CICLO HEREDOLÓGICO EM PSIQUIATRIA¹
Desde o início do século XIX, vários autores notaram a presença de muitas formas mentais numa família, dando, portanto, a ideia de degeneração a este fato, quer dizer, da aparição de psicoses concentradas em certas famílias.
O conceito de degeneração foi a primeira tentativa para explicar esta facilidade ou acessibilidade do indivíduo aos estímulos patológicos que levavam a uma psicose. Posteriormente, com estudos de Riedl, Kraepelin (na primeira metade do século passado) surgiu o que chamaram “heredoprognóstico empírico”, com base nesta correlação de quadros clínicos na família. O termo empírico, era porque se baseava só na observação dos pacientes sem uma correlação muito precisa do ponto de vista estatístico, mas permitindo uma visão quanto à descendência ou pares colaterais do paciente examinado.
Para esse prognóstico empírico, nós o desdobramos em dois aspectos: a chamada heredobiologia e a heredopatologia. A primeira, para anotar as correlações com os quadros não anormais ou com certas particularidades que não envolvem a personalidade geral; a heredopatologia com relação aos quadros que eram definidos na psiquiatria clássica.
Ao mesmo tempo se estabeleceu a divisão entre doenças endógenas para assinalar os quadros que têm uma origem espontânea sem a necessidade de um fator desencadeante e as outras, exógenas, que eram mais reações a fatores externos. No início, esta concepção de quadro endógeno ou exógeno, consistia numa oposição, tendo em vista a caracterização do diagnóstico. Uma psicose exógena teria um caráter benigno e se restituindo “ad integrum” e as psicoses endógenas, seriam aquelas de caráter progressivo, que teriam um decurso previsível, evoluindo para um estado demencial.
¹Texto organizado por Roberto Fasano, em 2003, a partir de aula proferida por Aníbal Silveira, sem referência de data, local e de quem a compilou. Revisto em 12/02/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano.
No entanto, o próprio Kraepelin logo estabeleceu que havia psicoses endógenas, que se caracterizavam por ser reversíveis, que apareciam sem uma causa desencadeante e que revertiam totalmente sem deixar marca, ao passo que outras, como a Demência Precoce, levavam a um estado demencial.
Dessa forma, podemos considerar, no âmbito das psicoses endógenas, dois grupos bem definidos: as psicoses reversíveis, como nós as chamamos, ou funcionais, como as chamam outros autores e as psicoses progressivas.
Por outro lado, inicialmente, as psicoses exógenas subentendiam quadros relacionados com alterações cerebrais, decorrentes de fatores tóxicos, traumáticos, infecciosos que, pelo dano cerebral, levariam a quadros mentais irreversíveis. Esse modo ver, entretanto, logo se mostrou inaceitável.
Há, realmente, um grupo de doenças que atingem o cérebro diretamente, dando como consequência lesões cerebrais focais, por exemplo, traumatismos, mas há outras que atingem apenas funcionalmente o cérebro: por exemplo, as psicoses que se apresentam durante o período infeccioso ou na fase de remissão de sintomas gerais somáticos e que, por conseguinte, têm apenas um aspecto dinâmico e não lesional.
Logo, este critério de exógeno e endógeno mostrou-se insuficiente para o prognóstico.
Posteriormente, foram reunidos na psiquiatria os quadros clínicos que são os quatro que até hoje prevalecem, quer dizer, os clássicos: a epilepsia, a psicose maníaco-depressiva, que até hoje permanece como entidade mórbida (nós já vimos que era um grupo de psicoses e não uma psicose única), a demência precoce (a esquizofrenia) e a oligofrenia.
Esta última não constitui uma psicose porque é um desvio no desenvolvimento, uma incapacidade de amadurecimento, de maneira que se trata de uma falha congênita, que não se pode dizer progressiva, porque apenas há discordância entre o indivíduo e o meio ambiente, mas, estabelecida desde a infância como um estado deficitário.
Então, nesses grupos, nós estudamos a correlação dos quadros com a heredopatologia familiar, a concordância maior em certos grupos psicóticos.
Assim, na epilepsia encontramos um grupo maior em comparação com a psicose maníaco depressiva e, nesta, menor do que na esquizofrenia. Na oligofrenia há uma atenuação com relação à heredopatologia familiar.
