Acepção de ambiente e de mundo interno

ACEPÇÃO DE AMBIENTE E DE MUNDO INTERNO¹

Classicamente se considera o mundo interno e o externo ou ambiente como antagônicos. Na realidade, são aspectos que se justapõem e que estão, de forma integrada, envolvidos na configuração dos quadros clínicos, assim como na dinâmica do funcionamento psíquico ou do organismo em geral. Não podemos opor doenças que são de ordem interna e outras, que são de ordem externa. 

No âmbito da psicopatologia, principalmente, na prática clínica, surgiu uma distinção entre doenças causadas pelo ambiente – toxi-infecciosas – e doenças degenerativas. 

A primeira sistematização feita das doenças mentais, em meados do século XIX, distinguiu doenças degenerativas e doenças causadas por fatores tóxicos. As degenerativas teriam tendência para o estado demencial e as outras seriam reversíveis ou então consequentes a infecção do sistema nervoso. 

Mais adiante, Kraepelin² procedeu a uma revisão dos quadros clínicos e estabeleceu uma divisão entre doenças endógenas e exógenas, que seria apenas uma modificação do conceito anterior, sem modificar o critério de avaliação. 

¹Texto organizado por Roberto Fasano, em 2003, a partir de aula proferida por Aníbal Silveira, sem referência de data, local ou de quem a compilou. Revisto em 24/01/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano.
²Emil Kraepelin (Neustrelitz, 15 de fevereiro de 1856 – Munique, 7 de outubro de 1926) foi um psiquiatra alemão e é comumente citado como o criador da moderna psiquiatria e da genética psiquiátrica. Kraepelin defendia que as doenças psiquiátricas são principalmente causadas por desordens genéticas e biológicas. Após demonstrar a inadequação dos métodos antigos, Kraepelin desenvolveu um novo sistema diagnóstico. Suas teorias psiquiátricas dominaram o campo da psiquiatria no início do século XX e a base dessas teorias continua sendo utilizada até os dias de hoje. No entanto, sua visão extremamente sintética fez que reunisse em rubricas únicas quadros que outras visões consideram diversos, como exemplo a visão de Aníbal Silveira. (Nota acrescentada por Roberto Fasano: https://pt.wikipedia.org/wiki/Emil_Kraepelin e considerações próprias)

As doenças endógenas seriam aquelas que apresentavam uma tendência para aparecer espontaneamente e as exógenas seriam causadas por efeitos traumáticos e toxi-infecciosos, dando um quadro mais benigno. As endógenas tenderiam ao estado demencial. 

Mais tarde, com Bonhoeffer³ surgiu a tendência para se interpretar como benignas muitas psicoses infecciosas. Estas seriam reações exógenas não ligadas diretamente ao Sistema Nervoso Central (conhecidas como Reações Exógenas de Bonhoeffer), procurando assim, considerar vários aspectos, o de ser uma doença exógena e de proceder do mundo exterior. Assim, a oposição entre o caráter endógeno ou exógeno foi a tendência predominante. 

Vemos que estes dois conceitos não se prestam para dar sentido prognóstico. Isto porque muitas doenças chamadas hereditárias (e, portanto, endógenas nessa concepção) se mostravam muitas vezes como passíveis de remissão. 

Verificou-se, então, que as doenças hereditárias e adquiridas têm um elemento comum. Dessa forma, surgiu a necessidade de desdobrar o ambiente em dois aspectos: ambiente externo e ambiente citológico. 

Então, quadros psicóticos progressivos ou então síndrome hereditária aparentemente desencadeadas por um fator tóxico exterior vão ter maior ou menor gravidade conforme a sensibilidade do cérebro ao fator tóxico. 

Hans Luxemburger4 estudou as doenças hereditárias e procurou mostrar a correlação dos fatores adquiridos e ambientais como sendo entrelaçados, tanto no conceito de ambiente como no conceito de desencadeamento das psicoses. 

3Karl Ludwig Bonhoeffer (Neresheim, Wurtemberg, 31 de março de 1868 – Berlim, 4 de dezembro de 1948) foi um neurologista e psiquiatra alemão que se opôs às teorias de Freud e Jung e aos programas de esterilização do regime nazista que inicialmente tinha apoiado. Ele era o pai de Dietrich e Klaus Bonhoeffer, executados por atacar Hitler. Casou-se com a neta do teólogo Karl von Hase (1800-1890) e pianista, Condessa Paula von Hase (1874-1951) com quem teve oito filhos. Dois de seus filhos faziam parte da resistência ao nazismo e foram assassinados pelo regime de Hitler. Sua contribuição mais conhecida é relacionada com o estudo que fez de psicoses exógenas, interpretando-as como reação sintomática. Estas foram conhecidas como reação exógena de Bonhoeffer. (Nota introduzida por Roberto Fasano a partir de informação da Wikipedia em espanhol: https://es.wikipedia.org/wiki/Karl_Bonhoeffer)

No processo de desencadeamento das psicoses que aparecem na vida do indivíduo existe um aspecto que é fundamental: o aspecto genético. Importante também é a esfera da personalidade que é atingida. Assim, numa família em que há a tendência para ser afetada a esfera afetiva, no quadro clínico é esta esfera que é atingida de preferência. 

