Concepção atual da Psiquiatria

CONCEPÇÃO ATUAL DA PSIQUIATRIA1

Vamos referir em traços gerais a concepção atual da Psiquiatria e o conjunto de disciplinas que constituem a Psiquiatria. A Psiquiatria não pode ser considerada como uma especialidade. É uma maneira de encarar os problemas mentais que envolve conhecimentos de ordem psicológica, psicogenética, psicofisiológica e envolve conhecimentos da dinâmica que impõe a aplicação desses conhecimentos para o diagnóstico do paciente. Finalmente, significa uma corrente terapêutica que visa essencialmente o reajustamento do paciente e a sua reintegração na comunidade, bem como um aspecto de ordem preventiva procurando, o tanto quanto possível, prevenir que os distúrbios mentais surjam. 

Não são apenas os distúrbios mentais decorrentes de problemas tóxico infecciosos que podem ser prevenidos. Há uma série de circunstâncias que fazem com que irrompam em quadros mentais, mesmo graves, que podem ser prevenidos, mas só serão passíveis de prevenção, se o médico estiver orientado para os vários dinamismos, normais e patológicos, que possam constituir o quadro clínico. 

Por exemplo, um paciente que é sujeito a convulsões e que tem períodos de ausência. Frequentemente, pode apresentar estado crepuscular como consequência de convulsões. Outras vezes, o estado crepuscular aparece como autônomo, sem nenhuma relação com a crise convulsiva. E nesse estado o paciente pode ter comportamentos gravíssimos. Temos visto casos de homicídios, às vezes coletivos, sendo várias pessoas atingidas por um indivíduo em estado crepuscular. Se esse paciente for tratado convenientemente, se pudermos orientar a terapêutica no sentido de evitar o estado crepuscular, é possível evitar acidentes graves dessa ordem. Não se pode evitar que ele tenha uma psicose, mas pode-se evitar um quadro clínico mais grave. Isso pode ser observado nos noticiários dos jornais: uma pessoa que tem comportamento íntegro e, de repente, tem uma atitude discordante com aquilo que se conhece a seu respeito. Essa finalidade preventiva seria uma finalidade preventiva imediata. 

Mas há outro aspecto, mais geral, que é chamada de prevenção genética, que só pode ser estabelecida através do aconselhamento genético. Para isso é necessário que haja uma articulação dos serviços públicos, porque isso não é função de consultório particular: é função de sanitarista.

O aconselhamento genético deve ser feito no sentido de evitar um quadro psicótico endógeno. Por conseguinte, o fato de se falar num quadro endógeno, não implica que este quadro seja irremovível. A maneira pessimista de encarar isso é comum não só entre leigos, mas também entre muitos médicos, que procuram convencer-se e assegurar ao paciente de que o quadro psiquiátrico não é hereditário. 

O psiquiatra não é apenas o que faz diagnóstico e trata do paciente, a sua função principal é para o aconselhamento correto e, para isso, é preciso conhecer a psicopatologia, que não seja fundamentada apenas na descrição do quadro clínico.

A nossa maneira particular de encarar a psicopatologia dá a esse termo a acepção de dinamismos psicológicos anormais, que se entendem como gênese dos sintomas e do quadro clínico em si mesmo. Essa distinção nos parece muito importante porque um mesmo quadro clínico pode apresentar caracteres sintomatológicos inteiramente diversos, ou então, quadros clínicos inteiramente distintos podem ter expressão clínica idêntica. Se não compreendermos isto, não podemos fazer diagnóstico correto. E o diagnóstico não é um rótulo, mas um resumo dos conceitos que o psiquiatra faz em relação ao paciente, quanto ao fator desencadeante, quanto à configuração e quanto ao prognóstico do quadro clínico e, naturalmente, quanto à orientação terapêutica que depende desse conjunto de conhecimentos. 

A psiquiatria, portanto, tem de se basear numa porção de disciplinas, não pode ser considerada como uma especialidade. O psiquiatra tem uma série de funções que decorrem uma das outras, não pode ser psicoterapeuta se não conhecer o dinamismo psicológico normal, e se não for psicoterapeuta, for apenas psiquiatra clínico ele não está preenchendo todas as suas funções. A neurologia faz parte da psiquiatria. O exame psicológico não é um exame complementar, faz parte do exame psiquiátrico, aprofunda aspectos que o psiquiatra não tem condições de investigar.

Quando estudarmos a semiologia veremos as diferenças entre exame psíquico, exame psicológico e exame psiquiátrico. A maioria das dificuldades que aparecem reside neste fato da necessidade de se apreciar os fenômenos sob vários prismas diferentes, e isto é função da clínica. 

