Apanhado geral das condições mórbidas

APANHADO GERAL DAS CONDIÇÕES MÓRBIDAS1

Os aspectos clínicos em Psiquiatria decorrem dos dinamismos psicopatológicos. Se não usarmos a psicopatologia, que subentende a patogênese, não se pode compreender claramente a divisão dos vários quadros clínicos em Psiquiatria: apenas a descrição do quadro em si não é suficiente. 

Se considerarmos o fato de que todas as condições mórbidas, que atingem uma determinada esfera da personalidade apresentam muitos sintomas em comum, se levamos em conta apenas a sua descrição, e não a patogênese dos sintomas e do quadro clínico, não chegaremos a um diagnóstico adequado. 

O diagnóstico é fundamental para a orientação terapêutica. De maneira que a Psiquiatria não baseada na psicopatologia à luz da patogênese é uma Psiquiatria falha, que não permite a indicação terapêutica adequada e que pode falhar neste aspecto fundamental de correção, pois não considera o dinamismo fundamental no quadro clínico. 

Dessa maneira, consideramos a Psiquiatria de um modo um pouco diverso de outros autores porque damos pouca importância para a descrição, embora a descrição do quadro seja o ponto de partida no estudo do paciente, mas a descrição em si, como técnica, é insuficiente porque não permite a necessária intervenção em um plano mais profundo da personalidade. 

A única orientação que corresponde ao nosso modo de ver é a de Kleist, que é por nós adotada. 

Kleist se distingue dos outros autores, mesmo dos construtores da Psiquiatria, como Kraepelin, Bleuler de certa maneira, além de outros. Todos eles, com exceção de Wernicke, consideravam apenas o aspecto descritivo, o que dá uma vantagem qualitativa a Kleist sobre os demais porque permite uma visão mais geral e mais estrutural das psicoses.

Recentemente, Leonhard seguiu em grande parte a linha do pensamento de Kleist. Mas, talvez por influência do ambiente, ou por não ter entendido plenamente a teoria de Kleist, ele ficou apenas na parte descritiva. Ele fez uma série de subdivisões que em geral correspondem à de Kleist, mas que tem como ponto central o comportamento clínico do paciente. Os psiquiatras, em geral, estão mais filiados à abordagem clássica de descrição dos quadros clínicos, procurar a etiologia, mas sem aprofundar pelo estudo da patogênese. 

Isso torna Leonhard mais próximo dos psiquiatras clássicos e mais fácil de utilizar que a teoria de Kleist. Vemos um reflexo disso nos trabalhos de Ficher, na Inglaterra. Esse autor estudou os quadros clínicos da esquizofrenia segundo Kleist e segundo Leonhard. Fez um estágio com Leonhard na Alemanha e depois escreveu um trabalho muito interessante sobre Psicopatologia. Quer nos seus trabalhos anteriores, quer nesse livro de Psicopatologia, vê-se que ele se baseia mais em Leonhard do que em Kleist. Porque é mais fácil. 

Quando Leonhard fez o estudo da genética nas doenças mentais, sob a influência do critério de Kleist, chegou a conclusões muito diferentes daquelas obtidas por autores que estudaram a genética em psiquiatria – porque se baseou na divisão genética dos quadros clínicos. Depois, Leonhard passou mais para uma linha descritiva e não retomou mais a linha de Kleist. 

Com o critério descritivo não há possibilidade de distinguirmos satisfatoriamente um quadro clínico, aquilo que corresponde a um quadro clínico geral, ao que corresponde à doença mental ou condição mórbida, que é um aspecto mais aprofundado, e quais as implicações genéticas que esse quadro apresenta. Dessa forma, proceder a pesquisa da genética psiquiátrica a partir de Leonhard ficou mais difícil, do que quando sob a direção doutrinária da escola de Kleist que permitia um estudo mais profundo da psicopatologia e da psiquiatria, porque utilizava o critério da patogênese, filiando os distúrbios mentais às alterações estruturais da personalidade.