Nos outros casos, havia uma gama muito grande de manifestações mórbidas, de tal forma que dentro de pouco tempo foi possível isolar quadros típicos, característicos e quadros que seriam marginais, porque apresentam uns aspectos e não todos que constituem o quadro clínico típico.
Temos, pois, na revisão primeira dos pacientes, à anamnese heredológica do diagnóstico empírico e da heredobiologia, dois tipos claros de alteração: a psicopatia e a psicose.
Um com quadro típico característico, que chamaram depois psicopatia, por ser um distúrbio na organização da personalidade filiada, em geral, aos quadros clássicos, mas que não têm os elementos implicados, de diagnóstico, numa psicose, tais como, distúrbios de comportamento, manifestações de ordem pessoal, fenômenos de ordem patológica, que não correspondem ao característico com as psicoses, pois não havia uma perda do contato com a realidade, não havia um prejuízo na subordinação dos dados da elaboração mental ao mundo exterior.
Outros autores apresentaram depois outro grupo, mais determinadamente, e que eram anomalias de caráter, desvios que em alguns traços denunciavam uma organização mórbida da personalidade, mas não chegavam a constituir aquele conjunto patológico da psicopatia.
Então, passou-se a compreender nos grupos psicóticos três níveis de manifestação quanto à intensidade da carga genética, subentendida na heredopatologia: quadros característicos psicóticos, psicopatia correspondente e anormalidades de caráter ou traços anormais de caráter.
O essencial é diferenciar um quadro clínico, que tem todos os elementos de perda de contato com a realidade exterior e outros que em lado oposto, apenas subentendem uma modificação do comportamento, circunscrito a certas áreas das relações interpessoais. Esse foi o chamado “ciclo heredológico”.
Nós sabemos que em toda patologia, somática inclusive, existe a preponderância de elementos genéticos e, portanto, heredológicos, mas na psiquiatria esse ciclo heredológico tem um caráter muito mais preciso, porque se reporta a quatro grupos gerais de psicoses e de quadros mórbidos anormais e que prevê uma atenuação que é evidente no estudo clínico do paciente.
Veremos que esta manifestação de psicose, que toma coloridos muito particulares, em geral correspondem a atingimentos das esferas da personalidade. Verificamos então, que na epilepsia a esfera da atividade ou conação é atingida de preferência. Na psicose maníaco depressiva, caracterizada como grupo, o distúrbio na esfera da afetividade e na demência precoce, temos várias manifestações, relacionadas com todas as esferas da personalidade, que se traduzem por falta de contato com a realidade exterior.
Então, seria explicável, por essas relações das diversas esferas da personalidade, a manifestação clínica. Isto também explicaria o maior número de quadros clínicos na esquizofrenia do que em outros grupos clínicos.
Na psicose maníaco depressiva temos uma grande série de alterações de conjunto da personalidade, no sentido da expansão, da depressão e estados intermediários. Na epilepsia temos apenas três variedades, aquelas chamadas mal maior ou grande mal, segundo Jackson; pequeno mal, com perda de consciência sem que seja necessária a presença de convulsões e tipos intermediários, que são as manifestações de um tipo ou outro combinado.
Na esquizofrenia temos, segundo Kleist, vinte e seis variantes diversas, caracterizadas clinicamente, como formas esquizofrênicas.
Essa diversidade de formas de esquizofrenia está relacionada com a carga genética, com a tendência e forma de reagir do indivíduo, que já está plenamente desenvolvido, abrangendo as várias esferas da personalidade.
Assim, o que explicaria essa diversidade de formas de esquizofrenia, nos seus diversos grupos (hebefrenias, catatonias, formas paranóides e confusionais) é o atingimento de determinadas esferas da personalidade. Nunca a esfera é atingida isoladamente.
Assim, o comprometimento da esfera afetiva, que estimula as demais esferas, vai repercutir na relação ativa e intelectual com o mundo exterior. A esfera conativa é estimulada pela esfera afetiva, mas a que reage diretamente é a esfera intelectual, então observamos que uma alteração da afetividade e da conação, pode traduzir-se em sintomas intelectuais de preferência.