A psiquiatria, como a compreendemos hoje, decorre de uma série de aspectos de ordem filosófica, de ordem clínica geral e que se constituem como especialidade desde o século passado. Até o século passado as condições mentais mórbidas eram consideradas como se fossem independentes da personalidade, era o quadro da doença que se estabelecia como se fosse um aspecto novo no indivíduo, que o tornava alheio à população média e à vida comunitária, daí o nome de alienação. Mas, na realidade, os primeiros tratadistas que foram os autores hipocráticos, e mais tarde Aristóteles, já previam esse entrelaçamento de níveis de personalidade. Como dizia Hipócrates, na natureza humana tudo converge, tudo consente e tudo conspira, e não há um elemento único que possa estar perturbado sem que os outros também não estejam. Isso hoje em dia é o que é ultramoderno na psicologia. Entretanto, isto vem de quatro séculos antes de Cristo. Aristóteles endossou esse ponto de vista e deu contribuições próprias ao estudo da personalidade. Por exemplo, observou que o indivíduo sujeito ao Mal Sagrado (Epilepsia) e que contraía a Quartã (Malária), ficava livre das convulsões: o que corresponde à malarioterapia. Mais tarde prevaleceram as ideias filosóficas de Kant e de Leibniz, dentre outros, sobre a mente. Mas esses pensadores só consideraram os dinamismos mentais normais e não os patológicos. Os patológicos seriam uma discordância completa dos normais. Esses pensadores focalizaram não a personalidade integral, mas a maneira como essa personalidade entra em contato com o mundo exterior. 

Com o advento da Revolução Francesa houve uma modificação completa na maneira de conceber as relações interpessoais. Foi quando Pinel estabeleceu a concepção atual da Psiquiatria. Pinel tentou classificar as doenças mentais em vários quadros, mas procurou dar a esses quadros uma compreensão naturalística. Não filiou diretamente as doenças mentais como expressão do cérebro, mas procurou dar uma compreensão dos vários quadros mórbidos: os que evoluíam para o estado demencial, as formas chamadas vesânicas e outras que evoluíam para a remissão, a idiotia temporária, como se dizia naquela época. 

Pouco mais tarde, Gall relacionou todas as anormalidades e os atributos normais ao cérebro. Gall revolucionou completamente a concepção da psiquiatria e foi extremamente combatido por isto. Foi considerado antirreligioso. Gall protestou contra isso afirmando que não podia ser considerado um ateu, já que tinha proposto uma sede cerebral para o instinto religioso. O mérito de Gall foi o de mostrar que todas as funções psíquicas dependem do cérebro, mas não do cérebro como um todo, mas de porções do cérebro que funcionam em conjunto. O que se diz de Gall em geral é inteiramente falso. 

Ele estabeleceu exatamente isto: naquela época os grandes pensadores admitiam as funções cerebrais como sendo as intelectuais, mas as vísceras e o coração sediavam a coragem e a afetividade, mas Gall anunciou que também as funções afetivas decorriam do funcionamento cerebral. Gall criou a frenologia que foi posteriormente deturpada pelos seguidores, mas que trouxe a concepção fundamental de que todas as funções psíquicas decorrem do cérebro. Naturalmente, considerou como funções cerebrais tanto as normais, quanto as patológicas. Broussais, alertado por Comte que chamou sua atenção para a frenologia, escreveu um tratado sobre a irritação e a loucura. Ele atribuía a loucura a perturbações gerais, especialmente do intestino e criou o método da sangria para aliviar os humores. Comte fez uma análise da obra de Broussais e nesta análise, Comte usou a sua própria experiência. Teve uma perturbação mental, tipo autotóxica e esteve internado no sanatório de Esquirol, onde ficou meses sem melhora. Mais tarde saiu e obteve recuperação plena e verificou que as leis que ele tinha estabelecido, como leis normais da mente humana foram cedendo, passo a passo, à medida em que ele ia entrando num estado de loucura. À medida que retornou à normalidade recuperou todas as funções. Fez a crítica do seu surto mental e chamou a atenção de Broussais para a importância da obra de Gall. Broussais procurou dar uma concepção etiológica das doenças mentais, tão geral quanto possível. Mais tarde outros autores mostraram a relação entre o estado cerebral e as funções mórbidas psíquicas. Entre eles, Baillager estudou uma série de doenças mentais retificando em parte as concepções de Pinel e em parte as de Esquirol que foram intermediárias entre as de Pinel e Baillager. 

Depois, Griesinger dava uma concepção geral das doenças mentais especialmente as formas confusionais. Mais tarde, retomando a relação entre a mente e o cérebro, Broca descreveu o célebre caso de afasia motora num paciente que tinha lesão cerebral, verificando a sede dessa lesão, em um local previsto por Baillager. Bouillet mostrou que a correlação entre o centro da linguagem de Gall correspondia ao centro da linguagem que era lesado no caso de afasia de Broca. 