A divisão clássica que havia na Psiquiatria, desde Kraepelin, foi a divisão das psicoses em endógenas e exógenas, sob o ponto de vista do modo em que se desencadeia o quadro clínico. No grupo das exógenas, o prognóstico seria melhor, uma vez que o quadro clínico se desencadeia por fatores perturbadores do ambiente, portanto, anulados esses fatores, desapareceria também o quadro clínico. Ao passo que as endógenas que aparecem sem nenhuma causa desencadeante, são interpretadas como mais graves, porque dependem de condições do indivíduo que não estariam acessíveis a modificações feitas pela terapêutica. 

Na realidade, logo se viu que isso não corresponde às psicoses em geral. Porque as psicoses exógenas, que decorrem do atingimento do sistema nervoso central podem ocasionar lesões que, com o tempo, podem se tornar mais graves, podendo chegar à demenciação.

Por outro lado, há psicoses endógenas, inclusive aquelas consideradas como irreversíveis, como a psicose maníaco depressiva, e outras que apareceriam por fases, que regrediam totalmente sem deixar nenhuma sequela. 

Portanto, há psicoses que aparecem sem nenhum fator desencadeante evidente e que se incluem no grupo das psicoses fásicas, que se resolvem sem deixar nenhuma sequela. Portanto, o critério inicial de que as psicoses exógenas são benignas porque desaparecendo as causas desaparece o efeito, ao passo que as endógenas, por aparecerem sem fatores desencadeantes evidentes, seriam graves porque não há meio de interferir – seria falho porque os dois grupos envolvem psicoses com evolução e com etiologias diferentes. 

Nesse caso foi necessário, como Kleist observou, reformular os grupos das Psicoses quanto à gênese. Na realidade, as psicoses exógenas correspondem a fatores perturbadores do ambiente, mas se atingem o organismo do indivíduo é também uma condição extrínseca ao sistema nervoso, ao cérebro, ao encéfalo. Logo, embora sendo exógena em relação ao organismo é também exógena em relação ao cérebro – quando atinge diretamente o organismo e apenas secundariamente o sistema nervoso.

As formas endógenas surgem sem nenhum fator desencadeante, mas essas surgem ou como alteração do ambiente celular, quer dizer, do sistema nervoso de sustentação, ou como alterações diretamente ligadas com o fator genético: assim, representam duas modalidades também. 

No esquema de Luxemburger (apresentado a seguir como figura I), verificamos que as condições mórbidas podem ser caracterizadas, quanto ao aspecto, em fenotípicas, paratípicas e genotípicas. 

Nas psicoses endógenas temos uma desorganização intrínseca do sistema nervoso, dos neurônios, e aquelas que decorrem do ambiente celular mesmo do sistema nervoso. Portanto, há uma duplicidade de ação num sentido e no outro. O ambiente celular corresponde ao sistema de sustentação do sistema nervoso: a neuroglia, os capilares, a vascularização, dentre outras condições. Em decorrência disso, Kleist propôs a divisão das psicoses em alógenas, somatógenas e neurógenas.

As alógenas são as que o fator patogênico vem apenas do ambiente exterior. As somatógenas são as que vem do ambiente exterior, mas atingem, primariamente, o soma, o organismo e, secundariamente, provocam alterações no sistema nervoso. As neurógenas são intrinsecamente ligadas com o sistema nervoso. 

Assim, as somatógenas são aquelas que estão ligadas com o organismo em geral e com o ambiente celular do sistema nervoso, enquanto as neurógenas são ligadas com o gene, com a contribuição genética, com o genoma do indivíduo. Isso permite uma caracterização mais precisa dos quadros clínicos. 

A psiquiatria norteada pelo critério descritivo não estabelece essa distinção entre uma psicose alógena, somatógena ou neurógena, nem permite estabelecer, com certa precisão, o seu prognóstico.

