DOIS ANOS E MEIO DE LAR ABRIGADO NO JUQUERI

DOIS ANOS E MEIO DE LAR ABRIGADO NO JUQUERI

Paulo Cezar Naglio Palladini

Arquivos de Saúde Mental do Estado de São Paulo
Vol XLVI – Janeiro a Dezembro/1986-1987

Trabalho apresentado no 11 Congresso Mundial de Psiquiatria Social 
Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1986

RESUMO

Em 1984 , no Hospital de Juqueri em Franco da Rocha SP, deu início o Autor à experiencia denominada Lar Abrigado , com um grupo de pacientes cronicamente hospitalizados,tentativa, junto a outras medidas transformadoras, de modificaçao das condiçoes de vida dos internados. Neste trabalho busca-se propiciar  que o próprio grupo defina a direçao  na medida em que possa superar posiçoes heterônomas firmadas em anos de internaçao, com crescente autonomia cooperativa. O núcleo dessa orientaçao tem sido a abordagem centrada na pessoa; a convicção de que pode-se atingir satisfatória sociabilidade com preservaçao da autonomia individual, facilitando-se relações interpessoais igualitárias. 

Convivência, autonomia, participção, cooperaçao, decisão, responsabilidade, solidariedade, confiança, respeito, e singularidade são palavras que procuram caracterizar o processo. 

Dois anos e  meio depis faz o Autor uma avaliação da experiência inicial, hoje ampliada com a criação de tres novos lares abrigados , envolvendo 202 pessoas internadas. 

Tentativas de modificar a prática institucional têm sido realizadas no Complexo Hospitalar do Juqueri, em Franco da Rocha, a partir de 1983, com as mudanças introduzidas na politica de saúde mental do Estado de São Paulo (2).

O Complexo Hospitalar do Juqueri fica a 50 quilometros da capial do Estado e ocupa uma área de 1200 alqueires, originários de várias fazendas adquiridas pelo governo no final do século passado. Compõe-se de um conglomerate central de varies edifices, queue integral a administraçao , as cíinicas para pacientes agudos e um hospital geral, e, espalhadas por sua imensa área, várias colonias para pacientes crônicos. Localiza-se também no seu perimetro o Manicomio Judiciário. Foi inaugurado em 1898 , embora tenha começado a funcionar em 1896, e algumas construções sejam ainda mais antigas, pois foram adaptados prédios das antigas fazendas.

A populaçao que la vive, 3500 internados, é uma população cronificada, média de 8 anos de internaçao, origem predominantemente rural e das camadas mais desfavorecidas socialmente. Grande parte não tem mais qualquer vínculo fora da instituição (4). 

Pensamos, em 1983, que uma proposta modificadora da realidade do Complexo, que possibilitasse a melhoria das condições de vida dos internados, deveria levar em conta sua origem socio-cultural, a perda dos vínculos externos, a cronicidade, suas necessidades atuais e expectativas.  Vários programas, conjuntamente denominados Projeto Juqueri, permitiram, então, abordar o problema da moradia, a quetão do trabalho, da convivênia e da assistência à saúde. Nasceram, assim, os centros de convivência, o programa agropecuário, os programas assistenciais e os lares abrigados (1,3). Os primeiros consistiam em espaços exteriores aos pavilhões, onde, por meio de uma série de atividades procurava-se estimular as relações sociais dos internados, com destaque para bailes, festas, cerimônias religiosas, esporte, música, teatro, artesanato, cinema. O programa agropecuário procurava a religaçao do homem à terra e a ocupação efetiva da área. A proposta era a implantação de hortas nas proximidades das colônias e espaços mais extensos de plantio e criaçao, além do reflorestamento de outras partes. Os programas de assistência à saude abrangiam a reorganização do atendimento nas situaçoes de crise, a articulação com os ambulatórios de saude mental e unidades básicas da região, criaçao de clíniica neurológica e  geriátrica. E, finalmente, criamos os lares abrigados como tentativa de cuidar do problema da moradia e possibilitar maior participação dos internados na vida da instituição, através da tranformação de clínicas em colônias, tanto estrutural como funcionalmente. 

Em artigo de 1984(5) conceituamos lar abrigado como uma “unidade pequena, descaracterizada em seus aspectos hospitalares, onde se procura, através da convivência, formas dignas de existência,com recuperçao da autonomia, das relaçoes sociais, participação nas decisões, da cooperação no trabalho, do estímulo para perceber e pensar a própria condição”. 

