APONTAMENTOS TEÓRICOS E TÉCNICOS PARA A INVESTIGAÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE AGRAVOS À SAÚDE MENTAL E O TRABALHO
Francisco Drumond Marcondes de Moura
Introdução
O trabalho compromete os vários sistemas biológicos dos trabalhadores de diferentes formas, produzindo não apenas disfunções e lesões somáticas, mas também reações psíquicas, podendo desencadear processos psicológicos e psicopatológicos especificamente relacionados às condições do trabalho.
Neste contexto atual, as profundas transformações do mundo do trabalho, que vem ocorrendo desde meados dos anos setenta – e que ainda estão em processo -, sobrepôs uma nova situação de desgaste emocional para aqueles que “trabalham para viver”: uma fração cada vez menor de trabalhadores efetivamente integrados e o restante vivenciando uma condição de vulnerabilidade e de desfiliação progressiva do mundo do trabalho (Castel, 1998): aspectos estruturais jamais vistos em outros períodos do processo de desenvolvimento do modo de produção capitalista, compreendido no seu conjunto e globalmente (Antunes, 1995).
Este processo de reestruturação produtiva e organizacional cujas inflexões apontam para o esgotamento do modelo taylorista-fordista, estabelece novos cenários produtivos: a acumulação flexível, desemprega ou precariza praticamente um bilhão de pessoas, o equivalente a um terço da força de trabalho mundial (Antunes/1995, Brito/1995).
Esta realidade, para alguns, coloca em questão a centralidade do trabalho na sociedade contemporânea. De fato, este contexto de desemprego estrutural revela uma diminuição do proletariado industrial e o aumento constante da subproletarização, verificada pela expansão de outras formas de organização do trabalho: terceirizações, trabalhos em tempo parcial, subcontratações, temporários, etc.
Estas novas tendências ocorridas no mundo do trabalho, representadas por intensas mudanças na forma de produção (maximizando a exploração da força de trabalho), na forma de organização do trabalho (tornando-o mais mecânico, automatizado, repetitivo e precário), na configuração da materialidade e subjetividade do trabalhador que busca constantemente se inserir á lógica do capital a fim de atender à demanda do consumo, acentuam o impacto à saúde dos trabalhadores, uma vez que todas as circunstâncias que modificam as condições de produção e de re-produção da vida e do trabalho, condicionam novas variáveis no processo saúde/doença (Laurell, 1989).
Por isto, é fundamental incorporar, no âmbito do processo de investigação da relação entre a saúde mental e o trabalho, este aspecto da precariedade e fragilidade da vinculação com o trabalho, reconhecendo a importância desse contexto na determinação de uma sobrecarga adicional ao aparelho psíquico dos trabalhadores, já submetidos ao conjunto de cargas de trabalho (incluindo as psíquicas) inerentes aos seus diferentes processos de trabalho.
É importante ainda considerar que o trabalho não pode ser compreendido apenas do ponto de vista da produção de valores de troca – e portanto de valores de uso -, de mercadorias a serem comercializadas no mercado local ou global. Pelo contrário, o trabalho pode e deve ser compreendido como uma potencialidade humana singular, uma “manifestação de si” das pessoas, da sua capacidade criativa de intervenção e de sua relação com a natureza, raiz do processo de produção e de reprodução da sua sociabilidade, a base real do conjunto de suas relações sociais e, por isto, aspecto fundamental na estruturação da sua personalidade (Marx, 1975, 1983).
O modo de produção capitalista está fundamentado e se viabiliza1 no estatuto do trabalho humano como gerador de valor. Neste sentido e, irremediavelmente, este modo de produção está em oposição com a natureza humana, está na raiz do caráter desumanizado das relações de produção que produz e reproduz continuamente: o trabalho aqui aparece na sua forma negativa, como trabalho alienado, como subordinação coletiva ao domínio dos empregadores, e isto não fica circunscrito aos locais de produção, esta subordinação se irradia para toda a sociedade, quer dizer, isto também produz e reproduz uma sociabilidade humana subordinada a uma ordem dominante2 (Marx, 1983).
É um trabalho dominado, subordinado a uma lógica produtiva que nega a essência do trabalho como determinante de uma sociabilidade humanizada: aqui não há apenas uma expropriação da vitalidade dos corpos, mas, sobretudo e primordialmente, uma expropriação da sociabilidade dos trabalhadores (Seligmann-Silva, 1994).
Guattari e Deleuze (1976) o denominam de “anti-produção”: a produção das coisas e não do homem3. É ilusório pensar que esta expropriação coletiva fica restrita às quatro paredes de uma empresa: ela se irradia por toda a vida social, em uma reprodução ampliada destas relações de produção, engendrando no interior desta sociedade, aquilo que diferentes autores, denominam de barbárie, alienação, massificação, desumanização institucionalizada (Antunes/1995, Mangia/2003, Marx/1979 e 1983, Meszaros, 1981).
Esta leitura não é restrita aos autores do “campo marxista”, como alguns poderiam objetar. O pensador francês Auguste Comte4, já em 1852, assinalava em seu “Système de Politique Positive” (marco fundador da Sociologia), a situação dos trabalhadores parisienses “acampados à margem da sociedade”, apontando para uma “patologia social em processo”. Freud descreve em Psicopatologia do Cotidiano a configuração desta patologia social (embora não tenha ressaltado, com força, a sua determinação social).
Outras duas ferramentas conceituais aplicáveis, no estudo desta relação entre psiquismo e trabalho, constituem os conceitos de “desterritorialização” e de “inconsciente produtivo”, elaborados por Guattari e Deleuze em “Anti-Édipo” (1976).
A “descoberta do inconsciente produtivo tem dois correlatos: de um lado, a confrontação direta entre a produção desejante (individual ou grupal) e a produção social, entre as formações sintomatológicas e as formações coletivas; por outro lado, a repressão que a máquina social exerce sobre as máquinas desejantes (individuais ou grupais), e a relação do recalcamento com essa repressão” (Guattari e Delleuze, 1976). A incorporação deste conceito – na prática analítica – concede um significado libertário às noções fundamentais de economia do desejo, trabalho e investimento (preciosas no campo da psicanálise, mas aqui aplicadas no bojo de uma compreensão diversa de inconsciente).
