PSICOSES PROGRESSIVAS DESCRITAS POR KLEIST. COMPARAÇÃO COM O CONCEITO DE KRAEPELIN E COM O DA ESCOLA DE BLEULER1
A escola psiquiátrica de Kleist é muito exigente quanto ao processo de elaboração do diagnóstico. Para se firmar um diagnóstico, segundo Kleist, é necessário, primeiramente, conhecer os dados fundamentais da psicopatologia e aprofundar a análise dos dados clínicos a partir do critério patogênico. Sem a patogênese não é possível compreendermos a classificação das psicoses de Kleist. Mas também sem o critério patogênico o psiquiatra fica desarmado para classificar os pacientes numa categoria ou em outra.
Uma das contribuições mais importantes de Kleist foi desmembrar das psicoses reversíveis constitucionais aquelas psicoses que ele chamou de degenerativas. As psicoses degenerativas de Kleist constituem um grupo muito importante, que freqüentemente são confundidas com as psicoses progressivas.
Uma das confusões mais frequentes é o diagnóstico de esquizofrenia em pacientes que tem uma forma reversível, de caráter benigno, que apresenta uma tendência de remissão integral.
As formas progressivas de Kleist não permitem essa evolução com uma tendência à remissão, a não ser na forma confusional, mas depois de cada surto fica sempre um deficit, que é pequeno e não evidenciável ao exame grosseiro, que vai se acentuando a cada surto: portanto, é uma forma que embora evolua por surtos constitui, na realidade, uma forma progressiva.
A abordagem patogenética de Kleist oferece um critério mais seguro para o diagnóstico. No entanto, é mais exigente, não sendo possível fazer um diagnóstico à primeira vista, é necessário cumprir uma série de condições na observação para se firmar o diagnóstico, mas isto dá segurança ao psiquiatra e, principalmente, beneficia o paciente.
Kleist distinguia, como os autores faziam anteriormente, as psicoses em dois grupos: psicoses progressivas e psicoses reversíveis. As psicoses degenerativas eram todas vinculadas ao grupo das psicoses reversíveis.
O conceito de psicoses progressivas não é uma contribuição especial de Kleist, a sua contribuição está no critério diagnóstico. As psicoses progressivas são conhecidas desde Esquirol e de Pinel, sendo descritas como aquelas formas que levam ao estado demencial. Portanto, desde o século passado já houve o reconhecimento de casos que se iniciam com um surto momentâneo e que, depois de passada a fase aguda, evoluem para um estado de incapacidade que pode ser limitada, mas que ao final corresponde a um quadro demencial.
Alguns casos foram caracterizados como demência secundária, quando ocorria um quadro psicótico que era interpretado como uma infecção do Sistema Nervoso Central e que, em seguida, se estabelecia um estado de deficiência progressiva e continua. Em outros casos, pelo contrário, desde o início já apresentavam um quadro com embotamento, com grave comprometimento das funções psíquicas, caracterizando a chamada demência primária ou loucura primária (os alemães foram os que estabeleceram primeiro esse critério).
Esses quadros foram estudados, posteriormente, pela escola francesa, especialmente por Morel e depois por Magnan, estabelecendo um critério para o diagnóstico de demência precoce. Morel estudou pacientes em hospitais psiquiátricos de crônicos e verificou que pacientes muito jovens apresentavam quadros, às vezes muito ruidosos, às vezes silenciosos e rapidamente entravam em estado demencial. Criou, então, o termo de demência precoce. Precoce nesse sentido, porque descreveu casos que começam na juventude e precocemente avançam para a demência.
Magnan estudou, bem mais tarde, (porque Morel publicou o trabalho dele em 1864 e Magnan já é do século XX), esses casos e estabeleceu o conceito de degeneração. Para Magnan, a degeneração traduz um processo mórbido que correspondia a uma volta, a uma regressão ao estado anterior da condição humana e daí a idéia de atavismo. Essa ideia de degeneração seria um processo mórbido que se apresenta sem nenhuma causa desencadeante, que decorre das tendências genéticas do indivíduo e retorna ao modo de agir e de sentir atávico, explicaria a grande maioria dos delírios (delírios primários), chamados inicialmente pelos autores como “demência parcial primária”. Como foi verificado que a maioria dos casos relacionados com a evolução dessa doença era demencial, ficou consolidado o termo demência precoce como uma noção específica na Psiquiatria.
Esses conceitos se generalizaram para todas as escolas consolidando a noção de que a demência era um estado de degeneração e daí, Magnan estimar, um pouco depois, esse critério de que os pacientes, que têm um surto psicótico e depois regridem completamente, são indivíduos degenerados que têm um surto delirante. Daí veio esse conceito de surto delirante dos degenerados e que persiste até hoje: em vez de degenerados falam em psicopatas, em surto psicótico em psicopatas. Os conceitos de Kleist, como serão abordados mais adiante, são totalmente diferentes desses.
