Introdução à Teoria Sociológica da Personalidade

Introdução à Teoria Sociológica da Personalidade1

Francisco Drumond Marcondes de Moura
Paulo Palladini
Roberto Fasano Neto

Versão 1 (24/06/24): versão preliminar que na medida que for ampliada será substituída
É surpreendente reconhecer que, no âmbito da prática psiquiátrica, não se utilize uma teoria da personalidade como ferramenta indispensável para nortear a análise clínica visando o diagnóstico do que se passa com uma determinada pessoa em sofrimento psíquico. Aníbal Silveira sempre chamou a atenção para a necessidade de utilização, pelos psiquiatras, de uma teoria da personalidade para nortear e qualificar a sua prática clínica2
Ao longo de sua vida profissional e acadêmica, que transcorreu no período de 1931 a 1979, aperfeiçoou uma teoria da personalidade que aplicou na sua prática assistencial, na sua atividade docente e de pesquisa. Essa teoria foi denominada por ele, em 1977, como Teoria Sociológica da Personalidade3.
Essa teoria pode ser aplicada para “todos os processos da mente humana, tanto genético-psicológicos quanto dinâmicos, sejam eles normais ou patológicos. De acordo com essa teoria, a estrutura da personalidade não varia de pessoa para pessoa, mas é peculiar à espécie: ao todo são 18 funções subjetivas únicas do cérebro, que podem ser correlacionadas aos dinamismos cerebrais, mesmo que não sejam redutíveis a ele”. Tais funções integram sistemas psíquicos que conectam três esferas psíquicas: a afetividade, a atividade e a inteligência. 