“A sociedade capitalista traduz uma falência dos códigos. O Estado (da ordem capitalista) não pode mais contentar-se em sobrecodificar os elementos territoriais já codificados, ele deve inventar códigos específicos para fluxos cada vez mais desterritorializados. O primeiro grande movimento de desterritorialização apareceu com a sobrecodificação do Estado despótico (da ordem feudal). Mas ele ainda não é nada ao lado do outro grande movimento, que vai fazer-se pela decodificação dos fluxos. Mas este fluxos decodificados só formam um desejo, desejo que produz, em lugar de sonhar e de ter falta, máquina desejante social e técnica ao mesmo tempo. Eis porque o capitalismo e seu corte não se definem simplesmente por fluxos decodificados, mas pela decodificação generalizada dos fluxos, a nova desterritorialização massiva, a conjunção dos fluxos desterritorializados. Foi a singularidade dessa conjunção que fez a universalidade do capitalismo”. O trabalhador desterritorializado é o trabalhador livre, porém desconectado das condições materiais para a sua sobrevivência, o homem contingente (Marx, 1983). Por essa razão necessita vender a sua força de trabalho, se submetendo a uma situação social que lhe é imposta, e que apesar de ser absurdamente desumanizada é admitida e assimilada socialmente e, ideologicamente, veiculada pelo seu contrário: a organização social de “homens livres”, a sociedade do “livre mercado”, a sociedade “democrática”.
Todos estes componentes “exteriores” aos processos de trabalho contribuem para o desgaste emocional dos trabalhadores. É a partir do reconhecimento desta contextualização e, sobretudo da sua efetiva incorporação, quer dizer, somente quando levamos este “passivo de desgaste mental” prévio a sério, estaremos aptos para proceder ao processo de investigação, não apenas do “quê”, mas principalmente, do “como” os diversos tipos de cargas de trabalho comprometem o aparato psíquico dos trabalhadores: seja por interferência direta no nível subjetivo (cargas psíquicas), quer dizer, sobre os dinamismos da vida psíquica (Borges, 1999, 2001; Rigotto, 1994); seja pela ação sobre o cérebro ou sobre outros sistemas somáticos (cargas físicas, químicas, biológicas, fisiológicas e mecânicas), quer dizer, no nível objetivo, por meio do comprometimento direto ou indireto de funções ou sistemas cerebrais corticais ou sub-corticais (Dejours/1993, Hartman/1988, Organización Mundial de la Salud/1976, Rutenfranz/1989, Seligmann-Silva/1997, WHO/1997).
Relação causal entre o trabalho e psiquismo
Foi a partir de 1983 que o problema da relação entre o psiquismo e trabalho chamou a minha atenção. Naturalmente, nunca ouvi uma palavra sobre isto na faculdade de medicina (FMUSP-1969/1974). Nesta época, o conhecimento que tinha sobre este tema decorria da leitura de textos vinculados à minha militância no movimento em defesa dos direitos humanos dos doentes mentais5. Ao longo do tempo, a necessidade de aprofundar o conhecimento específico da relação psiquismo/trabalho – que se revelava mais vasta e mais complexa, a cada passo -, impôs a leitura sistemática da maior parte da bibliografia assinalada ao longo deste ensaio. No início, o meu foco estava concentrado no eventual papel que o mecanismo da alienação (relacionada ao trabalho alienado) pudesse representar nesta relação. Desta forma, conduzi o meu estudo no sentido de estabelecer o embasamento teórico na delimitação de um problema que denominei de “expropriação da sociabilidade”6 dos trabalhadores, que estaria na raiz – como mecanismo patogênico básico e difuso -, do seu sofrimento psíquico, que apresentei de forma sintética, na parte inicial deste ensaio.
Nessa fase inicial, via com muita cautela a possibilidade de ser demonstrada a relação causal de um aspecto específico do processo de trabalho com um agravo específico à saúde mental dos trabalhadores. Isto era uma hipótese de trabalho a ser testada: a ser comprovada ou refutada (como orienta Popper)7.
O meu primeiro contato “prático” com este problema da relação saúde mental/trabalho ocorreu em 1984, quando participei de uma pesquisa, solicitada pelo Sindicato Nacional dos Aeronautas ao DIESAT8, focalizada na situação dos alojamentos conjuntos que as empresas aéreas impunham aos Comissários de Bordo. Uma série de evidências apontava para vivências embaraçosas relacionadas com esta situação (assédio sexual, constrangimentos de toda a ordem). O sindicato mobilizava os trabalhadores para a luta por alojamentos separados e precisava de um subsídio técnico/científico para fortalecer esta reivindicação.
Na pesquisa foi utilizada uma metodologia adaptada do modelo operário italiano (grupo focal homogêneo). A partir de três encontros com um grupo de 9 comissários de bordo, vinculados às principais empresas aéreas, foram levantados uma relação de problemas que foram sistematizados em um questionário, que foi pré-testado em 30 comissários e, posteriormente, aplicados para todos os comissários de bordo do país (em torno de 900, na época)9.
No bojo da pesquisa, um evento particularíssimo chamou a minha atenção: o processo de organização do trabalho dos comissários de bordo, de uma das empresas aéreas, condicionava uma atitude de vigilância, de uns para com os outros, com relação à sua apresentação e o seu posto de trabalho: cabelos, maquiagem, roupas, etc.: “tudo tinha que estar impecável”. Assim, o cabelo desalinhado, uma pequena mancha na blusa ou uma “bagunça” do posto de trabalho, eram prontamente observados e, discretamente corrigidos. Este mecanismo, condicionado pela organização do seu trabalho, produziu em algumas comissárias de bordo, um comportamento similar em seu ambiente familiar. Estas passaram a corrigir os “desalinhos” na apresentação dos seus maridos, filhos e do seu ambiente familiar concreto. O que temos aqui? Isto não se parece com um mecanismo obsessivo- compulsivo? Não está manifesto aqui um dos aspectos fundamentais na patogênese do dinamismo obsessivo-compulsivo, que é a subordinação excessiva do mundo interno às injunções do mundo externo? Como se sabe, uma das conseqüências desse comportamento é o intenso desgaste emocional (energético) que produz. E isto foi uma queixa marcante destas trabalhadoras, quando perguntadas se essa situação estava interferindo com as suas vidas pessoais.
