Elementos de anamnese

ELEMENTOS DE ANAMNESE1

A anamnese assume um papel fundamental como instrumento de investigação da alteração mórbida. Na Clínica Geral a anamnese é mais limitada, abrangendo especialmente os aspectos mais ligados à ocorrência de diferentes enfermidades no paciente e na sua família. Trata-se, portanto, do estudo da evolução do indivíduo sob o prisma clínico (somático) e apenas, secundariamente, quanto às condições ambientais a que ele se acha sujeito. 

A ênfase no ambiente ocorre apenas no caso de doença contagiosa ou de origem infecciosa e, nesse caso, é antes o ambiente físico o que se deve estudar.

Contudo, o próprio exame clínico já deveria impor a investigação dos fatores psicológicos e sociais presentes na existência do paciente. A atuação do médico deve ser mais ampla e profunda do que uma mera investigação de alteração orgânica atual para a ministração dos medicamentos específicos. A função do médico não se limita à cura, mas também abrange a prevenção e, em certa medida, também é responsável pela reintegração do paciente à comunidade. 

A medicina moderna é essencialmente preventiva e tem revelado cada vez mais interesse pelos componentes genéticos, pelos fatores emocionais e pelas condições socioculturais presentes nos diferentes quadros mórbidos. Em decorrência, diversas Escolas Médicas vêm assinalando a relevância da interação médico-paciente.

Quanto à técnica utilizada para a realização da anamnese podemos levar em conta diversos aspectos.

ROTEIRO

Devemos utilizar um roteiro pré-estabelecido que abranja de modo suficiente as condições psíquicas e somáticas do paciente. Deste modo, o valor do roteiro é duplo: ao mesmo tempo que nos permite colher as informações pertinentes à compreensão do quadro clínico, e em particular, do indivíduo que o apresenta, ele impõe uma sistematização nos dados obtidos de modo a possibilitar o confronto com casos análogos facilitando assim a realização de pesquisas futuras.

FLEXIBILIDADE DO ROTEIRO

O contato com o paciente deve ser natural, e os informes deverão ser colhidos segundo a ordem de importância e de interesse atribuídos pelo paciente, e não pautado em um padrão rígido de questões. A preocupação central do entrevistado é que deverá nortear a sequência da entrevista. Embora baseados num roteiro, as questões deverão ser levantadas de acordo com a sucessão espontânea dos comentários que surgirem durante o processo de interação do médico com o examinando.

PRECISÃO DOS INFORMES

Devemos registrar os dados precisos e não as generalidades. Por exemplo, se um paciente refere convulsões deve-se procurar saber como elas ocorrem, qual sua frequência, em que condições se iniciaram etc., pois não devemos confundir epilepsia com convulsões sintomáticas. Caso mencione tentativa de suicídio (feita pelo próprio paciente ou por um parente) não basta anotar este informe. Devemos saber em que circunstâncias ocorreu tal fato; se foi um ato impulsivo, súbito, ou se ocorreu a partir de uma dificuldade de ordem social ou econômica, ou ainda de uma reação emocional de angústia ou depressão.

A menção de aborto necessita igualmente esclarecimento específico. Foi aborto espontâneo ou provocado? E, neste caso, como foi provocado? Frequentemente a paciente acredita ter provocado um aborto apenas por ter ingerido certas drogas ou medicações caseiras – seria, portanto, uma falha do médico admiti-lo como tal. E, com relação a aborto, é ainda indispensável o registro da época em que ocorreu. No caso de abortos sucessivos, verificar qual o intervalo ocorrido entre eles para que se possa distinguir se realmente se trata de gestações independentes ou de uma gravidez simultânea. Poderia, por exemplo, ser o caso de uma mulher com útero bicórneo. 

A precisão dos informes exige que o médico não apenas solicite discussões pormenorizadas sobre cada elemento fornecido pelo paciente como também que busque em outras fontes – amigos ou parentes do enfermo – dados mais completos e definidos.

REGISTRO DOS INFORMES

Devemos transcrever literalmente os dados mencionados e não procurar dar uma interpretação ou um “rótulo” a priori ao distúrbio.

A tendência natural do psiquiatra é a de interpretar o que o paciente menciona e de transcrever um resumo pessoal da anamnese. Assim, se o paciente diz que em certa época de sua vida “ouvia vozes”, o psiquiatra frequentemente anota “alucinações auditivas”, desconsiderando o modo como foi descrito o fenômeno e impossibilitando assim a distinção entre alucinação, automatismo mental ou ainda um distúrbio momentâneo resultante de extrema fadiga ou de processo infeccioso.

