deu-se conta que não poderia ser completo se se limitasse a esse material. De modo que, de imediato, considerou também as enfermidades focais de outra origem (106 casos próprios) e uma bibliografia de mais de 1000 números. Há que se considerar pois que a casuística é um pouco unilateral e que o fato de que tantas observações estejam sem autópsias correspondentes diminui um pouco o valor das conclusões. Por outro lado, parece-me que estas circunstâncias estejam sobre compensadas pelo número de casos utilizados, e pelo fato de que, em geral, os traumatismos constituem melhor material de estudo do que os tumores (sintomas distantes) e as lesões vasculares e senis (generalização do processo)2.
Com relação aos fundamentos conceituais da obra, Kleist mesmo nos dá a chave. No epílogo do tratado refere-se a seus predecessores, e faz notar, muito acertadamente, que cada um deles se baseava num grande avanço da investigação anatômica do cérebro: Wernicke nos estudos faseranatômicos de Meynert e dele mesmo; von Monakow nos resultados do método da degeneração secundária (Gudden, Marchi, von Monakow); e Herschen nos achados mielogenéticos de Flechsig. Diz, portanto: “A tarefa de uma nova descrição da patologia cerebral consistia, do ponto de vista anatômico localizatório, em que era necessário relacionar os transtornos clinicamente encontrados com o novo conceito arquitetônico do cérebro e, especialmente, o córtex” (pag. 1364). De fato, pode-se dizer que a citoarquitetonia do córtex (Campbell, E. Smith, Brodmann, C. e O. Vogt, von Economo, etc.) e a histologia fina das camadas corticais (Cajal, Kappers, Mott, van Valkenburg, Nissl, etc.) são as verdadeiras bases da análise fisiopatológica e clínica do autor.
Mas a ambição de Kleist vai mais além do que isto. O que, na realidade, busca é chegar a um plano funcional (Funktionsplan) do cérebro, que em seus elementos principais, corresponde não só à estrutura anatômica do órgão central (Bauplan), mas também à psicologia da personalidade. Seu caminho o leva do transtorno “ao conhecimento de certos tipos de transtorno e à formulação de conceitos de transtorno. Os conceitos de transtorno são, por assim dizer, os negativos. Supondo que positivos normais correspondam aos negativos patológicos, chegamos a funções normais… Assim comparamos as funções normais com aquelas que delimita o psicólogo. Deste modo, por comparação, e complementação recíproca dos resultados patológicos e psicológicos, esperamos chegar à concepção verídica dos sucessos e conexões” (pag. 1146).
Aqui, onde não temos suficiente espaço para ir do fato isolado à generalização, será oportuno dar primeiro uma ideia do que é para Kleist o “plano estrutural e funcional do cérebro”. Este procedimento nos facilitará consideravelmente a descrição ulterior dos pormenores clínicos e fisiopatológicos. Mas convém fazer constar que esta distribuição dos pesos não é de nenhum modo a do mesmo Kleist, e que também para nós a maior atração da “Gehirnpathologie” reside justamente no minucioso detalhe clínico, tão carinhosamente observado e descrito.
Para compreender o sistema de Kleist é recomendável ter sempre presente que se trata de um sistema de coordenadas, cuja primeira é a oposição entre o córtex e o tronco cerebral, a segunda a ubiquidade da distribuição funcional em atividades motoras, sensoriais e psíquicas e a terceira a estruturação “psicobiológica” do eu.
