Aperfeiçoamento1
(Lúcia Maria Salvia Coelho)
Na individualidade temos o grupo básico dos instintos que são as funções de conservação, individual e da espécie. Em seguida, temos um grupo de funções que não se limitam exclusivamente à individualidade, mas que promovem o seu aperfeiçoamento no ambiente. Estas funções intermediárias permitem a continuidade do processo de socialização. Assim, as funções afetivas acham-se de tal modo integradas, que no comportamento individual se tornam difícil distinguir os aspectos derivados das funções egoístas e aqueles provenientes das funções altruístas. De fato, toda relação com o mundo exterior subentende o dinamismo social: quer esta inter-relação se estabeleça de modo físico, biológico, quer ela decorra de uma ligação interpessoal. Sempre é o elemento social que rege a dinâmica de personalidade.
O movimento da vida, filogeneticamente e ontogeneticamente, consiste em um processo de crescente autonomia. Este processo se inicia com a situação de separação do feto do organismo materno, em seguida do ambiente familiar ou imediato e, finalmente, ele se completa como capacidade de dar de si, isto é, de realização do homem como agente social. Durante o seu desenvolvimento o indivíduo aprende a relacionar-se com o ambiente de um modo novo, cada vez mais ativo e menos dependente.
O grau e a natureza do conflito ou de facilidade com que o ser humano se aperfeiçoa varia conforme o nível de amadurecimento psíquico: todo o indivíduo passa de uma situação de maior dependência, na fase fetal, à manifestação da necessidade de submeter-se aos imperativos do ambiente – cada vez mais intensos e complexos. Porém o impulso para o aperfeiçoamento, para o atingimento de uma adaptação mais plena e flexível ao ambiente, acha-se presente em toda espécie animal.
O indivíduo aperfeiçoa-se de duas maneiras distintas, mas complementares: pela destruição dos obstáculos e pela construção dos meios. Menos egoístas que os três instintos que se referem essencialmente à sobrevivência vegetativa, os instintos de aperfeiçoamento são especialmente relacionados à vida animal, a qual ficaria limitada a suas funções as mais elementares sem o seu indispensável concurso. Os instintos de conservação são menos nobres e mais enérgicos que os instintos de aperfeiçoamento, os quais já supõem uma certa diferenciação nos seres que os manifestam. Entretanto, o aperfeiçoamento permanece subordinado aos instintos de conservação, pois como observa Audiffrent, antes de aperfeiçoar é preciso conservar.
À medida que o indivíduo evolui as ligações entre as funções instintivas e as demais funções psíquicas se tornam mais complexas. A participação de cada uma das funções de aperfeiçoamento traduz-se de modo mais diferenciado e mais dependente em relação ao dinamismo subjetivo e às condições ambientais.
Destruição
A própria expressão da vida corresponde a um processo contínuo de assimilação e desassimilação de materiais em um meio próprio ao organismo considerado. Neste sentido a desassimilação já traduz um aspecto rudimentar de destruição e a assimilação corresponde primariamente à construção.
Todo ato nutritivo se associa à tendência de destruir objetos, alimentos, a mastigar: esta destruição corresponde a uma necessidade fisiológica cujo correlato psicológico não pode ser considerado propriamente como agressão. A vida não poderia ser mantida sem esta destruição inicial. O simples ato de se alimentar supõe a supressão de um animal ou de um vegetal e, o morder, o mastigar é indispensável para a conservação individual.
A expressão do instinto de destruição coincide com a chamada fase oral agressiva – quando a criança descobre o mundo mordendo os objetos ou desmontando-os. Este período é concomitante ao aparecimento dos dentes. Então, se no caso ela fora ainda amamentada, a criança poderá morder o seio materno provocando assim, por parte da mãe uma reação de repulsa. Eventualmente, através da emoção ligada ao sentimento do apego, a criança poderá estabelecer um nexo entre esta experiência que é nutritiva e ao mesmo tempo social. Tal nexo emocional carregado de valor afetivo poderá intervir no desenvolvimento psicológico da criança.
