Apreciação da elaboração mental

APRECIAÇÃO DA ELABORAÇÃO MENTAL1

A elaboração mental corresponde, em sentido estrito, a um trabalho mais diferenciado dando sequência ao processo intelectual iniciado pela captação dos estímulos através dos sentidos e pela posterior elaboração pelo processo da percepção. 

Num plano, mais básico, temos a observação, e noutro, a elaboração dos elementos colhidos através do processo de percepção. Do primeiro resulta a concepção, até certo ponto passiva, no sentido de estar ligada diretamente e subordinada ao espetáculo do meio exterior, e no segundo, à concepção ativa que se processa num plano mais interno, subjetivo, através da elaboração dedutiva e indutiva.

“Medita-se, com efeito, escreve Comte, de duas maneiras muito distintas, mas igualmente necessárias: colocando princípios e tirando-se consequências. De um lado, compara-se, de outro, coordena-se. O primeiro modo leva a generalizar, o segundo, a sistematizar. Toda classificação regular manifesta nitidamente sem diferença exigindo-se primeiramente a apreciação das próprias relações para formar os grupos, e em seguida, a determinação da ordem hierárquica. Sob um aspecto mais amplo deve-se especialmente ligar à meditação indutiva o estudo das relações estáticas ou de semelhança, e à dedutiva, aquela das relações dinâmicas ou de sucessão. Assim a região cerebral que descobre as leis, divide tão nitidamente quanto a que observa os fatos”.

Para Comte, a observação subentende dois níveis: a observação concreta e a observação abstrata, atributos de órgãos individualizados. Tais órgãos teriam localização frontal mais inferior no cérebro, “dirigida ao recebimento dos estímulos que preenchem os núcleos sensoriais correspondentes”. A elaboração, também como conjunto duplo de funções mais diferenciadas e dependentes dos materiais elaborados pela observação concreta e abstrata, estaria localizada na parte superior do cérebro frontal. 

Comte estabeleceu também a hierarquia entre funções da elaboração: a mais básica, menos dependente e mais diretamente ligada aos órgãos sensoriais da observação, a elaboração indutiva, exigiria por isso mesmo, um órgão par. A elaboração dedutiva, mais elevada e ainda mais dependente, o concurso de um órgão ímpar. 

Esse estudo preliminar localizatório estabelecido por Comte foi confirmado pela diferenciação citoarquitetônica de Brodmann, von Economo, Campbell, no plano estrutural, e no dinâmico pelos estudos de neurofisiologia e psicofisiologia. 

Assim, foi possível estabelecer como hipótese localizatória, no córtex frontal (Brodmann):  nas áreas 46 e 10, respectivamente, observação concreta e abstrata e nas áreas 8 e 9, os da meditação indutiva e dedutiva.

O resultado do processo da elaboração é o pensamento e o estudo pode ser dirigido em diferentes níveis: o pensamento pelo aspecto formal, o pensamento em seu curso e quanto ao conteúdo. O importante é ressaltar que todo trabalho mental está na dependência do estímulo afetivo e da harmonia das funções conativas. Isso vai orientar o estudo patogenético das condições patológicas ou das condições anormais, extrínsecas e intrínsecas à elaboração propriamente, e que aparecem quando da não observância dos princípios que regem a harmonia mental no plano individual.

A elaboração decorre, na acepção de Comte, da subordinação dos materiais subjetivos à realidade objetiva e da simplicidade na formulação das concepções que devem ser as mais simpáticas e as mais simples, ligadas ao conjunto de elementos a representar. A distorção no plano da elaboração vai ferir esses princípios gerais e dar como resultado uma série de alterações ligadas ao trabalho mental.

Do ponto de vista semiológico o processo corresponde ao estudo do pensamento e do juízo através da tomada dos dados anamnésticos. Não exige assim técnica especial além daquelas exigidas para a entrevista psiquiátrica.

A aplicação da psicopatologia e do critério patogenético na clínica como parte integrante do exame psíquico, em particular, e do exame clínico em geral, orienta o estudo para uma série de alterações que ocorrem em condições especiais no plano normal e em condições patológicas não psicóticas. Essas correspondem a comprometimento extrínseco da elaboração englobando os dois níveis da elaboração: dedutiva e indutiva. 