O córtex formado por “Sinnessphaeren” (esferas de sentidos) é o “local” do “psiquismo cortical” que forma, de caráter e talentos, a “personalidade” (pag. 1368). Por baixo dela há o tronco cerebral que no indivíduo normal e maduro está sob o domínio do córtex, mas cujas funções são de uma importância vital extraordinária: No tronco cerebral localizam-se para Kleist verdadeiros “psiquismos infracorticais” (infrakortikale Seele) que batiza o autor de (a) “Achtsmkeit und Bewusstsein”; (b) “Wachsein um Schlafen”; (c) “Wesen”. Também essas funções têm suas relações localizatórias firmes: “Achtsamkeit und Bewusstsein” (atenção e consciência) residem nos segmentos mais posteriores do tronco cerebral, metencéfalo e telencéfalo; a “Wachsein und Schlafen” (vigília e sono) já correspondem a um segmento mais anterior, o diencéfalo cinzento central e talâmico; mais adiante ainda, no diencéfalo e nos gânglios profundos do prosencéfalo, localiza-se o “Wessen”, termo muito difícil de traduzir, que significa mais ou menos “modo de ser” e que, no seguinte, usando um conceito aparentado da filosofia escolástica, denominar-se-á “essência”. Kleist define a essência como “a totalidade das atividades psíquicas do diencéfalo e dos gânglios prosencefálicos”, e especifica como tais atividades “as baixas funções do eu, inclusive os temperamentos, a psicomotilidade baixa e as atividades baixas de apercepção, orientação, fixação, vigilidade e ideação” (pag. 1368). Vê-se, de imediato, que a “essência” infracortical complementa à “personalidade” cortical em forma parecida como na obra de F. Kraus, a “tiefenperson” à “Person”, uma analogia que, por outro lado, o próprio Kleist assinala (pag. 1168).
A tripartição das funções cerebrais em motoras, sensoriais e psíquicas existe no córtex como nos centros subcorticais, na “personalidade” como na “essência” do ser humano. Mais adiante, ver-se-á de que forma se expressa esta circunstância nos distintos níveis fisiológicos e psicológicos.
Mas convém destacar, desde já, que as mencionadas funções se cristalizam sempre ao redor das atividades psíquicas (atividades do eu) e que, por tanto, o eixo do indivíduo normal é o que acima chamávamos estruturação psicobiológica do eu. Kleist assinala que também com relação a isto teve precursores, e cita, especialmente, seu mestre, Wernicke, que falava já no século passado de “Auto-Psyche, Somato-psyche und Allo-Psyche”. Acrescentarei que, em meu ver, é quase mais notável ainda que os mesmos psicólogos falem hoje de uma “estrutura do eu” e que Freud defenda um conceito análogo dentro da escola psicanalítica.
I. A estrutura do eu. Constituindo a estrutura do eu o eixo da concepção kleistiana, prefiro falar dela em primeiro lugar e deixar a descrição das demais funções, tanto corticais como infracorticais, para mais tarde.
O eu é, para Kleist, “uma entidade formada por grupos funcionais (círculos, capas) que estão ordenados em parte em superposição, em parte em justaposição, e esta entidade deve corresponder a seu portador anatômico que possui uma estrutura parecida” (pag. 1167). “As escalas baixas formam o “Gefuehls-und Trieb-ich”, uma região média a constitui, o “Koerper-ich” cenestésico, o eu mais alto, o caráter, compreende as qualidades pessoais do eu que repousa em si mesmo (“Selbst-ich”), além das disposições morais básicas da vida social (“Welt-ich, religioses Ich) (pag. 1250). Kleist dá a todas estas escalas também nomes gregos, de maneira que se pode sintetizar seu conceito no seguinte quadro:
Já vimos que Kleist atribui a todos estes círculos do eu uma localização cerebral. Na mesma ordem de cima coloca o eu afetivo e instintivo (Afetividade e Instintividade pela tradução de Aníbal Silveira) no tronco cerebral, mas especialmente no diencéfalo. As escalas mais altas têm também uma representação diencefálica, mas simultaneamente possuem localização cortical de hierarquia superior à diencefálica, e que há que buscar para o eu somático (Personalidade Somática) na região cingular (sobretudo esquerda), e para o eu próprio (Personalidade Subjetiva), o eu social (Sociabilidade) e o eu cósmico (Religiosidade) no lobo orbitário (detalhes clínicos nas páginas 1171 até 1235).