O que varia de indivíduo para indivíduo é o arranjo entre esses sistemas psíquicos, e ainda as funções de conexão que mediam sua tradução em ação ou comportamento manifesto, a partir da interação dialética com o ambiente físico e social. Todas essas funções subjetivas são inatas.
A noção de sistemas psíquicos como correlatos de sistemas cerebrais foi desenvolvida por George Audiffrent com base na teoria das funções cerebrais de Comte4. Nesta acha-se “evidenciada a inter-relação entre as funções subjetivas, segundo princípios bem definidos, estabelecidos pela hierarquia entre as funções psíquicas de modo a caracterizar a dinâmica do trabalho mental. Na esfera da Afetividade descreveu dez funções, na esfera da Atividade, três funções e na esfera Intelectual estabeleceu cinco funções. As funções afetivas são as mais básicas e as funções intelectuais são as mais dependentes”.
Para a formulação da Teoria da Personalidade, que veio à luz em janeiro de 1850, Comte se “orientou pelos princípios da sociologia, ciência por ele fundada, em seus elementos dinâmicos em 1822 (…) Essa visão social do Homem, portanto, considerado em abstrato, independente das características individuais, como também das características próprias a uma determinada época e a um determinado contexto social, é que possibilitou a formulação de uma teoria da personalidade mais precisa”. A correlação das funções psíquicas com a estrutura cerebral foi baseada por Comte, tendo como ponto de partida, os estudos pioneiros de Gall: para esse autor o cérebro não era a sede apenas das funções intelectuais, mas também das funções relacionadas com as habilidades e com os afetos. Assim, “compreendeu as “funções da alma” como expressão da atividade de órgãos cerebrais, o que se opunha aos postulados francamente impregnados pelos princípios teológicos. Isto o colocou em confronto com as concepções de sua época, o que desencadeou uma campanha contra a sua concepção. Assim o preconceito e a intolerância religiosa, condicionando a abordagem científica, fizeram com que suas concepções fossem proscritas e relegadas ao esquecimento”.
Depuradas as imprecisões desses passos iniciais, tornou-se possível o estabelecimento das bases biológicas, embora ainda rudimentares, para o desenvolvimento da teoria sociológica da personalidade humana sistematizada em 1850, como um conjunto de funções subjetivas que definem o homem em função da espécie.
Comte “considera ilusória a tentativa de definir a espécie humana a partir da análise do homem isolado, especialmente, porque nesse caso seriam utilizados métodos totalmente inadequados à complexidade dos fenômenos examinados”.
O “conjunto das dezoito funções subjetivas está estruturado em três esferas da personalidade, intimamente relacionadas entre si. As funções da afetividade constituem as mais básicas e as mais fundamentais, não apenas para que o trabalho mental se processe, mas também para a própria manutenção do indivíduo e da espécie. Essa atividade mais básica, que promove a preservação individual e da espécie, exige o concurso do instinto nutritivo, do instinto sexual e de uma função instintiva que rege o cuidado da prole como meio de conservação da espécie, que vai se traduzir também nas diferentes fases de evolução do indivíduo”.
Esses instintos já haviam sido descritos por Gall. Entretanto, além de dar maior precisão à concepção dessas funções, Comte formula hipóteses sobre as localizações dos órgãos5 que desempenham as referidas funções: o órgão que desempenha a função do instinto nutritivo estaria localizado no vermis cerebelar, estrutura filogeneticamente mais primitiva, enquanto a do instinto sexual teria como sede os hemisférios cerebelares, estrutura mais recente na escala animal. Gall havia localizado, indistintamente, em todo o cerebelo a função sexual não verificando que, na realidade, o cerebelo apresenta duas estruturas filogeneticamente distintas: o vermis cerebelar ou paleocerebelo e os hemisférios cerebelares ou neocerebelo. De fato, os estudos da filogênese demonstraram que o aparecimento do vermis cerebelar antecede à formação dos hemisférios cerebelares”.
A função do instinto nutritivo “preside a própria formação do sistema nervoso, atuando ao nível básico da fase de formação do óvulo e do espermatozoide, interferindo na fusão dos gametas e, posteriormente, na formação e na evolução do ovo até a fase embrionária, quando se verifica a formação do feto. Uma vez formado o sistema nervoso, a função do instinto nutritivo passa a ser controlada e regida pelo vermis cerebelar”.
Em um “nível mais diferenciado, distinguem-se as funções da construção e da destruição, relacionadas ao aperfeiçoamento do indivíduo. O termo instinto é utilizado apenas em relação a essas cincos funções mais básicas e que se traduzem na individualidade”.
Ainda no âmbito da individualidade, se “denomina ambição ao concurso de duas funções: a necessidade de domínio e a necessidade de aprovação. Essas duas funções já exigem a participação do meio exterior e do convívio interpessoal: constituem funções intermediárias entre os instintos e a sociabilidade mais diferenciada”.
Esse conjunto compreende sete funções da individualidade reservando para as mais básicas a terminologia instinto. Não se conhece precisamente a delimitação quanto aos órgãos cerebrais correspondentes. Estes estariam localizados na parte posterior do cérebro: lobo occipital e parieto-occipital.
A sociabilidade, na acepção da teoria sociológica da personalidade, compreende três funções, que correspondem a níveis cada vez mais complexos e mais dependentes, no âmbito das relações interpessoais: o apego, a veneração e a bondade, sendo que esta última expressa uma aquisição mais específica à espécie humana, além daquela correspondente à linguagem.
Assim, a bondade, necessariamente, ocuparia um órgão localizado no córtex cerebral mais recente na escala animal, mais precisamente na parte alta frontal (na frontal ascendente, área 6 de Brodmann), na proximidade e assistindo aos órgãos da elaboração. As outras duas funções da sociabilidade estariam localizadas na parte posterior do córtex cerebral.
Notamos assim a ocorrência de uma hierarquia entre as funções dentro de uma mesma esfera e que se estabelece segundo o grau de especificidade crescente e de importância decrescente. Assim, na esfera da afetividade as funções da individualidade são básicas para preservação individual e da espécie, básicas para o trabalho de destruição e de construção, quer ao nível do metabolismo vegetativo quer ao nível de atuação no plano exterior. Além disso, as funções ligadas à satisfação das necessidades individuais no relacionamento interpessoal e definidas como necessidade de domínio e de aprovação promovem o processo de socialização individual.