Já em nível mais diferenciado de seu desenvolvimento, a criança manifesta este impulso para a destruição de modo diverso: gosto espontâneo por destruir objetos, em desmontá-los, em jogá-los ao chão. Tal tendência associa-se ao impulso de apropriar-se dos objetos, de pô-los na boca, de mordê-los ou mesmo de engoli-los. Este comportamento denota não apenas uma tendência agressiva, mas, sobretudo, uma curiosidade, um desejo de dominar o ambiente, de conhecer diretamente a situação. Mesmo em suas relações com outros seres humanos a criança pode manifestar esta tendência com uma carga maior ou menor de agressividade contra as pessoas que se opõem à satisfação de desejos infantis. Às vezes durante um acesso de agressividade – quando a destruição se associa à coragem – a criança pode mesmo voltar sua raiva contra si própria, especialmente quando ela se sente impotente para vencer o obstáculo. Então, ela poderá ferir-se, atirar-se no chão, morder-se.
Há na idade adulta esta tendência para a destruição pode expressar-se tanto através de atos propriamente agressivos – guerra, ato colérico, tortura – como através de uma atividade intelectual – espírito crítico, mordaz, polêmico, sarcástico. Descrevemos muitas vezes os indivíduos com este comportamento como apresentando um “caráter destrutivo”.
Entretanto, em nível subjetivo, esta função não deve ser julgada boa ou má, pois que ela apenas estimula o indivíduo para estabelecer um contato específico com o ambiente. Além disso, a expressão da destruição associa-se a um ato intelectual de dedução – desmontagem dos fenômenos concretos, de análise, de curiosidade e sobretudo de progresso para o conhecimento. Gaston Bachelard em sua análise sobre as formas de conhecimento científico assinala a este propósito: a necessidade de criticar e destruir as falsas teses ou de “conhecer contra um conhecimento anterior”.
Assim, a destruição de obstáculos é um impulso inato e indispensável ao aperfeiçoamento humano. Diante de situações de privação, de frustração, tanto no nível familial, como coletivo, e, em relação às necessidades vitais – alimento, abrigo, aquecimento – ou ainda, em relação às aspirações mais socializadas e complexas – necessidade de afeto, de reconhecimento social, de liberdade de opinião – o impulso destrutivo acha-se presente de modo a permitir uma reação por parte do indivíduo. Portanto, ao lado das atitudes construtivas existem as destrutivas e as ofensivas. O impulso para a destruição será tanto mais poderoso quanto maior for a privação a que se acha submetido o indivíduo. Ele se revolta contra os obstáculos que se opõem à sua autonomia. Diante de uma frustração contínua ou intensa de suas necessidades biológicas ou de suas necessidades sociais mais diferenciadas, o impulso de destruição aliado à coragem atinge a um nível dificilmente controlável pelo meio social. Frequentemente, o grupo social canaliza o impulso destrutivo através de formas de propaganda e de ensino estimulando manifestações tais como as que ocorreram na época do nazismo ou em diferentes formas de racismo.
De modo análogo ao que ocorre com os demais instintos, o destrutivo sofre a influência do ambiente e a sua expressão depende da participação das funções conativas e das intelectuais. Apenas esclarecido pela razão ele será útil socialmente, pois enquanto instinto este impulso será cego. Quando moldado por influências sugestivas e irracionais do ambiente este impulso pode traduzir-se como um processo intelectual caracterizado como fanatismo ou pode desencadear atos de crueldade contra os demais indivíduos (perseguições, agressões políticas, religiosas, raciais); ou ainda, pode voltar-se contra o próprio indivíduo, traduzindo-se em diferentes graus como ascetismo, autodepreciarão, suicídio.