Recordando agora que para Kleist não há função psíquica sem funções motoras e sensoriais correspondentes, não acharemos estranho que “todas as regiões do eu tenham um lado sensorial e um motor” (pag. 1250). O que isto quer dizer ele o expressa de modo concreto e sintético no seguinte quadro:
Segundo o grau da excitabilidade desses “círculos do eu” Kleist classifica os temperamentos. “Temperamento é a temperatura psíquica” (pag. 1170). Dos temperamentos ou “humores” da psicologia antiga correspondem ao eu afetivo (afetividade) os sanguíneos e melancólicos, ao eu instintivo (instintividade) os coléricos e fleumáticos. “As temperaturas do eu somático (personalidade somática), eu próprio (personalidade subjetiva), eu social (sociabilidade), eu religioso (religiosidade) são…. o bem-estar ou mal-estar (“Befinden”)., a vivência do eu (Selbstgefuehl) e o calor das disposições morais (Gesinnungen) sociais e religiosas (pag. 1170/1).
Quero fazer constar que todas estas concepções não estão de forma alguma no ar, mas que o edifício teórico descrito tem sólidos fundamentos clínicos. Seríamos levados demasiadamente longe se fôssemos relatar de forma detalhada quais são os transtornos muito variados que permitem a Kleist chegar à análise funcional citada anteriormente. Por outro lado, teremos ocasião de falar ainda de certos aspectos patológicos do eu, quando, nos capítulos seguintes, encararmos o estudo das funções corticais e infracorticais agrupadas ao redor do eixo psíquico.
II. Transtornos e funções corticais. Em desacordo com as concepções antigas que distinguem campos motores, sensoriais e associativos (Flechsig), Kleist acredita que o córtex se compõe de esferas de sentidos, dentro de cada uma das quais há uma zona sensorial propriamente dita (granular), outra motora (agranular) e outra psíquica. Estas últimas zonas servem para as reações motoras e atividades psíquicas correspondentes e são distintas segundo o sentido a que se referem. Para não me estender demasiadamente, reunirei o essencial outra vez num quadro sinóptico.
Não será necessário falar novamente da esfera autognóstica que, na realidade não é outra coisa que a representação cortical do eu considerado no capítulo precedente. Com relação à esfera mioestética e táctil (frontal e centroparietal) pode se acrescentar que “juntas podem também ser consideradas como um órgão duplo” (pag. 1368), dentro do qual o lobo parietal ocupa-se mais do mundo exterior enquanto o lobo frontal recebe sobretudo as impressões proprioceptivas como seu tono afetivo considerável. Com respeito aos detalhes da localização cerebral, tanto nas esferas mioestética e táctil como na visual, auditiva, gustativa e olfativa, encontram-se todos os detalhes nos mapas cerebrais que adiciono. Direi que o estudo destes mapas tornar-se-á ainda mais proveitoso comparando-os com um mapa citoarquitetônico do córtex. Pois as localizações funcionais de Kleist têm sempre também um sentido anatômico, que se poderá apreciar deste modo muito mais diretamente.
Será, no entanto, necessário falar algo mais detalhadamente de alguns temas mais especiais, a saber: da patologia do lobo frontal e das apraxias e afasias pois estes são os tópicos que Kleist estudou preferencialmente desde o início de sua carreira, e é, portanto, bem lógico que os capítulos correspondentes continuem, por sua vez, as partes mais brilhantes de seu livro e as que melhor nos permitem formar uma impressão da oficina intelectual do mestre.
- O estudo e a patologia do lobo frontal se baseiam na ideia condutora de ver nesta parte do cérebro a esfera mioestética (labiríntica). Daí que a análise das funções musculares, quer dizer, a motilidade, esteja em primeiro plano da atenção. O campo de visão, se alarga, no entanto, consideravelmente, ao ver por trás da motilidade a atividade em geral, e ao incluir na série das atividades humanas não só os momentos, mas também a linguagem e o pensamento. À primeira vista poderia parecer que esta inclusão fosse, talvez, arbitrária; mas é fácil se convencer de que está completamente justificada, já que o paralelismo entre praxia e afasia já foi assinalado por muitos, e sendo, por outro lado, o caráter da atividade que tem o pensamento a base imperturbável da psicologia moderna (“Arkpsychologie”)3.