Alguns anos mais tarde, em 1990, no âmbito do CRST Mooca10, examinei um grupo de 15 trabalhadoras de uma indústria química, vinculadas a um mesmo setor da empresa11. Neste setor havia um intenso trabalho repetitivo: em cada minuto, era necessário realizar 32 movimentos diferentes. Sob tais circunstâncias, a máquina impunha o ritmo ao trabalhador. Os tempos da máquina determinavam os tempos da atividade motora dos trabalhadores. Em outros termos: o dinamismo psíquico dos trabalhadores era determinado pelo dinamismo da máquina. Ou ainda: o mundo interno dos trabalhadores era subordinado às injunções do mundo externo. Ocorreria aqui o desencadeamento do mesmo comportamento obsessivo-compulsivo? Um grupo de 15 trabalhadoras foi organizado para responder a esta pergunta (metodologia do grupo focal), compreendida como a formulação de uma hipótese de trabalho “ad hoc”.
Os resultados foram surpreendentes: algumas trabalhadoras relataram que os seus maridos eram acordados de madrugada, devido aos movimentos dos seus corpos, que reproduziam, pela descrição, os mesmos movimentos que realizavam no seu trabalho. Houve relatos freqüentes de sonharem que estavam trabalhando. Uma queixa generalizada destas trabalhadoras foi o de “acordarem cansadas”, como se tivessem “trabalhado a noite inteira”. E, finalmente, algumas referiram que se tornaram muito exigentes com a organização das coisas nas suas casas, com o ordenamento das coisas.
Estas observações me convenceram sobre a possibilidade de ser demonstrada a relação causal de um aspecto específico do trabalho com um agravo específico à saúde mental dos trabalhadores, mesmo quando considerados, no limite da confrontação científica com o acúmulo de conhecimento existente sobre a questão investigada.
Prevalência e epidemiologia dos transtornos mentais entre os trabalhadores
As cargas psíquicas estão presentes em todos os processos de trabalho e arranjos produtivos, independentemente de pertencerem ao setor formal ou informal, público ou privado, industrial ou de serviços, abrangendo todos os ramos de atividade. Por essa razão, os transtornos mentais apresentam uma grande prevalência entre grupos homogêneos de trabalhadores, implicando desde o sofrimento psíquico leve até aos quadros com maior comprometimento da vida de relação com o meio (Ministério da Saúde/2001).
Segundo estimativa da OMS, os transtornos mentais menores acometem cerca de 30% dos trabalhadores ocupados, e os transtornos mentais graves, cerca de 5 a 10%. No Brasil, dados do INSS sobre a concessão de benefícios previdenciários de auxílio-doença, por incapacidade para o trabalho superior a 15 dias e de aposentadoria por invalidez, por incapacidade definitiva para o trabalho, mostram que os transtornos mentais, com destaque para o alcoolismo crônico, ocupam o terceiro lugar entre as causas dessas ocorrências (Ministério da Saúde/2001).
Na Tabela 1 se apresenta uma síntese dos transtornos de natureza orgânica relacionáveis ao trabalho, em sua grande maioria correspondem ao Grupo I da Classificação de Schilling.
Tabela 1 – Epidemiologia dos Quadros Cerebrais Orgânicos Relacionáveis ao Trabalho
Adaptação de Francisco Drumond Marcondes de Moura, agosto/2005
Os quadros clínicos que compõem a Tabela 2 foram considerados dinâmicos. Podem estar associados ou apresentarem fortes conexões com quadros cerebrais orgânicos. Isto pode ser observado no alcoolismo crônico, nos episódios depressivos (intoxicação por organofosforados, chumbo, entre outros), na neurastenia (intoxicação crônica por metais pesados, solventes orgânicos, entre outros) e nos casos de transtorno do ciclo vigília; sono, a rigor, localizado no nível intermediário entre o dinamismo cerebral e o psicodinâmico (Coelho/1975, Silveira/1978). Mas o complexo sintomático que apresentam traduzem a participação de dinamismos próprios da vida subjetiva, daí terem sido caracterizados como dinâmicos.
Tabela 2 – Epidemiologia dos Quadros Dinâmicos Relacionáveis ao Trabalho
Adaptação de Francisco Drumond Marcondes de Moura, agosto/2005
Implicações da relação causal com o trabalho
O estabelecimento da relação causal entre agravos à saúde mental com o trabalho tem sido objeto de questionamentos e de conflitos entre técnicos vinculados ao SUS e aos Departamentos de Saúde dos Sindicatos de Trabalhadores com peritos do INSS e técnicos dos Serviços de Segurança e Medicina do Trabalho das empresas. Aqueles que sustentam a impossibilidade do estabelecimento desse nexo utilizam argumentos que desqualificam a “objetividade” dos complexos sintomáticos psíquicos, apontando para aquilo que aparenta ser o aspecto mais contraditório e mais hermético da relação entre saúde mental e trabalho: a “invisibilidade” das cargas de trabalho psíquicas, que acredito serão bem destacadas e trazidas à luz neste artigo.
Por outro lado, ressaltam a dificuldade de se diferenciar reações psicológicas inerentes às adversidades relacionadas com as condições materiais de existência, ou mesmo daquelas relacionadas com aspectos dinâmicos da vida de relação com o meio ou no ambiente familiar, com aquelas produzidas por dinâmicas ou situações relacionadas aos ambientes de trabalho. Por isto será necessário sempre: caracterizar as condições psicológicas anteriores – ao episódio que está sendo investigado -, verificar o seu dinamismo básico e estabelecer: em alguns casos, uma ausência de continuidade entre ambos os processos, ou em outros casos, essa condição prévia individual como fator predisponente ou facilitador para o desencadeamento do quadro psíquico considerado. Em ambas as situações, será possível estabelecer uma relação direta ou indireta com o trabalho.
De qualquer forma esse percurso do processo de investigação, esse passo a passo do processo de estabelecimento do nexo causal deve estar bem claro e explicitado. Como adverte Silvia Jardim (1997), o caminho percorrido pelos técnicos, do SUS para estabelecer a relação causal, entre um conjunto de sintomas, com determinadas características do trabalho aparece, “para os técnicos do INSS e das empresas, tão invisível quanto à natureza dos complexos sintomáticos psíquicos, por ele produzido”.