Construção
Quando a criança expressa em seu comportamento o impulso destrutivo e o construtivo ela já se acha em uma fase mais diferenciada de relacionamento com o ambiente. Ela já é capaz de transformar o estímulo recebido em um comportamento pessoal e original.
O impulso construtivo já supõe o amadurecimento das funções conativas e se traduz como tendência da criança em intervir no ambiente de modo a modificá-lo não simplesmente através da destruição de objetos, mas especialmente através das realizações psicossociais. Nesta fase a criança já consegue apreender a totalidade das experiências e ela já percebe os outros como seres autônomos, particularmente ela já reconhece na mãe um ser humano independente e completo e não um simples conjunto de estímulos externos que atuam de modo positivo ou negativo em relação à criança. Nesta fase do desenvolvimento a atividade infantil já não se refere diretamente às necessidades instintivas de conservação, mas a criança já manifesta sua curiosidade pelo ambiente e seu impulso para nele intervir. A partir das construções concretas e das construções mentais a criança se aperfeiçoa. Atinge uma forma de adaptação emocional que a torna capaz de reagir de modo autônomo e intencional aos fatores externos. Além disso, ela revela interesse em realizar …
Angyall assinala esta tendência básica humana e a denomina de “impulso para atuar construtivamente no ambiente”. Esta tendência apesar de ser basicamente individual – manifestando-se como busca de autonomia – evolui num sentido social, permitindo a formulação de novas concepções e a efetuação de novas realizações concretas. Ela evolui segundo a disposição do indivíduo em passar de um estado de maior dependência (especialmente de necessidades de proteção física) a uma situação de maior autonomia em relação ao ambiente. Assim, a expressão das funções de construção associada à necessidade de aprovação, estabelece as bases para o desenvolvimento da função social de ordem mais diferenciada e superior: o amor universal ou a bondade.
O impulso para a construção é um impulso para o progresso. Schachtel observa que a ênfase de Freud no passado ontogenético era tão acentuada que tendia a exagerar o poder do passado na determinação da vida presente e mesmo na evolução para o futuro. Freud reduz a importância da atitude humana já expressa desde a primeira infância para a busca espontânea e desinteressada de uma variedade crescente de estímulos do ambiente. O conceito negativo do prazer tal como é concebido pela psicanálise exclui deste fenômeno poderoso de expansão e de aperfeiçoamento individual. Schachtel comenta ainda que nos conceitos e na própria linguagem de Freud ao descrever esta evolução individual que se inicia na vida uterina e vai até a integração social do adulto, abundam imagens de guerra, coerção, de compromisso relutante, de necessidades bloqueadas, de sacrifícios impostos, de modos de controlar ou de iludir as pressões internas, e de regressar à paz original, ao estado de ausência de consciência e de eliminação de estímulos novos tal como ocorre durante o “repouso fetal”.
No homem a satisfação em realizar uma determinada atividade não se limita à satisfação instintiva da fome, do desejo sexual, da posse. Já observamos na criança que o seu interesse pelos objetos do ambiente independe destes terem um caráter de instrumento para a satisfação instintiva.
O mesmo se passa em relação à ligação afetiva que a criança estabelece com os demais seres humanos. Cada atividade do indivíduo pode implicar em um envolvimento pessoal pleno e em uma satisfação em si mesma independentemente de objetivo final ao qual ele se propõe.
- Apostila produzida na Faculdade de Medicina de Jundiaí, como complemento ao curso de Psicologia Médica, para o curso de Psicologia Médica para os médicos residentes em Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Jundiaí e para o Curso de Teoria da Personalidade para a Sociedade Rorschach de São Paulo. Composta em agosto de 1978. Já considerada em parte superada por sua autora que já reescreveu o tema sob novas perspectivas. No entanto, eu, Roberto Fazzani redigitalizei e formatei o grupo de apostilas ao qual esta pertence pois poderão ser úteis na compreensão inicial da Teoria Sociológica da Personalidade por nós adotada. ↩︎