A psiquiatria orientada pela patogênese verifica como a carga genética do indivíduo interfere na configuração do sistema nervoso, na sua estrutura e no seu funcionamento, além disso, estabelece a susceptibilidade maior ou menor do fator tóxico, do fator alógeno, isto é, elementos diretamente ligados à carga genética. Tal fato foi verificado não com estudos diretamente ligados com Kleist mas com estudos feitos por von Verschuer. Esse autor era geneticista e estudou com gêmeos univitelinos e bivitelinos e verificou que muitas das manifestações clínicas, da clínica em geral, estão ligados à carga genética e não do fator tóxico, ou infeccioso, ou qualquer outro. Um caso que Von Verschuer cita é o da pneumonia que pode ter uma evolução de hepatização ou pode, como é comum, resolver-se rapidamente. Assim, essa doença que aparentemente decorre apenas do fator tóxico, na realidade traduz no seu comportamento clínico apenas a susceptibilidade genética. Na tuberculose isso é mais evidente ainda. 

A consideração das psicoses como determinadas geneticamente expressa a parte principal e central da concepção de Kleist. Seguimos essa concepção porque corresponde melhor ao modo de interpretar a patologia e, especificamente, a psiquiatria. Como ainda vamos ver, um grande número de psicoses neurógenas evolui por fases, não deixam nenhuma sequela e são totalmente reversíveis. Por outro lado, há aquelas que evoluem por surtos e que levam o indivíduo ao estado demencial, como é o caso das formas progressivas na esquizofrenia, na acepção de Kleist. E há outras, também determinadas geneticamente, que apresentam um feitio clínico atípico, pouco compreensível pelo aspecto descritivo, porque envolve várias zonas da personalidade. 

Dessa forma, vemos que a abordagem psiquiátrica de fundamentar o diagnóstico pela avaliação da carga genética de um indivíduo revela dois aspectos: 

  1. quanto a patogênese geral, isto é, porque motivo esta ou aquela esfera da personalidade são atingidas, porque uma mais que outra, caracterizando, portanto, a delimitação geral do quadro clínico e a forma de sua evolução;
  2. quanto à patogênese particular, isto é, a expressão do quadro clínico que traduz a participação dos sistemas cerebrais atingidos pelo processo; esse fato não significa que, necessariamente, haja alterações orgânicas, lesionais, essas podem ser apenas funcionais e mesmo reversíveis. 

O psiquiatra deve estar em condições de estabelecer com os dados necessários, através de uma observação adequada, o tipo clínico, a hipótese diagnóstica e o prognóstico. Logo, o diagnóstico no âmbito da escola de Kleist não decorre da avaliação sobre a evolução do quadro clínico – por exemplo, considerar que se trata de uma psicose progressiva porque o paciente tem cinco anos de doença -, mas na avaliação da carga genética do indivíduo em correlação com o seu quadro clínico, de modo a fundamentar uma previsão sobre o seu decurso, isto é, verificar se ele será ou não progressivo. Naturalmente, isso depende de vários fatores, entre eles, da experiência do clínico, mas queremos ressaltar a importância da técnica usada no exame clínico e do conceito que se utiliza para estabelecer esse exame.

Assim, se determinarmos, como fez Kleist, o grupo das psicoses neurógenas, em que algumas evoluem de modo reversível e outras de forma progressiva, temos: 

  1. psicoses reversíveis, nas quais a carga genética, isto é, a maneira como se exprime o genoma do indivíduo abrange elementos da patogênese, que torna o caso benigno, com tendência à remissão integral dos sintomas;
  2. psicoses progressivas, que evoluem para um estado demencial, em um período de tempo variável, segundo o caso clínico e, principalmente, conforme a carga genética do indivíduo.

Algumas das psicoses reversíveis surgem esporadicamente, outras, por fases previsíveis. Dessa forma, as psicoses reversíveis podem ser distinguidas nas que evoluem por surtos e nas que evoluem por fases. Se não utilizamos esse critério patogênico quanto ao quadro clínico, portanto, quanto à configuração dos sintomas, não temos um ponto de apoio para fazer o prognóstico. 