SISTEMATIZAÇÃO DOS DADOS

Após a anamnese, o examinador deverá redigir os resultados segundo um desenvolvimento lógico estruturado pelo roteiro. Deste modo poderá chegar ao diagnóstico e adotar a conduta terapêutica adequada. 

Uma vez descrita a técnica de anamnese passaremos a comentar suas modalidades principais: a anamnese objetiva e anamnese subjetiva.

ANAMNESE OBJETIVA

Corresponde ao levantamento de dados sobre o paciente obtido de modo direto – através das informações e observações fornecidas por seus parentes ou amigos mais íntimos – ou de modo indireto – através de referências feitas pelo próprio paciente sobre o que se passou com ele em diferentes épocas de sua vida. No caso da anamnese objetiva indireta tomar em conta os fatos objetivos tais como: mudança de emprego, reprovação escolar, internações em hospitais e não as interpretações dadas pelo paciente de suas diversas experiências. Evidentemente, a maior parte das informações objetivas, isto é, independentes das interpretações do paciente, são obtidas durante as entrevistas com a família e, neste caso, o papel do Serviço Social é de grande importância.

Durante a anamnese procuramos conhecer o comportamento do paciente nas várias fases de seu desenvolvimento, suas alterações de humor, sua capacidade de trabalho, seu nível de escolaridade, as enfermidades que apresentou, seu comportamento habitual; são os dados retrospectivos da sua história clínica. Além disso, podemos obter informações sobre a organização de sua família, a natureza de suas relações pessoais, seu nível socioeconômico, o temperamento de seus membros, a ocorrência de doenças entre eles e, especialmente, o modo de encarar a doença do paciente e os problemas dela decorrentes.

Em relação ao quadro clínico atual obteremos dados sobre as alterações específicas de comportamento reveladas pelo paciente. Frequentemente o paciente já apresentava anteriormente alguns sintomas tais como isolamento, agressividade ou nervosismo e que foram interpretados pelos familiares como “esquisitices”, ou cansaço, mas não como alterações mórbidas. Apenas com o aparecimento dos delírios ou de alucinações é que então os indivíduos que convivem com o paciente passaram a considerá-lo como doente mental.

ANAMNESE SUBJETIVA

É realizada com o próprio paciente, procurando apreciar o conteúdo de suas experiências e a maneira como ele as interpreta.

Vários aspectos são considerados na anamnese subjetiva.

ANTECEDENTES HEREDOLÓGICOS 

Embora incluídos na anamnese subjetiva deverão ser pesquisados também com os membros da família que poderão fornecer dados mais precisos sobre a questão. O levantamento desta informação é fundamental para o diagnóstico do quadro clínico, e para a apreciação do colorido particular que ele apresenta em cada caso.

Uma regra que nos parece essencial consiste em tomarmos o nome de cada um dos parentes, assim como os seus dados pessoais – idade, sexo, estado civil, profissão – de modo a fazer convergir a atenção do informante sobre esta pessoa em particular. Caso contrário, isto é, se apenas formularmos questões genéricas tais como: “Quais as doenças que se apresentaram em sua família?”; ou, “Há algum caso de epilepsia, doenças mentais ou alcoolismo na família?” O informante não poderá lembrar-se com precisão e tenderá a negar ou apenas a mencionar os casos mais extremos ou alarmantes. 

Iniciamos o estudo heredológico fazendo indagações sobre a família estrita do paciente. Em primeiro lugar perguntamos sobre os irmãos. Então pedimos o nome do irmão mais velho, assim como os seus dados pessoais, as alterações somáticas ou clínicas que tenha apresentado, as características de seu temperamento. Tais indagações deverão prosseguir em relação aos demais irmãos, em ordem de nascimento, assim como o esclarecimento da existência, ou não, de gêmeos – univitelinos ou bivitelinos. Solicitamos ainda que o paciente (ou informante) mencione os irmãos falecidos – nome, ordem do nascimento em relação aos demais, idade em que morreu e a causa (ou a que foi atribuída).