Por outro lado, em 1874, Kahlbaum publicou uma monografia sobre uma loucura com hipertonia motora, com tensão muscular. Antes, em 1868, ele já tinha publicado alguns trabalhos sobre isso, mas a monografia apareceu mais tarde. Portanto, em 1868, Kahlbaum, na cadeira de Psiquiatria de Königsberg estabeleceu que uma grande parte dos chamados degenerados apresentavam alteração, principalmente, do tonus muscular e essa alteração ele chamou de catatonia. Essa concepção de Kahlbaum como uma entidade clínica foi logo aceita por todos os psiquiatras da época, em meados do século passado. Pouco antes, em 1871, Kahlbaum indicou para um colaborador dele, Hecker, que estudasse pacientes que tinham uma alteração, semelhante em grande parte à catatonia, mas que aparecia mais cedo, isto é, surgia muito mais precocemente na vida do indivíduo do que a forma catatônica.
Hecker publicou, em 1871, um relatório muito extenso, do qual só conhecemos um resumo, em que ele estudou pacientes com uma condição mórbida que ele chamou de hebefrenia. Uma alteração mental que aparecia na juventude e daí o nome de hebefrenia e, nessa ocasião, também foi bem acolhida essa interpretação, embora com muita confusão entre o quadro de catatonia e de hebefrenia. Os autores aceitavam largamente a catatonia, mas com certa reserva, a hebefrenia, devido à dificuldade diagnóstica de distinguir um caso do outro.
Em sua monografia, Kahlbaum referiu um critério importante que ele chamou critério clínico, isto é, a necessidade de examinar o paciente não apenas como ele se comporta, do ponto de vista da motilidade, mas avaliar de uma forma mais abrangente. Assim, observar todas as condições do paciente, não só a descrição do quadro deveria ser o fator que orientasse o diagnóstico psiquiátrico.
Nesse contexto, Kraepelin resolveu essa dificuldade, do ponto de vista clínico, mostrando que todas elas têm um fator em comum: a hebefrenia, a catatonia e a demência precoce de Morel. Observou que todas elas eram manifestações um pouco diversas, mais num plano afetivo no caso da hebefrenia, mais na reação psicomotora no caso da catatonia ou englobando toda a personalidade do indivíduo, no caso da demência precoce. Com isso, Kraepelin criou a entidade da demência precoce: achou que todas as manifestações eram manifestações esparsas, parciais e que tinham dignósticos psiquiátricos específicos porque eram vistas assim, em partes.
De modo que ele chamou demência precoce uma entidade clínica que se apresenta sob vários aspectos, conforme o ponto de vista que tenha, conforme predomine no indivíduo um aspecto ou outro, no estado demencial. Denominou demência precoce, tomando o termo de Morel na França e distinguiu o grupo da hebefrenia, o grupo da catatonia e um grupo que correspondia mais à reação intelectual do indivíduo: a demência precoce paranoide. Paranoide no sentido de delírio e paranoia. Naquela ocasião, a paranoia correspondia a uma ideia delirante. Isto é, conceitos delirantes e alucinações constituiam a paranoia em geral, e daí o nome paranoide como variedade dessa forma.
Esse critério foi aceito em larga medida e os autores reconheceram a grande capacidade de Kraepelin em sistematizar o conhecimento psiquiátrico do seu tempo e dar uma definição clínica precisa. Alguns autores, como Krapff Ebing (1903), tinham uma certa reserva com relação à noção da unicidade da demência precoce, estabelecida por Kraepelin. Faz muita referência a Kraepelin e a mesma coisa acontece com Bianchi – a última edição que conheço dele é de 1920 – que põe em dúvida a unicidade da demência precoce.
Os autores que colocavam em dúvida a unicidade da demência precoce, se baseavam no fato de que muitos pacientes, depois de algum tempo, entravam em remissão. Logo, a demência que aparece precocemente na vida do invíduo seria antinômico à possibilidade de remissão.
Daí o questionamento da demência precoce como entidade clínica. Em primeiro lugar, porque os pacientes entravam para o estado demencial de um modo diverso num caso e noutro, portanto, haveria uma variação grande de indivíduo para indivíduo no campo do mesmo quadro clínico. Em segundo lugar, porque em alguns casos não somente entravam em estado demencial de modo diferente, mas ficavam apenas em estado aparentemente demencial e depois remitiam.
Mais tarde, Kraepelin incluiu na forma paranoide uma forma mais tardia, que ele chamou de parafrenia. No entanto, sabemos que a parafrenia é uma variedade à parte da demência precoce paranoide.
Mais tarde ainda, estudando pacientes que apresentavam um quadro demencial menos pronunciado, mas com uma alteração na expressão verbal, criou o termo esquizofasia, como sendo uma forma autônoma da demência precoce. Assim, observamos que, primeiramente, Kraepelin reuniu entidades clínicas diversas, consideradas como independentes, num quadro único e, em seguida, desmembrou por imposição da clínica, duas outras entidades da primitiva demência precoce.