Em segundo lugar, devemos considerar a atenuação do fator genético. A manifestação clínica é mais ou menos intensa conforme a atenuação da carga genética. 

Outro aspecto ligado com estes dois elementos é a época (isto é, o fator cronológico) em que se processa o desenvolvimento da personalidade. Por exemplo: se houver uma alteração na fase embrionária isto vai atingir todo o sistema nervoso central ainda em formação, implicando perda completa de todos os sistemas diferenciados da personalidade. Se a alteração se processar numa época mais posterior, quando o indivíduo já tem uma estrutura formada, o dano será menor do que no primeiro caso, isto se explica pelo fator cronológico e pela atenuação da carga genética.

Da mesma forma que determinadas funcionalidades psíquicas só aparecem em determinadas fases da vida do indivíduo, as doenças mentais só aparecem em determinada fase e isto é determinado geneticamente. 

Na dependência da época em que surge o distúrbio, seja ele endógeno ou ambiental, vai ser afetada uma ou outra das esferas da personalidade. Em primeiro lugar é atingida a esfera afetiva, depois a conativa e finalmente a intelectual, com o passar do tempo. 

No transcorrer da vida, na senilidade, se houver um fator genético relevante e´ no ambiente citológico que vai se produzir uma alteração. Atrofias corticais na senilidade são uma decorrência deste aspecto. O ambiente citológico modificado pela tendência genética dá um quadro clínico conforme o tipo da personalidade atingida. 

O ambiente citológico, sob a influência do fator genético, está envolvido no desenvolvimento e na configuração clínica das psicoses senis e pré-senis. Por outro lado, os quadros senis ou pré-senis são condições que dependem da época em que aparecem e isto vai modificar a maneira como se apresenta o quadro clínico: porque no caso dos quadros senis há uma tendência a alterações corticais difusas e nos quadros pré-senis há uma tendência a atrofias corticais localizadas. 

Correlativas às doenças senis temos no início da vida as oligofrenias. Entre as oligofrenias e as doenças senis temos as doenças desmielinizantes que aparecem tardiamente como decorrência do fator genético. O fator genético resulta em quadros mais ou menos graves, com maior ou menor comprometimento do sistema nervoso, na dependência da época em que aparecem. Na debilidade mental o que fica afetada é a função. Na deficiência mental grave e na moderada fica afetada a parte profunda do cérebro e as vias de ligação. 

Não podemos dizer que as psicoses senis e pré-senis sejam a mesma coisa, porque o substrato anatômico é o mesmo. As zonas afetadas são diferentes. Na psicose pré-senil de Alzheimer5, por exemplo, as atrofias são localizadas e se encontram principalmente na zona parieto-occipital. 

5Aníbal Silveira, apenas considerava Alzheimer à forma hoje denominada de Doença de Alzheimer precoce. A formas mais frequentes de demência atualmente, denominadas de Doença de Alzheimer (para se contrapor à Doença de Alzheimer precoce) ele denominava de Demência Senil. Contemporaneamente, o Alzheimer precoce ou “demência pré-senil”, é um tipo de Alzheimer raro que tem início antes dos 65 anos, normalmente entre os 40 e 50, e está relacionada a alterações genéticas hereditárias que levam a perda progressiva da cognição, resultando em sintomas como falha ou perda de memória, confusão mental, agressividade e dificuldade em fazer atividades de rotina diária. (Nota de Roberto Fasano)

Na moléstia de Pick6 o que se tem é uma alteração global que se inicia na zona orbitária passa para o giro cíngulo e daí para a convexidade parietal. No quadro clínico da moléstia de Pick há uma desorganização da personalidade, o indivíduo comete atos antissociais, não tem noção nenhuma, ao mesmo tempo que mentalmente ele vai apagando, sem noção de doença. No Alzheimer, ao contrário, o indivíduo tem noção de doença, ele compara o que ele é com o que foi. 

Na doença senil7 as funções não são todas comprometidas ao mesmo tempo. O indivíduo apresentará um comportamento eufórico, infantil, parece uma criança, esquece totalmente as coisas, fabula, mostrando ao mesmo tempo, expansividade com tendência à comunicação. No Pick não há tendência à expansão e fabulação, mas sim uma tendência ao embotamento progressivo. 