Vemos então como é frequente um paciente ser considerado esquizofrênico, porque apresenta uma doença reversível por surtos. Isso foi o primeiro embate de Kleist, com a concepção clínica de Bleuler e de Kraepelin: havia um paciente que deveria ir ao estado demencial, mas o processo se detinha em uma certa fase da evolução, deixando apenas defeitos de personalidade ou com remissão completa dos sintomas.

Portanto, a demência precoce caracterizada pela fase demencial logo no início da doença, teve que ser distribuída em vários grupos, uns que chegavam à fase demencial, e outros que não levavam à demenciação, por falha no critério utilizado para o diagnóstico, que apenas levou em conta a descrição clínica. Isto é, os casos que, descritivamente, pareciam ser um surto esquizofrênico, na realidade expressavam o surto de uma psicose benigna reversível, com uma configuração clínica comparável à esquizofrenia, que é uma forma progressiva. 

Outras, como a psicose maníaco depressiva surgem por fases, mas muitos quadros clínicos aparecem por fases e, no entanto, não são psicose maníaco-depressiva.

O surto psicótico é um processo que rompe sem qualquer relação direta com a configuração clínica pré-mórbida do paciente: o quadro surge bruscamente, depois desaparece, podendo não mais se repetir.

No caso das psicoses fásicas há uma repetição: se pode prever o comportamento do paciente na fase psicótica, comparando com o que ele era na fase pré-mórbida, correspondendo ao conceito de quadro homônimo, na acepção de Kleist.

Como os autores, em geral, não levaram em conta o aspecto genético, como fez Kleist, passaram a procurar explicações para os casos individuais. Daí, a noção de “surtos delirantes dos degenerados” dada por Magnan, no século passado, época em que se considerava a doença mental como sintoma de degeneração. Lombroso utilizou isso na psiquiatria forense, na criminalidade, e os autores, em geral, adotaram essa ideia na psiquiatria clínica: as manifestações foram interpretadas como atavismo do indivíduo. Quando verificaram que o indivíduo podia ter manifestações dessa ordem – e depois regredir completamente o quadro clínico -, passaram a dar esse nome de “surto delirante dos degenerados”: seriam pacientes com tendência para a “degeneração”, mas que não eram permanentemente anormais. 

Na realidade, esses surtos não indicavam tendência para uma “psicose crônica dos degenerados”. Pelo contrário: poderiam ocorrer em indivíduos perfeitamente normais e que, bruscamente, tinham um surto dessa ordem, modificando sua maneira de trabalhar, de ligar-se com os demais e que mais tarde voltariam desse surto sem deixar nenhuma sequela. Assim, definitivamente, na concepção de Kleist, o surto é uma maneira de evolução do quadro clínico que pode ser, geneticamente, prevista. Por essa razão, incorporamos a análise da carga genética para interpretar a patogênese da doença mental.

Em síntese: a carga genética traduz a tendência, maior ou menor, concentrada ou diluída, em uma determinada família, de ocorrência de psicoses. Dessa maneira, se torna possível distinguir dois grupos de psicoses: o grupo das psicoses endógenas, com maior concentração genética, de caráter permanente ou progressivo e, outro grupo, com uma diluição dessa carga genética, constituído por psicoses benignas, com tendência à remissão integral dos sintomas.

O grupo das psicoses endógenas, psicose maníaco depressiva e esquizofrenia, traduzem no colorido geral do quadro clínico, a maneira como as diferentes esferas da personalidade é atingida no processo, sem haver nenhuma causa tóxica ou infecciosa. 

O grupo das psicoses benignas, com remissão integral dos sintomas2, é o segundo a ser considerado e que traduz na sua patogênese as áreas cerebrais envolvidas dinamicamente, e não por lesão: expressando o quadro clínico na sua configuração particular, conforme os sistemas cerebrais envolvidos, isto é, reiteramos, a sua patogênese. Logo, temos a patogênese geral, que corresponde aos dinamismos e a patogênese cerebral que dá os sintomas do quadro clínico.