É necessário dar visibilidade e transparência a este caminho a ser percorrido, pelos técnicos do SUS, Sindicatos, INSS, empresas e peritos: é necessário identificar o “caminho das pedras” para o estabelecimento da relação causal entre agravos à saúde mental com determinadas cargas de trabalho, lançando mão de uma ferramenta consensual e transparente de investigação diagnóstica. Este é o maior desafio do processo de investigação da relação causal entre os agravos à saúde mental e o trabalho.
Níveis de investigação diagnóstica na rede de saúde mental e saúde do trabalhador do SUS
No âmbito do SUS, o campo da saúde do trabalhador e o campo da saúde mental tem a mesma origem: ambas estão profundamente imbricadas com o debate sobre a reforma sanitária brasileira. E ambas sofreram forte influência – assim como o próprio processo da reforma sanitária brasileira -, das experiências correlatas desenvolvidas no âmbito da reforma sanitária italiana (Basaglia, 1984; Berlinguer, !976, 1984).
No campo da saúde mental, a experiência da “psiquiatria democrática” italiana (Basaglia, 1985), exerceu uma profunda influência sobre os técnicos em saúde mental, que, em nosso país, combatiam o modelo hospitalocêntrico e medicalizado que então caracterizava a atenção às pessoas com sofrimento psíquico, dando os primeiros passos em direção à reforma psiquiátrica brasileira.
Não por coincidência, ambos os processos convergem, em 2002, para o mesmo lócus no Ministério da Saúde: a Assessoria Técnica da Secretaria de Assistência à Saúde – ASTEC/SAS. Neste ano, foram criadas – com uma diferença de poucos meses -, as redes nacionais de saúde mental (RAPS) e de saúde do trabalhador (RENAST), ambas com a mesma concepção estratégica de organização de uma rede de “serviços territoriais fortes” (conceito elaborado no contexto da reforma sanitária italiana): os CAPS, na saúde mental e os CRST, na saúde do trabalhador. E ambas com atribuições semelhantes: romper com as práticas discriminatórias e excludentes, e constituir pólos irradiadores da cultura da determinação social das doenças, configurando, coerentemente com a sua origem, dois campos contra-hegemônicos do SUS.
Essa interrelação histórica, ideológica e institucional entre as duas redes – aspectos facilitadores para uma forte atuação sinérgica -, tem sido pouco valorizada. Levando em consideração que 30% dos trabalhadores apresentam agravos à saúde mental (o mais prevalente, segundo a OIT), este sinergismo encerra uma importância estratégica: no âmbito do SUS, esta integração articularia uma rede de CRST e de CAPS, com milhares de dispositivos distribuídos por todo o território nacional, potencializando a função matricial e supervisora destes dispositivos, sobre os Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF e, destes para a rede da atenção básica.
Essa rede seria integrada à uma “rede sentinela” em saúde do trabalhador, com explícita intenção epidemiológica, assumindo a sua especificidade de rede sentinela dos agravos à saúde mental relacionados ao trabalho.
O desenvolvimento de ações intrasetoriais, na interface saúde mental/saúde do trabalhador, tendo como foco a investigação da relação causal entre os agravos à saúde mental e o trabalho, além de facilitar a integração e o sinergismo das duas redes, pode criar um ambiente institucional favorável, recolocar na ordem do dia, a retomada do debate sobre os condicionantes sociais dos transtornos mentais – na sua acepção ampliada -, além de abrir um espaço para a rediscussão das estratégias e das práticas que podem e devem ser adotadas, pelos seus dispositivos, para que sejam implementadas ações que visem a promoção e a reabilitação psicossocial, de um enorme contingente de trabalhadores.
Nesse estágio de desenvolvimento do SUS, ainda não é factível a implantação imediata de referências para o diagnóstico de agravos à saúde mental relacionados ao trabalho, em todos os seus níveis de atenção.
De fato, mesmo a população com transtornos mentais não relacionados ao trabalho, não tem pleno acesso ao diagnóstico e ao acompanhamento dos seus problemas de saúde mental. Há uma carência notável de recursos humanos, e são pouquíssimas as equipes básicas que têm uma equipe de saúde mental de retaguarda, como são poucos os municípios que tem uma retaguarda de saúde mental de maior complexidade (CAPS 1 ou 2) e, infelizmente, ainda é reduzidíssimo o número de CAPS 3 implantados em nosso país (que apresentam maior resolutividade e maior capacidade de intervenção territorial).
O processo de capacitação das equipes dos CRST e dos CAPS para que possam proceder ao diagnostico dos agravos à saúde mental relacionados ao trabalho, deve assumir o caráter de um programa de educação permanente em saúde, lançando mão da tecnologia do ensino à distância (EAD), articulada com práticas sistemáticas de acompanhamento e de supervisão12. Isto viabilizaria, por um lado, a escala necessária exigida pela dimensão dessa rede e, por outro, garantiria a confiabilidade e a qualidade exigidas por essa investigação diagnóstica, reconhecidamente complexa.
Critérios para o diagnóstico dos agravos à saúde mental relacionados ao trabalho
Apesar de ser possível estabelecer uma base comum quanto à patogênese dos transtornos mentais relacionados ao trabalho, há aspectos muito diferenciados que exigirão uma investigação específica, caracterizando a necessidade de uma série de desdobramentos, a partir de uma primeira avaliação. A partir do encaminhamento de casos suspeitos para confirmação diagnóstica, procedentes da rede de serviços do SUS, ou a partir de demanda que afluir diretamente ao CAPS ou CEREST (procedentes de sindicatos, demanda espontânea, entre outras), será necessário desdobrar a linha de montagem diagnóstica, levando em conta a natureza da situação provocadora do agravo. Por exemplo, é distinto o processo de investigação de um quadro depressivo, relacionado à exposição crônica a organofosforados, ao mercúrio metálico, a uma situação de desemprego prolongado, à vivência de situações que impliquem em um desgaste emocional prolongado no trabalho, ao trabalho noturno ou ao trabalho em situação de isolamento.