Quanto ao ambiente interno há dois aspectos a considerar: o anatômico estrutural e o dinâmico ou funcional. Isto se evidencia no estudo dos quadros desmielinizantes de Schilder8 e, posteriormente no de Jakob Creutzfeld9, isto é, há desmielinização na infância e na idade adulta. Isto também é observado nos quadros de Tay-Sachs10, no qual o resultado é um apagamento precoce da personalidade. 

6A Doença de Pick ou PiD é uma doença neurodegenerativa incomum causada por excesso de proteína tau nos neurônios conhecidos como corpos de Pick. Geralmente afeta o lobo frontal e/ou o lobo temporal danificando a capacidade de raciocínio, expressão de linguagem e autocontrole. É semelhante à doença de Alzheimer precoce, incidindo no mesmo período, entre os 40 e 60 anos. Também denominada DFT (demência frontotemporal). (Nota de Roberto Fasano)
7Demência senil, atualmente, é um termo genérico para se referir a quadros demenciais que incidem no período da senilidade (geralmente após os 70 anos). Atualmente guarda essa noção genérica podendo incluir a Demência arteriosclerótica (denominada atualmente de Demência multi-infartos) que geralmente incide entre os 60 e 70 anos e a Demência de Alzheimer tardia, como atualmente é denominada e que para Aníbal Silveira, correspondia à Demência Senil, cuja manifestação costuma ser após os 70 anos.
8Doença de Schilder ou Esclerose cerebral difusa de Schilder é uma doença com semelhanças com a esclerose em placas que atinge crianças e adolescentes. Manifesta-se por perturbações da visão com hemianopsia e cegueira, deterioração mental e paraplegia espástica. Tem evolução para a morte ao fim de poucos anos. (Nota introduzida por Roberto Fasano).
9Atualmente a doença de Creutzfeldt-Jakob é considerada uma doença por príons caracterizada pela deterioração progressiva da função mental, levando à demência, espasmos musculares (mioclonia) e andar cambaleante. Uma forma variante é adquirida ao comer carne contaminada. A doença de Creutzfeldt-Jakob geralmente ocorre espontaneamente, mas pode ser resultante da ingestão de carne contaminada ou herdada de um gene anormal. Primeiro, a maioria das pessoas fica confusa e com problemas de memória, depois os músculos começam a cambalear involuntariamente e perde-se a coordenação. A maioria das pessoas morre no período de quatro meses a dois anos. Geralmente, o diagnóstico pode ser confirmado pelo eletroencefalograma,análise do líquido cefalorraquidiano e ressonância magnética. Não há cura, mas os remédios podem aliviar alguns sintomas. (Nota introduzida por Roberto Fasano)
10Doença de Tay-Sachs e doença de Sandhoff são esfingolipidoses, distúrbios hereditários do metabolismo, causadas por deficiência de hexosaminidase que levam a sintomas neurológicos graves e morte prematura. (Nota de Roberto Fasano)

A doença de Niemann Pick11 também se manifesta na criança e leva rapidamente à morte. As doenças de Schilder e de Jakob Creutzfeld se manifestam mais tardiamente. A primeira na juventude e a segunda na idade adulta, mas com a mesma característica: desmielinização. Verificou-se que há nestas doenças uma alteração dos lípides. Hoje há uma tendência para considerar como sendo doenças autoimunes. 

Outra doença que parece ligada a fatores hormonais foi a Oligofrenia fenil-pirúvica (incapacidade de oxidar a fenil-alanina)12. Neste caso, a oligofrenia seria uma deficiência mental adquirida. Entretanto, ela é determinada geneticamente.