Um outro grupo que integramos aos quadros endógenos é o formado pela Epilepsia e pela Oligofrenia, que apresentam uma condição permanente, e não progressiva.  

Na concepção de Kleist é possível estabelecer essas correlações porque ele usou o critério de filiar os distúrbios mentais às manifestações normais correspondentes e compreendendo tanto uma como outras, ligadas à estrutura cerebral. Por isso, desde o início, ele reuniu esses dois aspectos – a patologia e a fisiologia cerebral -, na técnica de estudar cada quadro clínico de per si. 

Para situar a teoria de Kleist, no contexto geral da psiquiatria, temos que estudar a sua base teórica precedente que foi dada por Wernicke. Carl Wernicke, que faleceu em 1905 em um acidente na floresta negra, tinha estabelecido a correlação entre as esferas psíquicas e o quadro clínico, que foi retomado e ampliado por Kleist. Wernicke filiava o quadro clínico à estrutura cerebral e dividia as esferas da personalidade em dois tipos: autopsique e alopsique, que eram conceitos correntes na ocasião. 

Para Wernicke, o indivíduo poderia ter um processo mórbido qualquer, lesional, orgânico, dinâmico, funcional, que envolvia a esfera alopsíquica, dando um colorido particular ao quadro clínico, com alucinações, com conceitos delirantes etc. Ou poderia atingir a esfera autopsíquica, que vai interferir com a noção de si próprio, com a orientação quanto a si mesmo, quanto ao próprio corpo etc. Essas duas esferas de Wernicke explicavam os processos clínicos de todas as patologias mentais. Ele escolheu Kleist como seu seguidor, embora fosse um de seus discípulos mais novos. Em 1908, Kleist retomou as psicoses descritas por Wernicke, como a Psicose da Motilidade – descrita como um processo característico que aparecia de um modo espetacular, caracterizado por mobilização excessiva, motilidade desordenada e que chamava a atenção, imediatamente, como se fosse uma mania por causa do deslocamento contínuo do indivíduo e da produção excessiva, no aspecto motor. Wernicke a denominou como Psicose da Motilidade por se tratar de um aspecto da autopsique, que seria a noção de si próprio, a euforia, o bem-estar, que seria característico da mania, mas, na verdade, correspondia a um surto de excitação psíquica com euforia. 

Em 1911, Kleist estudou esse grupo da Psicose da Motilidade com um critério mais rigoroso: era necessário fazer uma distinção dos pacientes que estavam arrolados por Wernicke, como tendo Psicose da Motilidade. Assim, Kleist verificou que alguns desses pacientes pertenciam ao grupo das catatonias, mais precisamente da forma hipercinética, que depois evoluíram para o estado demencial.

Dessa forma, desde o início, Kleist percebeu a distinção daquilo que era realmente vinculado com certo diagnóstico com o que aparentava ser, apenas, como descrição. A partir dessa primeira contribuição, Kleist presumiu que era necessário fazer um desmembramento dos diferentes quadros clínicos, ampliando os seus estudos aos pacientes que tinham sido estudados por Kraepelin e mais tarde por Bleuler. Isto levou Kleist a seguir uma rota completamente diversa de ambos: Kraepelin filiou os diversos quadros clínicos a um grupo único (esquizofrenia, psicose maníaco depressiva e a epilepsia); Bleuler fundiu todas essas, e mais outras pela descrição do quadro clínico, em um grupo que chamou de esquizofrenia. 

Sucessivamente, Kleist dissociou os vários quadros clínicos, acompanhando o paciente com catamnese e com a anamnese objetiva retrógrada, e verificou que os pacientes formavam um grupo completamente heterogêneo, onde não era possível aplicar um conceito único. Isso foi característico do modo inicial de estudar de Kleist. 