Uma primeira aproximação com os critérios de diagnóstico, pode ser extraída da sistematização publicada no Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde (Ministério da Saúde/2001). As Tabelas 3 e 4 mostram os complexos sintomáticos e critérios para o diagnóstico dos transtornos mentais que compõem a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho, aqui divididos em dois grandes grupos de transtornos, segundo a sua patogênese, respectivamente, os quadros cerebrais orgânicos e os quadros funcionais/dinâmicos.
O Manual do Ministério da Saúde utiliza os critérios descritivo e evolutivo como orientação para o diagnóstico dos agravos à saúde mental relacionados ao trabalho. Essa abordagem que já é insuficiente mesmo para o diagnóstico psiquiátrico rotineiro, é absolutamente insuficiente e inadequada para o diagnóstico dos transtornos mentais relacionados ao trabalho. Aqui cumpre caracterizar um determinado aspecto do trabalho como fator patogênico, quer dizer, buscar as raízes do agravo, nos seus determinantes objetivos do processo ou da organização do trabalho, isto é, a sua patogênese. Um mesmo cortejo sintomático, do ponto de vista descritivo, fenomenológico, pode corresponder a processos muito distintos. Um quadro depressivo, do ponto de vista descritivo, pode corresponder a um quadro constitucional de natureza psicótica (unipolar ou bipolar), a um quadro neurótico, a uma reação neurótica, a uma intoxicação crônica por organofosforados, ao micromercurialismo, a uma lesão cerebral produzida por solventes orgânicos, a uma reação depressiva relacionado ao desemprego, condição de vulnerabilidade, perda da capacidade laborativa, esgotamento psíquico, assédio moral, assédio sexual, entre outras. O estabelecimento do nexo causal vai consistir, exatamente, na diferenciação do fator patogênico envolvido, isto é, da patogênese do quadro atual.
Por essa razão, nesta primeira aproximação – e com o intuito de manter uma interlocução com o material do Manual do Ministério da Saúde -, reuni os quadros segundo a sua patogênese geral, distinguindo aqueles de patogênese orgânica e os de patogênese dinâmica. Mas isto é apenas um tímido passo.
Na verdade, a investigação, segundo o critério patogenético, deve ir além e identificar as funções do aparelho psíquico primariamente afetadas. Isto pressupõe a utilização de uma teoria sobre o funcionamento do psiquismo humano, uma teoria da personalidade13, que possa ser uma ferramenta, um fio condutor a orientar este caminhar por dentro do mundo psíquico dos trabalhadores. Quais teorias de personalidade que estão sendo utilizadas neste caminhar? Esta é uma questão em aberto, que não será abordada aqui, por exigir um aprofundamento que não cabe neste breve ensaio. Fica colocado o problema, que na minha opinião é um problema central do campo da saúde mental e trabalho.
Tabela 3 – Orientação diagnóstica do grupo dos Quadros Cerebrais Orgânicos
Adaptação de Francisco Drumond Marcondes de Moura, agosto/2005
O grupo dos quadros funcionais/dinâmicos, com predomínio do comprometimento das funções subjetivas (dentre os transtornos listados na Portaria 1339/99), é apresentado na Tabela 4. A possibilidade maior ou menor de estabelecimento do nexo causal vai depender da obtenção de uma história ocupacional e de uma história sobre as condições do trabalho atual bem minuciosa.
Esses quadros manifestam na sua configuração clínica, complexos sintomáticos preponderantemente psíquicos, caracterizados por reações afetivas e emocionais intensas, mesmo quando expressão de comprometimento de sistemas cerebrais, causadas por agentes neurotóxicos: tais como os quadros depressivos das intoxicações crônicas por organofosforados (comprometimento de sistemas cerebrais colinérgicos) ou os quadros afetivos (de ansiedade e depressivos) e conativos (neurasteniformes) provocados pela intoxicação crônica pelo mercúrio (comprometimento de sistemas corticais occipitais e frontais granulares e sistemas cerebelares – celulas de Purkinje), ou mesmo pelo envolvimento de processos psicofisiologicos intermediários, como no caso do transtorno do ciclo vigília-sono (Fischer/1995, Hartman/1988, OMS/1976, Rutenfranz/1989).
Tabela 4 – Orientação diagnóstica do grupo dos quadros funcionais/dinâmicos
Adaptação de Francisco Drumond Marcondes de Moura, agosto/2005
A minha prática clínica tem revelado que uma mesma carga psíquica de trabalho pode produzir coloridos clínicos diferentes, condicionados pelo feitio da personalidade, pelo tipo de temperamento, pelos recursos internos e pela história de vida do trabalhador envolvido: existe uma singularidade, que deve ser levada em conta, pela confusão diagnóstica que pode representar.
Dessa forma, considero que mesmo havendo a caracterização de uma forte tendência genética familiar para o desenvolvimento de um determinado transtorno mental, isto não invalida o estabelecimento do nexo causal com o trabalho. Aqui os aspectos relacionados ao trabalho aparecem como fatores desencadeantes ou agravantes de um quadro de base manifesto, ou de uma tendência até então não manifesta.
Inclusive, estão incluídos neste registro, os quadros agudos de natureza psicótica. Segundo a orientação psiquiátrica que adoto – a escola de Aníbal Silveira -, os quadros psiquiátricos agudos de evolução benigna (com remissão completa dos sintomas), relacionados, geneticamente, com os quadros constitucionais progressivos (esquizofrenia) ou periódicos (psicose maníaco-depressiva), foram denominados por ele de Psicoses Diatéticas14 (de diátese-tensão), exatamente por poderem ser desencadeados por injunções do mundo externo, incluindo aqui, portanto, aquelas relacionadas ao trabalho.
O conceito de carga de trabalho é da Laurell (1989). É importante lembrar que, na produção teórica italiana sobre os fatores de risco relacionados ao trabalho, não houve consenso sobre o estabelecimento de “fatores de risco psíquicos” (Berlinguer, 1983). O trabalho da escola mexicana (Laurel e Noriega), utilizando a mesma metodologia do MOI (modelo operário italiano) reafirmou a noção de desgaste (elaborado na produção teórica italiana) e o atribuiu às cargas de trabalho (físicas, químicas,..incluindo as psíquicas); por esta razão é que utilizo o conceito de carga de trabalho e não fator de risco para os agravos à saúde mental.