A atividade corresponde ao conjunto de três funções subjetivas: o estímulo que desencadeia a ação e o ato mental, o refreamento ou inibição do estímulo e a manutenção do estímulo que mantém a ação e o ato mental. Essas funções são dependentes do estímulo direto, que parte através das funções afetivas, caracterizadas pelo interesse ou pelo móvel afetivo, isto é, o agir por afeição deixando explícito que na realidade, sem o concurso do interesse, não seria possível o desencadeamento da ação, nem a inibição seletiva e nem a manutenção da atividade, quer no plano do comportamento explícito, quer na expressão do trabalho intelectual. Essa dupla atuação das funções da atividade é outra particularidade que distingue a teoria sociológica das demais, mais precisamente com as teorias de Freud e de von Monakow.
Todo o trabalho mental acha-se na dependência não apenas do interesse afetivo, mas das disposições conativas que mantém, estimulam ou inibem todo o processo de elaboração em seus diferentes níveis. A atividade explícita, por sua vez, sofre o controle necessário da elaboração, através da noção de interdependência, traduzida no “agir por afeição, pensar para agir”4 .
Essa dupla participação da atividade permite explicar uma série de alterações que repercutem no plano intelectual através de dinamismos anormais que tem origem nas funções da atividade.
As funções da atividade estariam necessariamente localizadas em posição intermediária entre as da afetividade e as da inteligência correspondendo, por conseguinte, a estruturas cerebrais também intermediárias, isto é, localizadas no lobo parietal e parieto-temporal.
A inteligência aparece na teoria sociológica da personalidade como um conjunto de cinco funções, necessariamente, dependentes da afetividade e da atividade, das quais recebe estímulo direto. Corresponde a dois grupos de funções: para a concepção e para a expressão. Num plano teríamos a captação dos estímulos do meio exterior através de dois órgãos: a observação concreta e a abstrata correspondendo, respectivamente, à síntese e à análise. Já em nível mais diferenciado, distingue-se o trabalho de elaboração propriamente dito, realizado através da indução e da dedução. Estas duas funções da elaboração são, respectivamente, necessárias à generalização e à sistematização do trabalho mental baseado nos materiais captados pelos órgãos da observação. A expressão corresponde ao sentido eferente da atuação intelectual no meio através da linguagem, em seus diferentes níveis: mímica, oral e gráfica. A linguagem corresponderia ao nível mais dependente do trabalho mental como um todo e aliado ao dinamismo da vontade, definindo as características mais marcantes do ser humano.
As funções intelectuais, pelas características de dependência e de especificidade maiores, teriam os órgãos corticais correspondentes no lobo frontal, na parte anterior do cérebro.
A rigor, apenas a atividade e a inteligência estabelecem contato natural com o meio exterior, permanecendo a afetividade apenas ligada indiretamente ao meio exterior através daquelas funções. A ligação direta da afetividade, no plano da individualidade, se processa através do instinto nutritivo com toda a rede visceral interna (meio interno objetivo).
Outro aspecto importante a analisar consiste no fato de que para estabelecer as ligações necessárias com o mundo exterior e com o mundo interno, existe um outro grupo de funções – as funções de ligação, que se relacionam diretamente com as funções básicas específicas que presidem a ligação. A inteligência, em sentido aferente, apreende os estímulos do meio exterior através dos órgãos dos sentidos, dos nervos sensoriais e das estruturas subcorticais (núcleos sensoriais).
A atividade atuaria em sentido eferente no mundo externo através dos núcleos motores e dos nervos motores que regem a motilidade. As estruturas nervosas e os núcleos subcorticais já haviam sido identificados, com exceção dos núcleos subcorticais e dos nervos denominados tróficos, através dos quais o instinto nutritivo estabeleceria a regência. Posteriormente foram evidenciados os sistemas simpático e parassimpático, com ligação direta com os núcleos talâmicos e, através destes, com o vermis cerebelar.
O cérebro apresenta-se assim como um conjunto de órgãos cerebrais bem mais limitado do que havia descrito Gall, como o correlato de funções simples. O que se localiza são sistemas complexos de inter-relação entre eles como correlatos dos sistemas psíquicos. Isso é a base da psicofisiologia e nela podemos considerar como um continuum que vai desde a rede visceral até as funções mais diferenciadas.
Isso é a base da interrelação somato-psíquica e psicossomática uma vez que essas diferentes estruturas se acham ligadas por intermédio da rede nervosa, visceral, motora e sensorial. Tal aspecto explica, por exemplo, a repercussão que as emoções exercem no plano vegetativo e vice-versa; explica também no plano normal as condições especiais que caracterizam a hipnose: a partir de uma ordem dada – que envolve, necessariamente, o plano subjetivo – ocorre uma repercussão no plano vegetativo.
O conceito de sistemas psíquicos implica assim na evidenciação de ligações preferenciais entre as funções, quer no plano normal quer no patológico. Implica também na interação funcional que envolve estruturas diversas do manto cortical, sendo muitas delas distantes entre si. Assim a integração funcional deve prevalecer sobre a espacial. Esse conhecimento foi sistematizado na Psicologia Fisiológica6.
No plano estrutural anatômico os estudos mostraram que o cérebro se constitui de áreas distintas quanto à forma, disposição das células e das fibras nervosas. Isso permitiu a Brodmann a construção da citoarquitetonia baseada na distribuição distinta das camadas celulares no manto cortical. Outros autores também construíram os mapas cerebrais pelo aspecto anatômico, como Campbell, von Economo e Koskinas.
Esses estudos mostraram dois aspectos importantes:
1.° – que as presenças de áreas corticais distintas no cérebro fariam supor e corroboravam os estudos fisiológicos efetuados pela estimulação elétrica, pela ablação de áreas cerebrais e pelos achados anátomo-clínicos;
2.° – a presença de áreas cerebrais idênticas quanto à distribuição celular não contíguas indicavam a integração das mesmas no plano funcional, dando a base anatômica para as concepções de sistemas cerebrais no plano funcional.