Kleist vê por cima dos movimentos isolados (“Einzelbewegungen”) e das habilidades (“Festigkeiten”) duas funções frontais muito mais alta: o impulso (“Antrieb”) e a faculdade de reunir e encurtar o aprendido em fórmulas (“Formeln”). Aplicando esse conceito além da motilidade e propriamente dito à atividade em geral, chega-se a um esquema interessantíssimo dos transtornos frontais para o qual o mesmo Kleist adota a forma de um quadro sinóptico (pag. 1035) que (em forma um pouco modificada) reproduzo no seguinte:
Parece-me que o quadro precedente se explica por si, sendo, por outro lado, impossível definir no espaço que está a minha disposição o que entende Kleist com alguns termos nada usuais como “transtorno alógico”, etc.
Quisera, no entanto, fazer constar que, em meu modo de ver, a representação frontal da linguagem e do pensamento sublinha a importância especial que este lobo tem para a personalidade humana, e que a intimidade das relações entre atividade e eu parece se expressar também na vizinhança anatômica dos lobos frontal e orbitário. Veremos mais adiante que a análise mais detalhada da motilidade ensina a existência de uma colaboração íntima entre o lobo frontal e o tronco cerebral; de maneira que também sob este ponto de vista evidencia-se o paralelismo assinalado entre a atividade frontal e o eu orbitário.
- O estudo das apraxias e afasias agrega ao precedente a patologia dos lobos parietal e temporal. Kleist diferencia formas motoras e sensoriais. As formas motoras são as mencionadas no último quadro sinóptico com o agregado de uma forma mais primitiva apráxica e afásica, respectivamente, de localização centrofrontal. Com respeito às formas sensoriais Kleist também distingue três formas apráxicas e três afásicas, de modo que resulta o quadro sinóptico da página seguinte, o que empresto do próprio Kleist (pag. 1912) mas acrescentando-lhes as respectivas localizações.
Acrescentarei que para Kleist, também os transtornos do pensamento têm “formas sensoriais”. Ao transtorno “alógico” frontal corresponde um “paralógico” de localização mais posterior. Sobretudo a região fronteiriça entre os lobos occipital, parietal e temporal (com outras palavras: a região da dobra curva) seria “importante para o pensamento” (pag. 1012 e seguintes).
III. Funções e Transtornos motores do Tronco cerebral e a Estrutura da Motilidade. Ao entrar agora no terreno de funções infracorticais, convêm recordar em primeiro lugar que a tripartição das funções em motoras, sensoriais e psíquicas atravessa o órgão central em todos seus segmentos. Uma parte importante das atividades psíquicas do tronco cerebral já vimos no capítulo sobre a estrutura do eu. Sobre funções e transtornos sensoriais tratar-se-á no capítulo seguinte. O presente capítulo se ocupará, pois, exclusivamente da motilidade, e creio conveniente dedicar um capítulo especial a este tópico pelas mesmas razões que me motivaram relatar de forma mais detida as concepções de Kleist sobre o lobo frontal e os transtornos da praxia e fasia. Efetivamente, a motilidade tem sido um dos temas preferidos do autor desse o começo de sua carreira, e o capítulo dedicado a ela na “Gehirnpathologie” é, em meu entender, uma verdadeira joia.
No capítulo sobre a patologia do lobo frontal já mencionei que, segundo Kleist existe uma colaboração muito íntima entre esse segmento cortical e os centros do tronco cerebral. Vimos que do lobo frontal partem os “impulsos” acompanhados das correspondentes vivências de esforço (pag. 1150), e acrescentamos agora que eles não são nada mais que a mais alta escala cortical do que Kleist chama a psicomotilidade (“Psychomotorick”).
Kleist diferencia dentro da motilidade elementos próprios do eu (ich-eigen) e alheios ao eu (ich-fremd). Os primeiros constituem a psicomotilidade, os segundos a mioestática (pag. 1066). Mas dentro da psicomotilidade distingue ainda três escalas mais, a saber:
1.ª – A escala do impulso e da perseverança, de localização frontal, e com os transtornos abaixo mencionados.
2.ª – A escala das “Regungen”, de localização palidal, talâmica e subtalâmica, com os transtornos chamados “psicoquinéticos”.
3.ª – A escala das “Strebungen” de localização no caudado e o cinzento central do terceiro ventrículo, com os transtornos catatônicos4.
Será necessário explicar em duas palavras o que entende Kleist por “Regungen” e transtornos psicocinéticos de um lado, “Strebungen” e transtornos catatônicos por outro.