A organização do trabalho, assim como o processo de trabalho, não subentende uma nocividade por si só. Os aspectos psicossociais do trabalho e as características da organização do trabalho podem ou não configurar cargas psíquicas de trabalho, no sentido da produção de desgaste emocional dos trabalhadores. Existem alguns aspectos psicossociais do trabalho que são gratificantes e liberadores da criatividade humana, assim como determinadas características da organização do trabalho podem igualmente potencializar o poder criativo dos trabalhadores (um exemplo reconhecido disto é a experiência desenvolvida, no âmbito da empresa Google).
Como demonstrou Laurell (1984) é o processo de valorização que está na raiz da nocividade do trabalho (no modo capitalista de produção): é isto que condiciona uma determinada forma de organizar o trabalho; a configuração de determinados aspectos do processo de trabalho, a sobrecarga de trabalho, o ritmo intenso da produção, o controle excessivo, o trabalho repetitivo, entre outros aspectos, que os tornarão fator de desgaste para os trabalhadores.
Todos estes aspectos podem configurar, no seu conjunto, uma situação de agravo à saúde mental, caracterizando por somatória (este é um aspecto central da contribuição teórica da Laurell), uma carga de trabalho psíquica complexa, daí, ter incorporado aspectos da organização do trabalho em algumas modalidades de cargas de trabalho complexas (sobrecarga de trabalho, trabalho estressante, entre outros). Em pouquíssimos casos, observei aspectos diversos destes: caracterizado por embotamento da vida subjetiva, dinamismo obsessivocompulsivo, dinamismo dissociativo, dinamismo conversivo, dinamismo agorafóbico e eclosão de estados segundos e crepusculares.
Os quadros cerebrais orgânicos são os que apresentam maior homogeneidade clínica: os seus complexos sintomáticos são mais regulares, embora sempre acompanhados de aspectos reativos de natureza dinâmica e, portanto, conferem um aspecto singular, no seu conjunto, para cada trabalhador (decorrentes do feitio de personalidade de cada um).
No período de 1984 a 2024, observei 2.775 trabalhadores, em diferentes projetos ou dispositivos de saúde, cujos dados consolidados se apresenta na tabela 5.
Tabela 5 – Distribuição dos trabalhadores observados por projeto/serviço de saúde (1984/2024)
Francisco Drumond Marcondes de Moura, agosto/2005, atualizado em junho/2024
Foi possível estabelecer 22 situações ou cargas psíquicas complexas de trabalho, relacionadas com a patogênese dos agravos à saúde mental dos trabalhadores, apresentados na Tabela 6.
Tabela 6 – Situações ou cargas complexas de trabalho, relacionadas com a patogênese de agravos à saúde mental
Francisco Drumond Marcondes de Moura, agosto/2005, atualizado em junho/2024
Os complexos sintomáticos mais freqüentes apresentados pelos trabalhadores se apresentam na Tabela 7. Para denominar estes complexos sintomáticos optei por considerá-los como formas reativas ou ocasionais (esses, na forma de quadros ou estados).
Os complexos sintomáticos, de natureza dinâmica que apresentam o seu correlato clínico neurótico – ansiedade, depressão, fobias, obsessão, compulsão, neurastenia – foram denominados de Reações. É inadequado denominá-los de transtornos neuróticos, como o faz o Manual do Ministério da Saúde (2001). O conceito de neurose constitui uma expressão que caracteriza uma condição clínica específica, no campo da nosologia psiquiátrica. As entidades nosológicas, no campo da psiquiatria, são uma abstração por excelência. Elas não podem ser aplicadas aos agravos relacionados ao trabalho: aqui há um elemento concreto identificável, na sua patogênese (sem o qual não seria possível estabelecer o nexo causal). Dessa forma, é incorreto utilizar as categorias diagnósticas básicas da clínica psiquiátrica: esquizofrenia, psicose maniacodepressiva, neurose, síndrome de pânico para caracterizar um agravo relacionado ao trabalho. Este cuidado é fundamental. Já estudei casos de trabalhadores, que tiveram o nexo causal de seu agravo à saúde mental negado pelos peritos do INSS, porque na Comunicação de Acidente do Trabalho – CAT, foram firmados os diagnósticos de Esquizofrenia Paranóide, Neurose Depressiva e Síndrome do Pânico. Na verdade, apresentavam agravos à saúde mental relacionados ao trabalho, mas a sua caracterização correta teria sido, respectivamente: reação paranóide aguda, reação depressiva e reação de pânico.
Os complexos sintomáticos de natureza orgânica foram definidos como quadros neuropsicológicos. Aqui não é cabível a caracterização de reações, uma vez que há disfunção ou lesão cerebral. Também não se poderia (ainda) caracterizar como síndromes. Talvez com o passar dos anos, poderemos estabelecer quadros sindrômicos relacionáveis à exposição aos diferentes fatores patogênicos (agrotóxicos, metais pesados, solventes orgânicos, entre outros), uma vez que o colorido clínico desses quadros está relacionado ao comprometimento de sistemas cerebrais específicos.
Tabela 7 – Complexos sintomáticos mais frequentes
Francisco Drumond Marcondes de Moura, agosto/2005, atualizado em junho/2024
Na tabela 8 se apresenta a relação verificada entre o conjunto de cargas psíquicas complexas de trabalho e os complexos sintomáticos mais encontrados. Como se pode verificar, do ponto de vista descritivo, complexos sintomáticos fenomenologicamente semelhantes aparecem como relacionados a diferentes situações do trabalho.
Tabela 8 – Cargas psíquicas complexas e complexos sintomáticos mais freqüentes
Francisco Drumond Marcondes de Moura, agosto/2005, atualizado em junho/2024
A distribuição dos diagnósticos realizados, segundo o CID 10, se apresenta na Tabela 9. Aqui cumpre chamar a atenção para os casos relacionados ao CID 10 F.41.0, um dos diagnósticos mais freqüentes. Esse diagnóstico também aparece como uma das causas mais freqüentes de afastamento por transtorno mental, nas estatísticas do INSS. Este diagnóstico não compõe a lista de doenças relacionadas ao trabalho (portaria GM 1.339/99). Neste ensaio não será aprofundada a discussão sobre a relação dos quadros clínicos encontrados, com as suas correspondentes cargas de trabalho.