Outra informação importante é a relativa à ocorrência de um segundo casamento e a existência de meio-irmão. Nesse caso precisamos distinguir se se trata ou não de irmão consanguíneo, isto é, filho do mesmo pai e de mães diferentes. Tal distinção é importante em genética porque se, por exemplo, o paciente menciona que o seu meio-irmão teve uma doença mental haverá maior relação se os dois forem uterinos do que se forem consanguíneos. Sabemos que muitos traços são transmitidos geneticamente através da mãe; são os traços ligados aos cromossomos sexuais. Entre a série de irmãos, vivos e mortos, precisamos também saber se houve algum caso de aborto ou natimorto. Às vezes precisamos esclarecer que por “irmãos”, queremos dizer irmãos e irmãs.

Por outro lado, também é necessário conhecermos os termos utilizados por indivíduos de cada nível social. Por exemplo, a que ele se refere quando menciona que um dos irmãos teve “doença do semioto” ou “doença do macaco” (desidratação). Este aspecto envolve o problema de comunicação estabelecido entre paciente e médico. 

Após a tomada dos dados relativos aos irmãos – linha colateral direta – passaremos às perguntas sobre os pais do paciente – linha ascendente direta – e, então, as mesmas informações deverão ser obtidas, além de verificarmos se existe algum outro tipo de parentesco entre seus genitores. E, quando for o caso, usaremos o mesmo procedimento para os filhos do paciente – linha descendente direta. A seguir, passaremos aos avós do paciente – linha ascendente direta, mas afastada – se vivos, sua condição de saúde, traços de personalidade mais evidentes, partos gemelares, abortos, se mortos, a causa da morte etc. E, finalmente, deveremos levantar dados análogos sobre seus ascendentes colaterais – tios e tias de linhas paterna e materna; sobre colaterais indiretos – primos e primas de ambas as linhagens e os descendentes indiretos – sobrinhos e sobrinhas, filhos dos tios paternos e maternos.

Desta forma teremos colhido um conjunto de traços de personalidade, de características físicas, de condições clínicas, de desajustamentos emocionais (suicídio, homicídio, reações neuróticas), peculiares à família do paciente. 

Poderemos também notar que muitos destes traços aparecem de modo acentuado e nítido no paciente e com diferentes graus de atenuação na família. Às vezes ocorre uma mesma tendência nos dois ramos, paterno e materno, e assim conjugados resultam num determinado quadro clínico com colorido específico no paciente em questão. 

Pela descrição das alterações mentais de alguns dos parentes do paciente podemos ter uma noção mais ou menos precisa da natureza progressiva, periódica ou meramente reativa do quadro clínico mencionado.

Além disso, é importante verificar a época em que ocorreram as diferentes manifestações mórbidas mais características da família. Tal aspecto é indispensável para que possamos fazer a chamada “correção de idade” nos casos para fins estatísticos. Assim, poderemos saber quais dos parentes terão, antes da época em que se poderia manifestar, uma determinada doença, ou ainda quais serão muito jovens para a manifestação da condição mórbida estudada.

Como já dissemos, torna-se indispensável solicitar para entrevista pessoas, em geral parentes, capazes de esclarecer determinadas informações sobre os dados heredológicos fornecidos pelo paciente. Não nos parece adequada a simples exclusão dos casos “não esclarecidos suficientemente” ou, o que seria mais grave, a sua inclusão entre os parentes “sem alterações clínicas mais graves”. Portanto, no caso de informações insuficientes devemos recorrer ao Serviço Social para a localização e a convocação de informante adequado.

Considerando que o critério heredológico é aspecto fundamental nesta linha psiquiátrica que propomos, deveremos levantar exaustivamente os dados na anamnese.

ANTECEDENTES PESSOAIS

Os antecedentes pessoais do paciente deverão ser investigados através dos dados fornecidos durante a anamnese subjetiva para posteriormente serem confrontados com as informações colhidas na anamnese objetiva.

Em linhas gerais, o que pretendemos neste ponto da anamnese é o conhecimento da história do desenvolvimento do indivíduo e mais especificamente as características de sua personalidade pré-mórbida.