Os transtornos psicocinéticos “se movem sob formas variadas nos contrastes de hipercinesia e acinesia” (pag. 1150). “A região psíquica especial a que pertencem os fenômenos hiper e acinéticos…parece ser… o jogo (pag. 1065). Estes fenômenos se explicariam por “uma colaboração e sintonização deficiente entre a motilidade da finalidade objetiva e a motilidade do jogo (Zweckmotorik und Spielmotorik) (pag. 1066). Parece-me, portanto, que “Regung” poder-se-ia traduzir por “moção”, denominação que usarei a seguir.
Os transtornos catatônicos (maneirismo, estereotipia, ecopraxia, iteração e catalepsia, negativismo) correspondem a uma escala mais baixa. “As Strebungen estão mais próximas dos instintos” (pag. 1150). De maneira que será, talvez, possível chamá-las em português de “impulsões”, a palavra original de Kleist é um neologismo em alemão.
Após a exposição precedente é possível reunir outra vez os dados mais importantes num quadro sinóptico.
Para esclarecer ainda mais as relações entre os transtornos psicomotores e mioestáticos do tronco cerebral, acrescento outro quadro sinóptico que se explica por si só.
A análise da motilidade serve a Kleist, por um lado, para basear nela uma análise interessantíssima da vida volitiva, à qual dá uma estrutura em forma de arco reflexo, intervindo o córtex e o tronco cerebral de modo parecido à recém exposta. Levar-nos-ia demasiadamente longe considerar este aspecto interessante de forma mais detalhada. Um esquema da vontade encontra-se na página 1149 da “Gehirnpathologie”.
IV. A “Essência” e seus transtornos. Em vista do acima exposto, pode ser muito curto este capítulo. Vimos a essência sob o ponto de vista psíquico no capítulo sobre a estrutura do eu, e sob o ponto de vista motor no capítulo sobre a motilidade. Falta o aspecto sensorial e direi, a este respeito, que para Kleist, os transtornos sensoriais da essência são as alucinações (pag. 1357).
À margem dos mencionados enumera Kleist ainda quatro ou cinco classes mais de transtornos da essência, dos quais não diz expressamente se os considera motores, sensoriais ou psíquicos. São os transtornos da fixação, da vigília (Besinnung), da atenção ideativa, de certas qualidades de impressão (Eindrucksqualitaeten), e os transtornos histeriformes.
Os transtornos da memória de fixação são postos por Kleist ao lado dos transtornos da ordem temporal. Fala, da síndrome cronoamnésico (zeitamnestisches Syndrome), e considera como Gamper que a localização provável desse distúrbio deveria estar na região dos corpos mamilares.
Nos transtornos da vigílidade distingue o autor: hipervigilidade (Leichtbesinnlichkeit): logorreia e pratoreia; e hipovigilidade (Schwerbesinnlichkeit): perseveração. Localiza estes transtornos no diencéfalo.
Os transtornos da atenção ideativa são: de um lado a fuga de ideias e a ideação confusa; de outro a bradipsiquia (Denkhemmung) e a paralisia da ideação (Denklaehmung). Do ponto de vista localizatório o tálamo e o caudado seriam, provavelmente, os lugares responsáveis.
Sob a rubrica dos transtornos das qualidades de impressão reúne Kleist a despersonalização, a vivência do “déjà vu” e os erros de interpretação (delírios).
“A alteração histérica da essência se baseia numa debilidade da intoxicação (Schaltschwaeche)6 – adquirida ou congênita – entre o eu somático diencefálico e outras atividades da essência” (pag. 1360).
V. Vigília e sono, atenção e consciência. Com relação à vigília e ao sono Kleist adere à opinião moderna de que existem dois centros: um responsável pela vigília e outro pelo sono. Aceita a opinião de Hess, de que a vigília corresponde a um aumento das funções simpáticas e o sono um incremento de atividades parassimpáticas. Vê o centro simpático da vigília no núcleo reuniens7, e o centro parassimpático do sono no núcleo paramediano (pag. 1310).