Tabela 9 – Distribuição dos quadros clínicos mais freqüentes, segundo o CID 10
Francisco Drumond Marcondes de Moura, abril/2007
O passo a passo da investigação diagnostica para o estabelecimento da relação causal
O passo a passo para a investigação diagnóstica, dos agravos à saúde mental e trabalho, não deve ter um percurso diverso daquele utilizado, pelos profissionais de saúde mental da rede pública de saúde mental, na sua prática clínica habitual.
Passo 1 – Reconhecimento e encaminhamento dos casos suspeitos
Os trabalhadores que, no âmbito da rede de atenção do SUS, aqui incluindo, particularmente, a rede de Unidades Sentinela e a rede da atenção básica, se apresentarem com agravos à saúde mental suspeitos de relação com o trabalho, devem ser encaminhados para as referências de diagnóstico em saúde mental e trabalho. Estou convencido que estas referências devem estar localizadas, primordialmente, nos CRST e nos CAPS. Aqui existem equipes mais amplas e fortalecidas, de forma a garantir a abordagem interdisciplinar que o estudo desses agravos requer.
Nesse primeiro passo será fundamental garantir dois aspectos: o reconhecimento do caso suspeito e o monitoramento do seu encaminhamento. O reconhecimento dos casos suspeitos, nas portas de entrada do sistema passa, necessariamente, por uma atitude pró-ativa das equipes destes dispositivos.
Com exceção dos casos em que o próprio trabalhador tem uma certa noção de que seu agravo está relacionado ao trabalho e explicita isto, o reconhecimento dos demais vai exigir que a pesquisa sobre a inserção no mundo do trabalho, de cada usuário, seja feita por meio de uma pergunta básica: você trabalha?
De particular importância, nesse ponto, será envolver – no caso das regiões onde estiver implantada a estratégia da saúde da família -, as agentes comunitárias de saúde: o seu processo de trabalho atual, as coloca em relação pessoal com todos os moradores do seu território. Mais do que ninguém elas compartilham da vida destas pessoas e, portanto, das suas vinculações com o mundo do trabalho. Nesse sentido, elas podem e devem ser compreendidas como vetores importantes da cultura da saúde do trabalho em suas respectivas áreas de atuação.
O fluxo do encaminhamento dos casos suspeitos deve ser monitorado: uma relação semanal dos casos encaminhados para confirmação diagnóstica, deveria ser encaminhada para o CRST Regional (para fazer a busca ativa dos faltosos), que acompanhará a solução de cada caso até a sua conclusão.
Passo 2 – Acolhimento e investigação dos casos suspeitos pela referência de diagnóstico
Tendo em vista a dimensão social e coletiva dos agravos à saúde mental relacionados ao trabalho, seria interessante criar um espaço coletivo para o acolhimento dessa demanda nos CRST ou CAPS (Mangia, 2002). Aqui não se trata de consulta coletiva, mas um momento em que essa determinação social possa ser elaborada coletivamente, ao mesmo tempo, que pode ser explicitado o passo a passo do processo de investigação aos quais os trabalhadores serão submetidos. Inúmeras outras questões relacionadas ao fluxo com as perícias da previdência ou com as empresas também podem ser encaminhadas coletivamente. Não se pode perder de vista que os CRST e os CAPS podem e devem se assumir como pólos irradiadores culturais, no âmbito de um determinado território.
Tenho preconizado, nas inúmeras oficinas de trabalho que realizei em inúmeros estados brasileiros – São Paulo, Tocantins, Pará, Bahia, Amazonas -, que o processo de investigação diagnóstica deve se desdobrar em duas fases, tendo como fio condutor dois instrumentos: um para coleta e síntese dos dados e outro como roteiro da investigação do nexo causal (ambos são anexados a este texto).
O primeiro instrumento corresponde ao levantamento de dados, habitualmente realizado na prática clínica cotidiana. O segundo instrumento constitui um conjunto de perguntas, relacionadas às queixas ou sintomas, vinculadas aos agravos mais freqüentes relacionados às situações ou cargas de trabalho, mais comuns, com reconhecido potencial patogênico. Ambos os instrumentos devem ser aplicados individualmente, devendo, no entanto, envolver o trabalho integrado de uma equipe interdisciplinar.
Na fase de levantamento de dados, deve ser caracterizada a história de vida do trabalhador, a sua dinâmica familiar, a história do seu transtorno mental atual e queixas pregressas, realizado o exame físico e neurológico sumário e o exame psíquico, visando a apreensão do seu complexo sintomático.
Na segunda fase, podemos considerar duas etapas. Na primeira etapa, os técnicos identificarão, por consenso, os sintomas mais relevantes para caracterizar o quadro clínico fundamental, os dados relevantes da anamnese e os principais achados do exame físico e neurológico; verificarão a necessidade de exames complementares, estabelecerão as hipóteses diagnósticas, farão os encaminhamentos iniciais, avaliarão a necessidade de afastamento do trabalho e de desencadeamento de ação de vigilância e, finalmente, confirmarão ou não a suspeita de relação com o trabalho.
Confirmada a suspeita de relação com o trabalho, se passa para a segunda etapa: o aprofundamento da investigação das cargas psíquicas complexas de trabalho, envolvidas na configuração do quadro clínico, utilizando o roteiro de investigação já mencionado.
Pela sua freqüência, o roteiro priorizou as seguintes cargas de trabalho: assédio moral, assédio sexual, discriminação racial, exposição a agrotóxicos, metais e solventes orgânicos, situação de estresse, sobrecarga de trabalho, trabalho penoso, trabalho degradante, trabalho em turnos, trabalho noturno, situação de vulnerabilidade, condição de desfiliação do mundo do trabalho.
Passo 3 – Conclusão do caso
Por fim, se procede à elaboração do relatório final: uma síntese dos dados, o quadro clínico fundamental, estabelecido o diagnóstico, confirmada ou não a relação causal, notificação pelo SINAN e pelo sistema CAT, indicando se houve afastamento do trabalho e encaminhamento ao INSS e assinalado o tratamento proposto. Este relatório é assinado por todos os técnicos envolvidos no processo de investigação diagnóstica.
