CONCEITO DE PERSONALIDADE SEGUNDO VON MONAKOW, FREUD E COMTE¹
O conceito de personalidade está plenamente estabelecido, ainda que as funções que integram a sua estrutura, sofram variações.
A noção de personalidade, não deve ser confundida com a de indivíduo, a qual abarca o conjunto de funções orgânicas.
Devemos restringi-la ao conjunto de funções subjetivas, integradas em sistemas harmônicos. Na unidade psíquica o isolamento entre uma função e outra é efetuado apenas por abstração, ainda que a psicologia permita verificar quais são as diferentes funções simples integrantes.
Os psicólogos anteriores a Freud não possuíam uma teoria da personalidade na acepção hoje corrente. Atualmente, a escola mais seguida é a de Freud, que é um método de investigação e de terapêutica.
Na sua fase inicial, a psicanálise trouxe para a prática médica o conceito dinâmico de personalidade: Freud, estudou os primeiros pacientes com Breuer e com Charcot, observando que, depois do relato pormenorizado dos males em hipnose, muitos pacientes se sentiam aliviados. A partir desses estudos iniciais, construiu uma teoria da personalidade, publicada ao redor do ano de 1890.
Anos depois apareceu a teoria de von Monakow, insigne psiquiatra e anatomopatologista russo, que residia na Suíça: a psicologia da Horme. O termo Horme vem da mesma raiz que deu origem a “Hormônio” e “significava lançar algo para o exterior”.
O presente curso será orientado pela teoria da personalidade de Comte, aparecida em 1850.
Freud e Monakow criaram termos novos para exprimir novas ideias. Comte, ao contrário, usou termos comuns aos pesquisadores e termos tradicionais da linguagem laica, para exprimir conceitos novos: redefiniu-os segundo suas próprias concepções.
Teoria de von Monakow
Como se verá, apresenta alguma analogia com a teoria de Comte. A horme é um instinto básico, fundamental, formativo, do qual deriva a série de hormetérios, originados do contato da horme com o mundo exterior. Dos hormetérios derivam os noohormeterios, responsáveis pelos atos conscientes, pelas reações objetivas, pelos pensamentos, pelas disposições.
A união das horme materna e paterna se efetua com o plasma germinativo, que está em ligação com o instinto formativo. A criança, tem, ao nascer, apenas o instinto formativo, por influência da horme e vigente desde a fase de embrião.
Durante a infância, o contato da horme com o meio exterior vai produzindo os hormetérios, que se fazem patente em todos os atos psíquicos do adulto: estes se originam das solicitações do meio exterior e se exprimem pelo “sentimento de pujança”, que leva o indivíduo a atuar e a tentar apreender o que está nele, no meio ambiente.
No período de maturação genética, ainda por influência dos hormetérios, o indivíduo tende a propagar a espécie. Algumas fases decorrentes da evolução biológica podem faltar; exemplo – o indivíduo pode não ter filhos.
Com o amadurecimento individual começa a ação dos noohormetérios, que levam o indivíduo a se integrar à família, ao ambiente, à nação, à Humanidade, a tender para religiões e para o cosmo.
Em síntese, os três grupos são:
- Horme – instinto cego, sem direção, formativo.
- Hormetérios – instintos pessoais, tendências, sentimentos de pujança, atua sobre o meio externo
- Nouhormetérios – adaptação à realidade, força propulsora consciente e orientada, integração na esfera religiosa, na sociedade e no cosmos.
Com o progredir dos anos, o homem desenvolve o “instinto religioso”, expressão dos nouhormetérios, que o adapta à integração final no cosmos, através da morte.
Na doutrina de von Monakow todas as atividades procedem, assim, de uma força instintiva básica, a qual estabelece a unidade do indivíduo desde a fase embrionária até a desintegração objetiva.
Teoria de Freud
Na doutrina de Freud o fundamental é o aspecto dinâmico. Na personalidade existem, no estado maduro, três instâncias interdependentes, o id, o ego e o superego.
O id, que corresponde à horme de von Monakow, é um conjunto de forças instintivas cegas, propulsoras, mas apenas como impulso sexual. Essa concepção pansexual inicial foi retificada: na verdade, Freud remanejou constantemente a sua teoria até o fim da vida. O id corresponde às funções instintivas herdadas; visa prover as necessidades do indivíduo, sem que haja conhecimento da realidade exterior. O meio exterior, porém, exerce ação sobre o id, em função da própria necessidade de sobrevivência: surgem limitações que forçam o indivíduo a desenvolver o ego.
Dessa forma, o ego constitui uma nova instância da personalidade, derivada do id em consequência da reação ao meio. O ego é obrigado a adaptar as necessidades básicas do indivíduo à realidade.
Dessa necessidade econômica, surge então o superego, que exerce função de repressão: essa se coloca em oposição às forças primitivas do id.
No ego se distinguem três camadas: a camada superficial, em contato com o mundo externo, a camada interior, desdobramento do id, e ligada ao mundo proprioceptivo e a camada básica, persistência do id.
A camada superficial e a camada interior lidam com estímulos externos. Aqui se incluem noções, memória, reações de fuga, de adaptação e as atividades exteriores.
A camada básica lida com os estímulos internos, é nela que permanece a carga instintiva do indivíduo remanescente do id primitivo e que não se extingue com o aparecimento das demais instâncias.
Os estímulos internos devem subordinar-se ao meio externo, o que leva o ego a dominar as necessidades instintivas incompatíveis com a sociedade. Se o indivíduo não consegue domínio completo das solicitações instintivas, falha a função defensiva do ego, o que o expõe aos conflitos que se exprimem na neurose.
A pressão repressora do ambiente, representada pela constelação familiar, é absorvida no superego, o qual dessa forma constitui o que, vulgarmente, se chama “consciência moral”.