Bibliografia:

Aulas: (acessar www.anibalsilveira.org – Seção Teoria Sociológica da Personalidade/Apontamentos)

  1. Conceito de Personalidade segundo Monakow, Freud e Comte
  2. Teoria da Personalidade de Comte
  3. Comparação das Teorias da Personalidade
  4. Estrutura subjetiva e comportamento
  5. Integração do comportamento e interdependência subjetiva
  6. Apreciação conjunta dos setores da personalidade
  7. Afetividade e emoção
  8. Distinção entre sentimento, afeto e emoção
  9. Funções afetivas em níveis instintivos: Regência do metabolismo
  10. Atividade. Funções Conativas
  11. Funções da Conação. Regência da ação explícita
  12. Sistemas Psíquicos. Correlações neurofisiológicas.
  13. Sistemas cerebrais e Sistemas psíquicos.
  14. Sensação e Percepção.
  15. Evolução da percepção – Teoria das imagens.
  16. Elaboração e linguagem.
  17. Comunicação. Teoria dos sinais.
  18. Teoria da abstração.
  19. Psicologia do Desenvolvimento
  20. Psicologia Fisiológica
  21. Personalidade. Teoria de Freud
  22. Teoria psicodinâmica de Freud: introdução do elemento interpessoal
  23. Níveis de elaboração intelectual, participação dos fatores afetivo e conativo
  24. Acepção do ambiente e do mundo interno. Aspecto familiar.

Artigos: (acessar www.anibalsilveira.org – Seção Teoria Sociológica da Personalidade/Artigos)

  1. Syndromo do lobo frontal (1935)
  2. As funções do lobo frontal (1935)
  3. Lesões casuais e lesões sistemáticas do cérebro (1937)
  4. Das leis estáticas e dinâmicas da inteligência (1937)
  5. Acepção de Semiologia no Domínio das Doenças Mentais (1950)
  6. Sistemas cerebrais na patogênese das psicoses endógenas (1962)
  7. Psicologia fisiológica (1966)
  8. Distúrbios locais e de repercussão de áreas occipitais (1970)
  9. Parieto-temporal regulation of frontal lobe functions (1977)
  10. Psychoneurological dynamisms of counscioussness (1978)
  11. A sociological theory of personality: Comte’s, 1850 (1978)
  12. Dynamics of mental developments as attended by brain structures maturation (1978)
  13. Symbolization, as end result of cognitive-emotionl integration (1978)
  1. Texto baseado em aulas e artigos de Aníbal Silveira. Adaptação de Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano Neto. ↩︎
  2. “Sistemas cerebrais na patogênese das psicoses endógenas”, 1961. Ver a Seção Psiquiatria Sociológica/Artigos no site www.anibalsilveira.org. ↩︎
  3. “A sociological theory of personality: Comte’s, 1850”, 1977. Ver a Seção Teoria Sociológica da Personalidade/Artigos no site www.anibalsilveira.org. ↩︎
  4. “Système de Politique Positive”, Volume I, 1852 ↩︎
  5. Na acepção de Aníbal Silveira o cérebro é constituído por um conjunto de órgãos que desempenham funções específicas, neurológicas e psíquicas, integrados harmonicamente por sistemas cerebrais. ↩︎
  6. Psicologia Fisiológica, 1966. Ver a Seção Teoria Sociológica da Personalidade/Artigos no site www.anibalsilveira.org. ↩︎