11Atualmente, a doença de Nielman-Pick é considerada um grupo de doenças aparentadas. A doença Niemann-Pick tipo A e tipo B ocorrem quando o corpo não tem as enzimas necessárias para decompor a esfingomielina. A doença de Niemann-Pick tipo C ocorre quando o organismo não consegue decompor o colesterol e outros lipídios. Os sintomas variam por tipo, mas podem incluir deficiência intelectual e problemas neurológicos. O diagnóstico toma por base os resultados de exames preventivos pré-natais, de exames preventivos no recém-nascido (para o tipo A e o tipo B) ou de uma biópsia do fígado. Não há cura para a doença de Niemann-Pick. Existem diferentes tipos de doenças hereditárias. Na doença de Niemann-Pick, ambos os pais da criança afetada carregam uma cópia do gene anormal. Como, em geral, são necessárias duas cópias do gene anormal para o distúrbio ocorrer, é comum que nenhum dos pais apresente o distúrbio. As esfingolipidoses ocorrem quando a pessoa não tem as enzimas necessárias para decompor (metabolizar) os esfingolipídeos, que são compostos que protegem a superfície celular e desempenham determinadas funções nas células. Existem vários tipos de esfingolipidoses além da doença de Niemann-Pick tipo A e tipo B: Doença de Fabry, Doença de Gaucher (a mais comum), Doença de Krabbe, Leucodistrofia metacromática, Doença de Sandhoff, Doença de Tay-Sachs. Há vários tipos de doença de Niemann-Pick. No tipo A e no tipo B, a deficiência de uma enzima específica denominada esfingomielinase causa o acúmulo da esfingomielina (um produto do metabolismo da gordura). No tipo C, existe um defeito na maneira pela qual as gorduras (lipídios) são movidas dentro de uma célula, o que causa o acúmulo de colesterol e outras substâncias adiposas. As formas mais graves tendem a ocorrer em judeus asquenazes. As formas mais leves ocorrem em todos os grupos étnicos. As crianças com o tipo A (a forma mais grave) não crescem adequadamente e têm vários problemas neurológicos. Essas crianças geralmente morrem por volta dos dois a três anos de idade. As crianças com o tipo B apresentam nódulos adiposos na pele, zonas de pigmentação escura e aumento do fígado, baço e gânglios linfáticos. Elas podem apresentar deficiência intelectual. As crianças com o tipo C da doença manifestam sintomas na infância, apresentando convulsões e deterioração neurológica. O tipo C é sempre fatal e a maioria das crianças morre antes dos 20 anos de idade. (Nota introduzida por Roberto Fasano).
12Um tipo constitucional de deficiência mental caracterizada pela combinação de deficiência mental com uma alteração bioquímica herdada no corpo. “Um certo tipo de defeito que se manifesta pela excreção na urina de um composto aromático, o ácido fenilpirúvico. A grande maioria desses pacientes são deficientes em baixo grau. A estatura e o desenvolvimento físico geral estão dentro dos limites normais, o tipo louro predomina em mais de 90% dos casos, coexistindo, geralmente, com olhos azuis, pele delicada e pálida. Além dos traços constitucionais, encontram-se em geral sinais neurológicos, os quais consistem em hipertonicidade muscular, aumento dos reflexos profundos e manifestações hipercinéticas como tremores, atetose, tiques. Numa pequena percentagem de casos, podem ser observadas tendências psicóticas acentuadas. A doença caracteriza-se, do ponto de vista bioquímico, por uma inibição no metabolismo da fenilalanina no estágio de ácido fenilpirúvico, sendo o paciente incapaz de oxidar esse ácido cetônico a uma taxa normal.” (Jervis, G., Archives of Neurology, 38, 1937) Também conhecida como doença de Folling. (Nota introduzida por Roberto Fasano a partir de: (https://www.redepsi.com.br/2008/02/22/oligofrenia-fenilpir-vica/).

Não podemos isolar a carga genética do fator ambiental. Assim, por exemplo: se um indivíduo sofre de uma psicose reativa desencadeada por um fator ambiental, só este fator não explica a psicose reativa.

Para que o indivíduo sofra uma psicose reativa é preciso que tenha uma predisposição genética para isto. 

No ambiente social, temos dois aspectos a considerar: a constelação familiar e a tendência genética.

Logo, se quisermos corrigir a neurose apenas através da constelação familiar, estamos incidindo em um erro. Existe um estudo feito por Franz Alexander13 em que ele mostra que as psicoses correspondem a alterações psicológicas profundas, enquanto as neuroses correspondem a alterações mais atenuadas. 

13Franz Gabriel Alexander (22 de janeiro de 1891 – 8 de março de 1964) foi um psicanalista e médico húngaro-americano, considerado um dos fundadores da medicina psicossomática e da criminologia psicanalítica. Foi um dos principais autores psicanalíticos em estudar a psicossomática e criou a terapia breve. (Nota de Roberto Fasano)

Ele relaciona estas alterações com o ambiente social. Mostra, entretanto, que o ambiente social se torna mais ou menos intenso para produzir uma alteração de acordo com a carga genética do indivíduo. Na histeria temos uma alteração profunda da personalidade de tal forma que o ambiente se torna muito neurogênico.

No grupo das chamadas psiconeuroses de Freud temos uma menor participação de estrutura da personalidade e o ambiente se torna menos neurogênico, podendo inclusive a psiconeurose independer dele.

 Quando há um grau maior de atenuação a estrutura da personalidade está menos atingida e temos uma reação neurótica. Neste caso uma simples ventilação dos problemas pode ser suficiente. 

Na página seguinte apresentamos o esquema de Franz Alexander, no qual o autor procura evidenciar a participação relativa da personalidade e do ambiente nos distintos quadros de psicose, neurose e neurose atual (reação neurótica).

ESQUEMA DE ALEXANDER