Em seguida, fez um estudo pela patogênese cerebral desses dois grupos de Wernicke – alopsique e autopsique – e verificou que também esses dois grupos deveriam ser desmembrados quanto à concepção de filiação dos quadros clínicos aos sistemas cerebrais. Ele mostrou que a Autopsique é uma esfera que envolve a parte afetiva, profunda instintiva, e a Alopsique, é uma esfera que corresponde à manifestação mais diferenciada do próprio indivíduo e que subentendia a ligação com o mundo exterior, em geral, e no aspecto social, tanto no plano das relações interpessoais, como no aspecto mais abstrato, com filiação à ancestralidade e à concepção religiosa. 

Isto remeteu Kleist à necessidade de aprofundar a diferenciação das esferas. Assim, Kleist desmembrou na esfera Autopsique, uma parte que ele chamou de Timopsique, que se referia mais à parte afetiva porque é a reação afetiva do indivíduo que é atingida de preferência; uma outra parte que ele chamou de Somatopsique, que se referia a uma ligação com o próprio corpo do indivíduo e a Autopsique propriamente, que se referia à própria identidade do indivíduo. 

Em outras palavras, o indivíduo toma contato com o mundo em três níveis: integrando as reações afetivas da situação (Timopsique), integrando os dados proprioceptivos, a noção de si próprio quanto ao aspecto somático (Somatopsique) e integrando a parte que lhe permite a identificação de si próprio no sentido abstrato, a noção de si próprio (Autopsique). Importante assinalar que essas relações não se dão no sentido intelectual ou cognitivo, mas sim no sentido afetivo. Portanto, todas têm em comum o contato que o indivíduo estabelece, a integração dos estímulos que ele estabelece no plano afetivo, embora ele refira só aos impulsos e instintos, ou só ao corpo ou à noção subjetiva de si próprio.

Do mesmo modo, diferenciou a Alopsique como constituída de uma parte que corresponde àquilo que vem do mundo exterior, a Alopsique propriamente dita, que traduz o contato afetivo com o mundo que rodeia o indivíduo e que só pode se dar através dos sentidos, dos órgãos sensoriais. E uma outra parte, que mantem o indivíduo conectado com um nível mais social, mais interpessoal, que Kleist chamou de Cenopsique, ceno vem do grego koinos (κοινος), ligação com os demais no plano geral, afetivo.

Finalmente, uma parte conectada com um sentido mais global, que ele chamou de Holopsique, envolvendo um plano mais abstrato, religioso. Vejam que a distinção que Kleist fez das esferas foi mais completa e mais complexa que a de Wernicke. 

Além disso, Wernicke situava essas duas esferas em áreas específicas do cérebro e Kleist mostrou que isso não é possível, mas sim o dinamismo que permite o contato com o mundo exterior é o que constitui as esferas de Kleist. Assim, todas elas são reações afetivas, mas, na Timopsique, o indivíduo reage intrinsecamente com a própria afetividade, quer no sistema de impulsos, quer quando sente realmente a realidade exterior de um modo afetivo. Na Somatopsique, ainda há um contato com o mundo exterior, mas no sentido de experimentar as próprias reações, enquanto na Autopsique o indivíduo tem a noção de si próprio. Ora, tanto a Timopsique como a Somatopsique, em parte, integram impulsos que vem da parte básica fundamental do indivíduo, no processo de desenvolvimento da sua personalidade, portanto, vinculadas a zonas mais profundas da estrutura de personalidade. Não há uma relação espacial entre um aspecto e outro, mas sim com os dinamismos: o que produz os dinamismos da Timopsique são reações mais profundas que estão ligadas ao hipotálamo e com o tronco cerebral. A Somatopsique tem uma parte relacionada com as noções proprioceptivas do indivíduo e uma parte ligada ao tato e de contacto com o mundo exterior, através das impressões ou das reações musculares e envolve, portanto, uma zona parietal, parte anterior central na convexidade do cérebro. A Autopsique envolve as mesmas zonas, mas com uma função diferente, de integrar todos os aspectos a uma unidade subjetiva, portanto, como identidade de si próprio: as zonas da convexidade cerebral são as mesmas, quer na tomada de contato com o mundo exterior, através das sensações, quer através da noção abstrata do mundo exterior. 