Mas ainda nessa época todas as doenças mentais eram muito pouco compreendidas. As duas tentativas de classificação foram, principalmente, a de Pinel e a de Esquirol, que procuraram estabelecer gênero e classe como se fazia na sistemática geral da História Natural. Valentin Magnan que faleceu em 1916, influenciado pelas ideias da época de degeneração mostrou que alguns dos pacientes descritos por Esquirol, e antes por Pinel, eram pacientes que não eram idiotas, mas tinham uma doença mental que chamou de estupidez, caracterizando o estupor que conhecemos hoje. E isto já foi um elemento para diagnóstico diferencial entre a idiotia, a depressão, as demências e esse quadro agudo estuporoso descrito por outros autores, Meynert principalmente. Jackson (1835-1911) estabeleceu aquela teoria dos níveis de funcionamento cerebral, teoria que decorre indiretamente de Herbert Spencer e indiretamente de Comte. Eram os níveis de dissolução e de integração. Fez uma interpretação dinâmica das funções mentais, classificando não somente quanto à patogenia, mas quanto à dinâmica cerebral. No fim do século XIX começou-se a fazer uma sistematização dos conhecimentos da psiquiatria. Na Alemanha, Wernicke e Kraepelin trabalharam no campo da psicopatologia ao lado de Meynert e outros psiquiatras, que como todos os psiquiatras daquela época, tinham conhecimentos profundos de anatomia patológica, da dinâmica cerebral, praticavam o hipnotismo e procuravam filiar os distúrbios mentais a quadros bem definidos. Naquela época surgiu a sistematização principal, que foi a de Kraepelin, classificando os quadros clínicos em endógenos e quadros resultantes de efeitos tóxicos: daí o termo psicose endógena e exógena.

Os autores de hoje, que não aceitam Kraepelin, não aceitam porque surgiram dados novos na psiquiatria. Kraepelin deu um sentido prognóstico à sua classificação. A psicose endógena tende ao estado demencial, salvo no caso da psicose maníaco depressiva que seria uma psicose endógena constitucional reversível e periódica. Entre as psicoses endógenas estabeleceu dois tipos fundamentais: as que tinham uma remissão completa e as que levavam a um estado demencial. Havia na classificação de Kraepelin uma simplificação e ao mesmo tempo incluía uma causa de erro muito grande, no que diz respeito ao diagnóstico psiquiátrico, porque nesta fusão de quadros em que havia remissão total e demência ele tinha incluído pacientes de tipo inteiramente diferentes. Assim, ele criou uma fusão de quadros clínicos de autores que tinham descrito na França e na Alemanha condições mórbidas que eram de tipo progressivo e juntou todas elas num grupo único. Kahlbaum havia descrito a catatonia, Hecker tinha descrito a Hebefrenia, Morel na França tinha descrito a Demência precoce, Kraepelin reuniu todas essas formas e deu a elas o nome de demência precoce. Um diagnóstico que envolvia um prognóstico grave, mas todas tinham em comum um aspecto, o da desagregação da personalidade, da perda de contato com o mundo exterior. Kraepelin ao criar esse grupo de psicoses endógenas seguiu uma via inteiramente diversa da de Wernicke, que procurava estabelecer o quadro clínico e depois relacioná-lo à personalidade anterior, procurar situar no plano da personalidade as esferas que tinham distúrbios mais importantes e dar ao quadro clínico a denominação correspondente a esse aspecto. Ele descreveu com minúcias o que chamamos hoje de automatismo mental, por exemplo, as ideias autóctones dele são ideias que vem do automatismo mental. Associou aspectos da psicopatologia a aspectos da patologia cerebral, da neurologia e desentranhou daquele grupo, que Kraepelin havia reunido, os quadros que são passíveis de remissão integral, embora pareçam demenciais, dando um prognóstico mais preciso, mais exato, baseado no dinamismo psicopatológico. Constitui uma série grande de quadros psiquiátricos que não eram conhecidos e que estavam englobados nesse grupo, de uma maneira inteiramente diversa daquela que seguiu Bleuler. 

Este procurou associar os quadros clínicos, não por serem endógenos ou exógenos, mas pelo colorido que apresentavam. O grupo da esquizofrenia que ele criou, dando esse nome à doença porque o característico principal era a cisão da personalidade, que correspondia ao quadro clínico de Kraepelin. A única diferença está em que não mencionava a demência como integrante do diagnóstico. Era um quadro passível de remissão porque os pacientes que estavam rotulados de demência precoce, às vezes regrediam integralmente. Mas, nessa fusão de quadros, ele explicitou mais ainda a causa do erro que estava implícita na concepção de Kraepelin. Kleist seguiu via totalmente diversa de Kraepelin nesse aspecto. Já no século passado surgiram os estudos empíricos estatísticos da genética humana. Nasceu daí a necessidade de ser estabelecida a previsão, do ponto de vista genético, da patogênese dos quadros clínicos. A psiquiatria, a psicopatologia e a psicologia não são ciências. Se dermos à ciência um caráter de estudo sistemático que permite a previsão dos fenômenos independente dos seres, não podemos dizer que a psiquiatria seja uma ciência, é um estudo de aplicação, estudo que se baseia no conhecimento científico. Assim a fisiologia não é ciência, como a anatomia não é, são aplicações particulares. A psiquiatria como a medicina é arte e não ciência. A Moral é a ciência que corresponde à psiquiatria. A Moral seria o conjunto das leis que regem a concepção do homem.

  1. Texto organizado por Roberto Fasano, em 2003, a partir de aula de Aníbal Silveira, ministrada em 04 de março de 1969 em Curso de Psicologia Médica na UNICAMP, Campinas, sem referência de quem a compilou. Revisto em 27/09/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano. As referências adicionais em azul serão vinculadas a um texto relacionado com um determinado autor ou um determinado assunto. ↩︎