A grande prevalência dos agravos à saúde mental relacionados ao trabalho exige um investimento especial, de recursos humanos, na rede de CRST, para implementar o trabalho aqui desenhado. O mais adequado a fazer é estruturar um Núcleo de Saúde Mental e Trabalho em cada CRST. Esse núcleo desempenhará um papel imprescindível na propagação e supervisão, do conhecimento e das práticas em saúde mental e trabalho, para as equipes dos CAPS. Um integrante básico destes núcleos deve ser o psicólogo. Na falta de um psiquiatra será necessário envolver um médico, capacitá-lo e inseri-lo em um processo de acompanhamento e de supervisão, por um psiquiatra de referência.
Tratamento e reabilitação psicossocial
Os agravos à saúde mental relacionados ao trabalho representam a doença do trabalho de maior prevalência entre os trabalhadores, por esta razão, a demanda por diagnóstico e acompanhamento dos casos afastados do trabalho e a reabilitação psicossocial dos casos mais graves, com comprometimento irreversível da capacidade de trabalho, representam um grande desafio para os técnicos do SUS envolvidos com a saúde do trabalhador e com a saúde mental.
As ações de tratamento e de reabilitação psicossocial devem ser organizadas de forma a contemplar um conjunto de procedimentos individuais e coletivos, a serem executados no âmbito das práticas de atenção da rede do SUS, norteadas por uma abordagem que responda às necessidades de ordem objetiva e subjetiva dos trabalhadores, isto é, que articula procedimentos e práticas de acompanhamento (inclusive previdenciário) e reabilitação psicossocial.
As práticas individuais subentendem as consultas técnicas – com periodicidade variável, de acordo com a necessidade, para tratamento e avaliação clínica; elaboração de relatórios/laudos para fins legais e/ou previdenciários.
As práticas grupais subentendem o trabalho grupal cuja tarefa permanente visa a elaboração das dificuldades encontradas na experiência cotidiana do “viver a vida”, de forma que este espaço coletivo possa representar uma referência para esses trabalhadores, permitindo-lhes vivenciar uma experiência instigadora, desencadeando por meio de um “processo de confrontação interna” a construção de uma atitude ressignificadora diante da sua realidade, criando a possibilidade de incorporação de novos referenciais ideológicos, sociais e humanitários, que lhes abrirá a perspectiva de ressignificar as suas próprias vidas. É importante ressaltar que este trabalho grupal tem a perspectiva de um processo que deve ter como princípios, a construção da autonomia, o fortalecimento da identidade e um objetivo libertário e emancipatório15.
Vigilância em Saúde Mental e Trabalho
Essa é uma frente ainda em aberto, no campo da saúde mental e trabalho. Será um longo e difícil percurso até que consigamos sistematizar um conhecimento suficiente, e como reconhecer o caminho das pedras. De qualquer forma, temos que partir dos mesmos pressupostos e dos procedimentos já conhecidos do campo da vigilância em saúde. Considero que temos que adotar, como ponto de partida, as diretrizes e os procedimentos preconizados pelo Protocolo de Vigilância em Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde, bem como do disposto na portaria GM 3.120/99.
A vigilância em saúde do trabalhador deve considerar a multiplicidade de fatores envolvidos na determinação dos agravos à saúde mental relacionados ao trabalho. Não podemos esquecer que, invariavelmente, estaremos diante de uma somatória de cargas de trabalho: físicas, químicas, biológicas, fisiológicas, mecânicas e psíquicas.
Por sua vez, as cargas psíquicas assumem uma configuração complexa, mesmo quando focalizadas “separadamente”, traduzindo o que denominei neste ensaio de cargas psíquicas complexas de trabalho. Dar visibilidade a estes mecanismos invisíveis é o nosso maior desafio.
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- Na adesão subordinada, condicionada pela contingência, daqueles que necessitam de trabalhar para viver. ↩︎
- Na contemporaneidade, uma “sociedade regulada pelo mercado”, nas palavras de Al Gore, transformado em arauto da luta mundial contra o aquecimento global, pelos instrumentos de comunicação da ordem dominante. ↩︎
- Por esta razão propõem a produção desejante como categoria de uma psiquiatria materialista dialética. ↩︎
- Considerado por Lênin, um dos ideólogos burgueses mais significativos do seu tempo. A seu respeito, Marx reconheceu que “sabia mais das ciências do que Hegel”. ↩︎
- A partir de 1987 este movimento se transforma no movimento nacional da luta antimanicomial. ↩︎
- Em 1988, apresentei um trabalho com este título, na disciplina “Estado e Sociedade”, no âmbito do Mestrado em Sociologia/PUC, sob a orientação do Prof.Dr. Octavio Ianni. Não conclui este mestrado, pela opção em assumir a coordenação do Programa de Saúde do Trabalhado de São Paulo (1989/1990). ↩︎
- Popper. K.R. – A lógica da pesquisa científica. ↩︎
- DIESAT – Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho. Esta pesquisa foi coordenada por Herval Pina Ribeiro, envolvendo uma equipe multidisciplinar. ↩︎
- Os resultados obtidos foram analisados à luz da bibliografia (basicamente internacional) relacionada com o processo de trabalho na aviação comercial, consubstanciando a demanda dos trabalhadores, que conquistaram o alojamento separado reivindicado. ↩︎
- A partir de outubro de 1990, assumi a coordenação do CRST Mooca, na qual permaneci até 1992. ↩︎
- Setor de Conicaleiras, onde mais de 350 trabalhadoras apresentavam LER/DORT. ↩︎
- Ver a este propósito ↩︎
- Na minha prática clínica adoto a Teoria Sociológica da Personalidade, sistematizada por Aníbal Silveira ao longo de sua vida (1932/1979). Uma síntese desta teoria pode ser encontrada em Epilepsia e Personalidade, de Lúcia Maria Salvia Coelho, São Paulo, Ática, 1975. ↩︎
- No âmbito da escola alemã, estas psicoses foram, originariamente, denominadas de psicoses degenerativas por Kleist e de psicoses marginais pelo seu discípulo Schroeder. ↩︎
- Ver a esse propósito o texto “Práticas grupais em saúde mental e saúde do trabalhador” , Francisco Drumond de Moura, 2005. Consultar: www.anibalsilveira.org – Seção Programa de Formação e Supervisão, Programa de Formação Básica ou Seção Saúde Mental e Trabalho. ↩︎