A Alopsique subentende fundamentalmente os sentidos. Todos eles têm uma representação cortical e têm uma representação na esfera afetiva. Kleist demonstrou, em relação à olfação, uma representação cortical ligada fundamentalmente à parte afetiva do indivíduo e, ao mesmo tempo, ligada à noção do mundo exterior: há sempre um aspecto ligado, fundamentalmente, à parte afetiva e um aspecto ligado com o mundo exterior, em segundo lugar. 

Foi interessante porque quando se estabeleceu a localização no cérebro, a olfação foi vinculada à parte primitiva do cérebro, envolvendo uma integração pelo corpo caloso, com uma parte localizada no lobo piriforme do cérebro e outra na parte posterior do lobo temporal: duas zonas, uma ligada à parte paleocerebral e outra neocerebral e ambas ligadas à olfação. Foi Kleist quem primeiro demonstrou esse fato.

A ligação no mundo exterior, mesmo no plano instintivo, como por exemplo, a relação sexual, nos animais menos diferenciados, decorre muito dos estímulos olfativos que surgem como código, como informação para a zona afetiva do cérebro. 

De modo que todas as frações alopsíquicas têm uma fração que corresponde a uma zona básica, situada na parte mais primitiva – olfativa, gustativa e depois uma fração ligada com o mundo exterior – audição, visão, tato – na parte da convexidade cerebral. 

A Cenopsique é uma parte mais diferenciada, pois se refere às relações interpessoais, o eu social: mas também tem uma parte localizada na zona primitiva do cérebro, a zona orbitária e, uma parte de regência localizada na convexidade cerebral.

Somente Kleist fez essas verificações que hoje nos permite o estudo da fisiologia comparada e do estudo da personalidade também no sentido comparado. De modo que a própria relação com o mundo exterior, em um plano mais diferenciado, como na Cenopsique (vinculação social) traz um componente que é ligado com a zona orbitária do cérebro.  Isso é muito importante na clínica para compreender o dinamismo envolvido na patogênese do quadro clínico de pacientes com graves distúrbios sociais que apresentam alterações na zona orbitária do cérebro.

A Alopsique está também ligada com o mundo abstrato do indivíduo; então esta seria, apenas, uma função cortical da convexidade cerebral. As zonas que perfazem funções abstratas, envolvem as mesmas áreas que as da Autopsique, logo, não há uma localização exclusiva para um aspecto ou para outro. 

A zona cortical frontal é que perfaz a função da abstração de todos os dados ligados com o mundo exterior. Essa distribuição das esferas de Kleist não é a mesma das esferas da personalidade que utilizamos, que considera três esferas: a da afetividade, a da atividade e a da inteligência. Por essa razão, podemos, perfeitamente, compreender as esferas de Kleist: não há incompatibilidade entre ambas, apenas o modo de interpretar as diferencia. O fenômeno fundamental é o da observação dos fatos, agora sua interpretação pode ser de uma maneira ou de outra, dependendo da teoria que usamos para interpretá-los. No entanto, se os fatos contradisserem a teoria, então a teoria deve ser reformulada.

  1. Texto organizado por Roberto Fasano, em 2003, a partir de aula de Aníbal Silveira, proferida no curso de pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, no ano de 1971, sem referência de quem a compilou. Revisto em 26/09/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano. ↩︎
  2. Aníbal Silveira denominou esse grupo de Psicoses Diatéticas, apontando para os fatores patogênicos exteriores na sua patogênese (diátese/tensão). Aqui se coloca a linha divisória da Psiquiatria Biológica (domínio da loucura como expressão individual) da Psiquiatria orientada pela patogênese (que leva em consideração, para além do cabedal genético dos indivíduos, a dimensão coletiva dos fatores patogênicos a que estão submetidos: o contexto social e histórico nos quais estão imersos, bem como com a sua vinculação com o mundo do trabalho e, no âmbito deste, com as condições e seu processo de trabalho. ↩︎