Assim, sempre que possível, ao estabelecer a posição do paciente entre os irmãos devemos indagar as condições de nascimento (normal, a termo, operatório, ocorrência de trauma, anoxia). Em seguida, o desenvolvimento neuropsicomotor (quando sustentou a cabeça, quando se virou sozinho, quando se sentou e andou, controle de esfíncteres) e quais as condições de aleitamento e alimentação. Se apresentou ou ainda apresenta alterações do sono (sonambulismo, sono agitado, ranger de dentes, sonilóquios, pavor noturno). Em relação à história clínica: moléstias que sofreu, se houve complicações, os acidentes, traumas cranianos, cirurgias. Quanto ao ajustamento psicossocial: como estabeleceu as primeiras relações interpessoais, o tipo de relacionamento que manteve no lar, sua vida escolar (conflitos com colegas ou professores, dificuldades no aprendizado, falta de interesse ou motivação), suas atividades profissionais (nível de ajustamento, rendimento e estabilidade em seus empregos), suas crenças religiosas (misticismo, superstição, natureza de suas concepções sobre o sobrenatural), crises econômicas na família, mudanças de cidade ou de casa. E, fundamentalmente, suas reações emocionais durante o curso de seu desenvolvimento: tipo de adaptação às circunstâncias diversas, comportamento sexual, hábitos, traços de personalidade, história conjugal, se for o caso, natureza dos conflitos interpessoais e modo de reagir a eles (ansiedade, medo, insegurança, fobias, reações depressivas, apatia, instabilidade de humor, impulsividade, timidez, submissão, sugestionabilidade, entusiasmo, autoconfiança, autonomia), projetos futuros. Finalmente, assinalar as mudanças que ocorreram em seu comportamento. Por exemplo: sempre foi uma criança difícil e submissa, mas, subitamente, começou a manifestar agressividade ou exibicionismo.

Devemos, então, distinguir a intensidade da interferência dos fatores emocionais, quer sejam intrínsecos ao temperamento do indivíduo, quer sejam resultantes predominantemente de contingências externas, ambientais. O estudo dos conflitos emocionais exige o conhecimento de sua origem e de sua evolução, e não o simples registro de sua presença.

HISTÓRIA DA MOLÉSTIA ATUAL

Verificar quando surgiram os primeiros sintomas. Se for o caso, os antecedentes imediatos e remotos do quadro atual. De que modo o paciente percebeu as alterações em seu comportamento e sentimentos. Como reagiu a estas alterações. Quais a explicações que procura dar aos sintomas apresentados: se reconhece seu estado mórbido, se dissimula as alterações mais graves, se busca explicações “sobrenaturais” (espíritos, superstições) ou poderes extrassensoriais (telepatia, premonição).

Pesquisar se anteriormente apresentou manifestações análogas e quais os tratamentos a que foi submetido, sua natureza e efeitos. Ressaltar os fatores ambienciais que eventualmente tenham representado um papel no desencadeamento da moléstia, ou na sua patoplastia. Finalmente, com o auxílio da enfermagem e da Terapia Ocupacional indagar sobre seu comportamento no ambiente atual.

CONFRONTO DOS DADOS DAS ANAMNESES OBJETIVA E SUBJETIVA

Devemos confrontar os dados obtidos nas duas modalidades da anamnese uma vez que a ocorrência de discordância acentuada entre elas já poderá ser um indício importante da situação patológica.

O estudo comparativo de dados nos permitirá o esclarecimento do diagnóstico, ou a solicitação dos exames subsidiários específicos ao caso. E, quando possível, fornecerá meios para a correção de conflitos no ambiente familiar, o que exige o conhecimento preciso de temperamentos, do modo de ser característico da família, de suas dificuldades econômicas. Não podemos evitar uma doença, mas até certo ponto podemos evitar desajustamentos na constelação familiar. Assim, do ponto de vista preventivo, deveremos solicitar para exame psíquico a presença dos parentes do paciente, que, pelas informações obtidas, já apresentaram distúrbios emocionais, embora de natureza menos acentuada que a do paciente.

CONCLUSÃO

Em suma, as finalidades da anamnese em geral, e da anamnese psiquiátrica em particular, são as seguintes:

  1. Definição precisa do diagnóstico – nível de interferência da carga genética e das condições ambientais.
  2. Solicitação de exames subsidiários neurológicos, bioquímicos e psicológicos.
  3. Prevenção de desajustamentos e de distúrbios latentes, especialmente aqueles que apresentarão consequências mais graves (tais como suicídio ou homicídio) tanto no paciente como em outros membros da sua família.
  4. Reintegração do paciente à comunidade – auxiliado pela técnica psicológica de orientação familiar ou de psicologia com o paciente e pelas providências de ordem econômica e social a serem tomadas pelo Serviço Social.

ESBOÇO

  1. Texto organizado por Roberto Fasano, em 2003, a partir de aula proferida por Aníbal Silveira, sem referência a data e lugar e de quem a compilou. O texto foi utilizado como roteiro na Residência Médica em Psiquiatria no Complexo Hospitalar de Juquery e na Faculdade de Medicina de Jundiaí, durante a década de setenta. Revisto em 19/02/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano. ↩︎