A vigília constitui para Kleist uma existência psíquica num nível mais alto do que representa a atenção e a consciência. Entende-se, por tanto, que as localizações destas últimas funções sejam posteriores àquela. Para a atenção admite o autor uma localização metencefálica, sendo o transtorno correspondente uma espécie de sopor inquieto (pag. 1299).
Quanto à consciência, Kleist adere à doutrina de Breslauer e Reichardt, “segundo a qual a falta de consciência não constitui um transtorno generalizado do córtex, mas um sintoma focal do bulbo”.
Como se vê na exposição precedente, Kleist leva seus esforços localizatórios muito além do que atualmente é clássico aceitar. É certo que nos últimos anos muitos autores chegaram a concepções parecidas, e apenas tenho que fazer lembra a alucinosis peduncular de Lhermitte para comprovar essa afirmação8. Mas Kleist é o primeiro em empregar o princípio de localização em forma absoluta e sistematizada, e aplicando métodos neurológicos à psiquiatria e psiquiátricos à neurologia é, talvez, também o primeiro em fazer uma verdadeira neuropsiquiatria9.
Creio se quase supérfluo mencionar que a localização de um transtorno, significa para Kleist nem sempre que no lugar indicado deva haver uma alteração anatômica para que se produza o distúrbio ali localizado. A fisiologia moderna localiza o sono no tronco cerebral, mas não se imagina que jamais se possa encontrar a anatomia do sono.
Queria fazer constar, no entanto, que justamente por isso a obra de Kleist sub-repassa tão consideravelmente ao que antes dele se compreendia por “Gehirnpathologie”. É, na realidade, ao lado da patologia cerebral intencionada, uma psicopatologia topográfica completa.
- Trata-se de trabalho publicado na Revista Latinoamericana de Análisis Bibliográficas de Neurologia y Psiquiatría, Julio de 1938, vol. I n.°1; pag. 1-44. Tradução ao português por Roberto Fasano Neto. Original em espanhol. ↩︎
- Com relação aos inconvenientes inerentes ao material de Kleist, veja-se as observações críticas de W. Scholtz (Zetschr. f. d. ges. Neur. 1927: 158, 234). ↩︎
- Veja a
este respeito também São Tomás de Aquino: “Anima cum sit principium vitae in his quae apud nos vivunt, impossible est ipsan esse corpous, sed corporis actum” (Summa Theologiae I, 75, 1). “Sendo a alma o princípio da vida, segundo o qual nós vivemos, é impossível que ela mesma seja o corpo, mas sim ela é o acto do corpo” (tradução de Q.F.Vaz, acrescentada por mim). ↩︎ - Veja a este respeito também São Tomás de Aquino: “Anima cum sit principium vitae in his quae apud nos vivunt, impossible est ipsan esse corpous, sed corporis actum” (Summa Theologiae I, 75, 1). “Sendo a alma o princípio da vida, segundo o qual nós vivemos, é impossível que ela mesma seja o corpo, mas sim ela é o acto do corpo” (tradução de Q.F.Vaz, acrescentada por mim). ↩︎
- Conste que o emprego das palavras “afemia” e “assimbolia” para as formas afásicas motoras e sensoriais respectivamente, é uma liberdade que eu tomo eu vista da impossibilidade de traduzir literalmente os termos alemães. Quem conhece a história da investigação neste terreno sabe, por outro lado, que as denominações gregas que uso, têm um certo valor tradicional, de modo que é talvez, não demasiadamente injustificado empregá-las aqui. ↩︎
- A palavra usada em espanhol foi embriague, que geralmente significa intoxicação. Já em alemão a palavra Schaltschwaerrhe significa comutação. Estariam as alterações histéricas ligadas a uma momentânea desconexão entre o eu somático diencefálico e outras atividades da essência, devido a uma debilidade deste mecanismo? (segundo Kleist) ↩︎
- Núcleo localizado na linha média do tálamo. (observação minha) ↩︎
- Compare-se a este respeito Lhermitte, J.: Encéphale 1932; 27, 422. ↩︎
- É justo anotar aqui que seu precursor mais eminente neste sentido foi seu mestre Wernicke. Comparem, por outro lado, também a contribuição interessantíssima de A. dic.: Die neurologische Forschungsrichtung in der Psychopathologie. Berlin, 1921. ↩︎