A interrelação constante, id, ego e superego podem aliar-se, dois a dois, de modo diverso, em luta determinada, pelas condições peculiares a cada personalidade.
A concepção de Freud é dinâmica, como a de von Monakow, mas é mais estruturada. Também Freud admite que um grupo de funções, as do id, é inato, e que outras, do ego, são derivadas do primeiro, por desenvolvimento progressivo, sob a influência do meio exterior.
A doutrina de Freud veio em oposição aos conceitos dos associacionistas, que na época dominavam o pensamento psicológico. Esses, por exemplo, acreditavam que certas funções só aparecem a partir da puberdade, como é o caso da função sexual.
Para Freud, o instinto sexual é inato, não genitalizado, além de reprimido pelo superego. Freud, distingue, pois, entre instinto sexual e função sexual. A criança, por ser impulsionada por instintos, seria um perverso polimorfo (hoje sabemos que não é assim).
O apego da criança pelo pai e pela mãe não é incestuoso. A ideia de incesto é social; aparece na análise do adulto projetada com caráter sexual e associada às fantasias infantis, porque a personalidade já sofreu a influência da evolução do indivíduo.
A doutrina de Freud, como a de von Monakow, apresenta uma contradição: o instinto sexual é inato, mas a inteligência e a atividade não o são. A concepção de Freud, embora arrojada e dinâmica sobre esse aspecto, é inferior à de Comte, que a precede em 40 anos.
Teoria da personalidade segundo Comte
Consideram-se, igualmente, três setores da personalidade, mas todos inatos.
A Afetividade é a esfera básica da personalidade, se não existisse não haveria interesse nem ligação com o meio exterior. A afetividade estimula a atividade e, através desta, a inteligência. Ela também pode estimular diretamente à inteligência: esta última atua sobre a atividade e reage sobre a afetividade. Por exemplo, a fuga é uma reação afetiva. A afetividade é o setor principal no aprendizado.
A Atividade ou Conação não é a própria ação exteriorizada, isto é, os atos ou a motilidade, mas abarca apenas os dinamismos internos. A atividade, nessa acepção, é constituída pelas funções subjetivas que levam o indivíduo a atuar no meio exterior, ou a efetuar o trabalho mental.
A Inteligência compõe-se de três grupos de funções básicas: contemplativas, elaborativas e da expressão.
Todos os três setores da personalidade são inatos, mas entram em plena função em épocas diferentes. Também devem ser compreendidos em termos de hierarquia, isto é, de dependência recíproca: o grupo mais dependente na linha superior e o grupo mais básico na linha inferior.
Nossa vida afetiva está diretamente ligada ao meio interno visceral e só se liga ao meio externo através da atividade e da inteligência.
ESQUEMA INDICANDO AS TRÊS ESFERAS DA PERSONALIDADE E SUAS FUNÇÕES
ESQUEMA DAS RELAÇÕES ENTRE AS TRÊS ESFERAS DA PERSONALIDADE E O MUNDO INTERNO E EXTERNO
- Sistema nervoso autônomo (simpático e parassimpático)
- Sistema nervoso visceral aferente
- Interesse
- Processo emocional (Emoção)
- Motivação, espontaneidade
- Atenção
- Orientação
- Funções de ligação: expressão
- Funções de ligação: processo perceptual
- Ação explícita (preensão e locomoção)
O instinto nutritivo é a parte primitiva e menos diferenciada da afetividade e é por meio dessa área que ela se liga ao mundo visceral.
O mundo exterior se liga à afetividade pela inteligência e pela atividade, as quais são continuamente estimuladas, por outro lado, pelo conjunto da afetividade.
Na doutrina de Comte, todas as funções são inatas, embora dinamicamente algumas sejam fundamentais: as afetivas, pois o que leva à manifestação de nossa atividade e de nossa inteligência são nossos interesses.
Em Freud e von Monakow há um instinto básico, inato, mas a atividade e a inteligência, bem como outros instintos são derivados daquele. Comte afirma que as reações são orientadas por nossa afetividade, em grau maior ou menor do estágio do desenvolvimento biológico do indivíduo considerado. Mas todas as funções vegetativas estão ligadas ao instinto nutritivo, e isso hoje está confirmado pela clínica e pela experimentação.
No grupo da afetividade, como um todo, predominam numericamente. Os instintos propriamente ou funções da individualidade somam sete. As três funções da sociabilidade, ou sentimentos altruísticos, são as que necessariamente prevalecem na estrutura da personalidade.
As funções conativas, ou da atividade, não só propiciam a ação explícita como também efetuam o trabalho mental, que se processa em duas direções: aferente e eferente. [Isto é: a regulação da atividade sobre as cinco funções intelectuais – observação concreta e abstrata, meditação dedutiva e indutiva e expressão]².
Na direção aferente, se examina e se apreende a realidade exterior (observação concreta e abstrata), ou se comunica a outros o estado subjetivo (linguagem). Na direção eferente, isto é, retificando pelo estudo da realidade (meditação, indutiva e dedutiva) as concepções (donde juízo de realidade).
As nossas disposições afetivas e conativas variam em intensidade com o grau de maturidade do indivíduo (psicologia evolutiva), com as diversidades de estrutura individual (psicofisiologia constitucional) e, em termos mais amplos, com o tipo étnico a que pertence a personalidade em estudo (psicologia étnica e social).
Von Monakov – Mourgue
¹Texto organizado por Roberto Fasano, em 2003, a partir de aula proferida por Aníbal Silveira, em 14 de maio de 1963, sem referência de local ou de quem a compilou. Revisto em 24/01/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano.
²Incorporamos esse trecho para dar maior clareza à dinâmica entre as três esferas da personalidade.