  1. Fabulação

Fabulação corresponde à elaboração ativa de forma lógica e coerente sem base na realidade, condições também presentes nas concepções delirantes. A instabilidade, a pouca sistematização e a variabilidade nas concepções são os elementos que caracterizam as fabulações e distinguem-nas das concepções delirantes. Em condições psicológicas especiais ou patológicas, não psicóticas, encontramos dois tipos de fabulações patogenicamente distintas: 

a) fabulação ocasional: o dinamismo mais importante ligado ao aparecimento das fabulações ocasionais, em condições psicológicas especiais, aparece quando o indivíduo confunde ou intercala na realidade as suas próprias fantasias. Esse aspecto é normal na criança pela prevalência natural do mundo subjetivo frente à realidade objetiva em algumas condições, e no adulto aparece ligado a condições emocionais. É o caso das mães ao relatarem as peripécias do filho quando interpõem, com frequência, elementos fabulatórios na narrativa. Frequentemente preenchemos o sonho com material fabulatório à medida em que narramos. Essa particularidade foi muito bem exposta por Morgue mediante a série de experimentos: sonhava com muita facilidade, e em condições experimentais, quando seus discípulos observavam os sinais da presença de sonho durante o sono, através do registro dos movimentos oculares e outros sinais, acordavam-no. Imediatamente o referido autor registrava o sonho apresentado, e, decorrida uma semana ou mês, ao relatar o mesmo sonho, sem o conhecimento dos elementos registrados anteriormente notou Morgue na narrativa uma riqueza de elementos fabulatórios, frutos naturalmente do elemento afetivo.

b) fabulação sistematizada: aqui a produção fabulatória é mais ligada aos dinamismos subjetivos, é mais estável, mais sistematizada, correspondendo à mitomania. Esta pode aparecer isoladamente como traço de personalidade ou como sintoma da personalidade psicopática na forma perversa e na hiperemotiva. As concepções formuladas pelo paciente são nitidamente fantasiosas, com grande capacidade de persuasão, porque formuladas de forma lógica e dadas as condições em que aparecem, ou seja, como traço anormal ou na personalidade psicopática; não pressupõem a ruptura ou falta de subordinação à realidade correspondente, características dos quadros psicóticos. O diagnóstico diferencial da mitomania seria com a mentira em que os elementos estabilidade e coerência também se fazem presentes. Na mentira há sempre a justificativa ou a procura de apreço dos demais ou ocorre como recurso do indivíduo para se safar ou tirar proveito de alguma situação. 

 c) fabulação produtiva que subentende condições patológicas.

  1. Minuciosidade

Na minuciosidade o elemento mais característico é a perda da unidade da expressão por descontrole na direção discursiva. Patogenicamente é o elemento conativo que determina a perseveração de conceitos, impossibilitando uma adequada abstração na formulação dos mesmos. Aparece também como traço de personalidade, ligado à epilepsia, que por englobar uma variedade de manifestações e ser muito alta a sua distribuição na população média, aparece de modo frequente. Quando presente é facilmente detectável durante a entrevista, assumindo às vezes, proporções que nos obriga a interferir para que o paciente não disperse e não perca a finalidade da mesma.

  1. Fuga de ideias

Aqui o elemento característico que marca o comprometimento na formulação do pensamento e dos conceitos é a instabilidade da conação, pela interferência de estímulos afetivos. Assim, quadros emocionais intensos podem determinar fuga de ideias pela incapacidade de retenção na elaboração ou, pelo contrário, o bloqueio parcial ou total do pensamento, característicos do estado de pânico. 

  1. Ideias prevalentes

Ocorrem devido à prevalência dos dinamismos emocionais, distorcendo a realidade em casos de preocupação excessiva, ou quando o contato emocional se liga a aspectos afetivos da individualidade, como o orgulho e a vaidade: no ciúme mórbido a prevalência dos estímulos afetivos do orgulho e da vaidade, determina a perseveração no plano conativo, em condições anormais, fazendo com que o indivíduo não se liberte da ideia preconcebida, às vezes, nem mesmo a apresentação lógica dos fatos e da realidade ou através de persuasão conseguimos fazer com que o paciente desfaça ou modifique sua concepção. Em condições de grupo, onde o elemento emocional atinge níveis anormais, a ideia prevalente passa a determinar o comportamento destrutivo, impossibilitando melhor rendimento das tarefas executadas. 

A ideia prevalente corresponde, no plano perceptivo, ao falso reconhecimento e à ilusão sensorial e às vezes assume uma proporção em que a inacessibilidade e convicção extremadas elevam às mesmas características dos delírios, com o qual devemos fazer o diagnóstico diferencial. Pela prevalência do elemento conativo, da perseveração, que mantém o trabalho mental numa dada linha de raciocínio, no caso mórbido, a ideia prevalente aparece mais ligada também ao ciclo da epilepsia, tal como ao fanatismo. 

  1. Texto organizado por Roberto Fasano, em 2005, a partir de aula de Aníbal Silveira, sem referência a local, data e a quem a compilou. Revisto em 20/09/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano. ↩︎