Somente Kleist, que utilizou o critério patogênico, foi quem dirimiu as dúvidas e esclareceu o porque dessa aparente confusão. Os autores em geral atribuem a Kraepelin a intenção de consolidar entidades estanques na psiquiatria. Isto é uma injustiça clamorosa porque não foi este o seu objetivo. Pelo contrário, procurou, após a descrição do quadro clínico, partir para o prognóstico, que é mais importante e, procurou adequar os seus conceitos às novas concepções, de tal forma que mais tarde utilizou os conceitos de Bleuler. Assim, mostrou que, realmente, alguns pacientes tinham no quadro clínico, o que Bleuler caracterizou como uma cisão na personalidade aceitando, portanto, o termo Esquizofrenia.
Bleuler fez uma revisão dos pacientes de Kraepelin e, em 1911, desmembrou o quadro da demência precoce em vários quadros distintos aos quais, em conjunto, deu o nome de grupo da esquizofrenia, valorizando a importância dos dinamismos psicopatológicos, estabelecendo o conceito de cisão da mente, daí o nome esquizofrenia.
O que interessa é saber que esse processo mórbido corresponde a uma cisão da personalidade, uma vez que o paciente pode ter um quadro agudo e em seguida passar ao estado demencial, ou pode apresentar um quadro agudo e remitir completamente, ou pode entrar numa psicose de modo silencioso e depois remitir, retornando ao estado normal anterior. E o que havia em comum a todos os casos, hebefrênicos, catatônicos e os paranóides era essa cisão, essa dissolução da unicidade psíquica.
Logo, na concepção de Bleuler, o que interessava era atentar para esse dinamismo patológico e, dessa forma, ele evitava a incongruência de fazer um diagnóstico de uma demência irremediável, em pacientes que podiam ter uma remisão completa.
Assim, com o diagnóstico de esquizofrenia desapareceu essa incongruência, mas desapareceu contra o paciente. É uma injunção que não foi satisfatória para o paciente, porque esse diagnóstico permitiu aos psiquiatras estabelecer, desde o início, o diagnóstico de esquizofrenia porque a doença pode chegar até um certo ponto e parar, não progredir. Pode chegar até um certo ponto e regredir e pode ser uma forma que apareça sem nenhuma causa desencadeante, isto é, que apareça como uma força endógena, na acepção de Kraepelin, ou pode aparecer com uma causa infecciosa qualquer. Nesse caso, a esquizofrenia, praticamente, não dizia nada porque apenas apontava para o dinamismo psicopatológico, mas não dizia nada quanto à etiologia, quanto à evolução clínica e quanto ao prognóstico, nem quanto à tendência genética maior ou menor para a doença mental.
Kleist esteve na primeira Guerra, em 1915. Em 1916 passou para a clínica de Rostok, onde permaneceu até 1920. Com o material clínico de Erlangen (pacientes crônicos) e depois com o de Rostok, Kleist estudou os vários quadros clínicos que apareciam na chamada demência. Ele considerou uma questão inteiramente diversa: todos esses quadros clínicos foram descritos num grupo constituído por pacientes muito heterogêneos.
Kleist mostrou que no grupo da catatonia havia pacientes, que eram realmente catatônicos, mas havia outros que, apresentavam psicoses benignas, isto é, psicoses passíveis de remissão integral. Da mesma forma, no grupo da hebefrenia, havia realmente hebefrênicos e aqueles que eram quadros clínicos remissíveis e a mesma coisa em relação às formas paranoides. Fez um estudo preliminar, publicado em um relatório de 1914 (ao concluir o estágio em Erlangen). Tinha retomado, um pouco antes, os pacientes de Wernicke, quando estudou a chamada psicose da motilidade, que Wernicke descreveu.
Aqui cumpre relembrar que Wernicke utilizava o conceito de patologia cerebral e da psicopatologia baseada na patologia cerebral, isto é, aprofundava os estudos de um modo mais geral, mas ligando os estudos clínicos com o cérebro. Ele descreveu a psicose da motilidade, que aparece como uma psicose maníaco-depressiva – com fase de excitação e com fase de depressão -, mas que não é psicose maníaco-depressiva. Muitos casos de psicose da motilidade de Wernicke eram pacientes com alteração cerebral devido a infecções; outros eram reações cerebrais diante de estados clínicos gerais e outros apareciam como formas exclusivamente genéticas, sem nenhuma causa desencadeante.
- Texto organizado pelo Dr. Roberto Fasano Neto, em 2003, a partir de aula gravada de Aníbal Silveira, proferida em 24/06/1971, sem referência de local e de quem gravou, sendo revisto, em 01/11/22, por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flávio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano Neto. ↩︎