A transformaçao dos espaços físico e social, promovendo a ruptura do espaço hospitalar, seria trabalho participativo, onde os internados integrariam todos os momentos do processo. Desse modo a proposta foi levada a um determinado grupo, discutida e estabelecido um compromisso a priori, pois os rumos que o processo tomaria seriam apenas facilitados pela equipe, e nao conduzidos por ela (7). Assim a decisão de que cômodos ocupar no predio, de que modo dispor os móveis, se a porta de entrada ficaria aberta ou fechada e de que hora a que hora, quem faria o que, que tarefas seriam comuns, tudo passou a ser decisão do grupo. Todos foram convidados  a participar, embora nem todos aceitassem a nova condiçao, e tendessem a repetir o modelo tradicional incorporado durante anos e anos de internação (6). Entretanto, o processo de discussão de sua condiçao de pacientes psiquiátricos internados cronificados estava aberto.

O primeiro lar abrigado foi inaugurado no dia 4 de fevereiro de 1984 com 48 internados da colônia denominada “Chácara” e ocupando o prédio da antiga creche do Complexo (3,5). O trabalho preliminar de discussão da proposta foi feito na própria colônia de origem durante os seis meses que antecederam a mudança. Os reparos necessários, a recuperaçao e adequação dos móveis, sua disposição, enfim todos os aspectos que cercam a ocupaçào do local foram cuidados  pelos internados juntamente com os três funcionarios. que vieram integrar o grupo. Quarenta e três deles ja mantinham algum vínculo de trabalho no Complexo, e, portanto, os funcionários e os cinco restantes dedicaram-se à limpeza, arrumação, distribuição das refeiçoes e suprimento das necessidades básicas. A equipe, na época, estava composta por um psiquiatra, um psicólogo e duas assistentes sociais. Terças-feiras pela manhã 

equipe, moradores do lar e funcionários agrupavam-se na reunião geral, o principal modo de organização do lar. As primeiras questoes discutidas foram a liberaçao de entrada e saida, o livre trânsito no interior e fora da instituição, a aboliçao do uso compulsório do uniforme e o estabelecimento de normas mínimas de convívio. Para avaliaçao da experiência a equipe reunia-se semanalmente.

Como experiência inicial o primeiro lar abrigado serviu de base para a ampliação da proposta de novos lares, abarcando parcelas maiores da população internada.

Uma faceta importante desse trabalho é a manutenção da autonomia de cada unidade, já que seu perfil é configurado pelos próprios moradores, suas necessidades, desejos e limitações. Assim as soluçoes para os problemas do dia a dia são criadas a partir da realidade concreta de cada grupo, com a a juda das equipes, e não se originam de posiçoes hierárquicas ainda dominantes na instituição. Se há conflitos, que as partes trabalhem na sua superação.

Pouco depois da implantação do primeiro lar, duas outras unidades entraram nesse processo; são duas colônias agricolas conhecidas por Chácara e Moinho (3) respectivamente com 45 e 55 internados homens. Como colônias agrícolas a atividade predominante está ligada à terra. Ambas contam com equipes com pelo menos médico e terapeuta ocupacional, sendo que a Chácara ainda tem psicólogo e assistente social.

Paralelamente começou-se a implantaçao do primeiro lar de mulheres com 54 internadas da terceira clínica psiquiátrica feminina. Tanto neste como nos primeiros o processo de discussão e decisões grupais ocorrem em uma reunião semanal da qual participam moradores e equipes. As equipes reunem-se ainda semanalmente, separadas e em conjunto. Embora haja especificidades na atuação de cada membro, decorrentes de sua formação profissional, na equipe suas funçoes são indiferenciadas.

Com a implantação do programa, agora com quatro lares abrigados, foi criada uma coordenação centralizada e subordinada à diretoria clinica e à administração geral do Complexo, com o risco, ao meu ver, de reproduçáo do modelo institucional com todas as suas distorções.

BIBLIOGRAFIA

1. Coletivo de Técnicos de Saúde Mental: Proposta Alternativa de Custódia: o Lar Abrigado. VIII Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Recife, outubro de 1984.

2. Ferraz MPT: Politica de Saúde Mental: Revisão dos dois últimos anos. Arquivos da Coordenadoria de Saúde Mental do Estado de São Paulo XLV: 11-22, 1985.

3. Palladini PCN: O Lar Abrigado no contexto do Projeto Juqueri. I Encontro de Experiências Institucionais, Franco da Rocha, 2 de julho de 1984.

4. Palladini PCN: O trabalho com pacientes psíquiatricos cronificados. VIII Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Recife, outubro de 1984.

5. Palladini PCN: Lar Abrigado no Juqueri: um início. Arquivos da Coordenadoria de Saúde Mental do Estado de Sao Paulo XLIV: 21-29, 1984.

6. Palladini PCN: Tendências nas relações de poder em um Lar Abrigado. IX Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Curitiba, outubro de 1986, (trabalho inscrito).

7. Rogers CR: Terapia, Personalidad y Relaciones Interpersonales. Ediciones Nueva Vison. Buenos Aires, 1978.