Exame da orientação psíquica

EXAME DA ORIENTAÇÃO PSÍQUICA1

A orientação psíquica implica dinamismos mais profundos e complexos do que aqueles relacionados à dinâmica sensorial, uma vez que engloba não apenas a apreensão dos estímulos do meio exterior, mas a noção de continuidade, no plano subjetivo e somático. É a orientação que o indivíduo tem em relação a si próprio e ao meio em que se encontra.

Normalmente se apresenta como unidade decorrente da perfeita integração dos diferentes níveis que, em conjunto, determinam a noção individual e da realidade exterior. Abrange necessariamente níveis que podem aparecer dissociados em condições patológicas, o que põe a relevo dinamismos distintos implicando no plano semiológico e clínico, condições igualmente distintas, algumas sérias e graves, outras, ao contrário, compatíveis com a normalidade.

Para o exato domínio da orientação psíquica, devemos nos reportar à dinâmica do trabalho mental e às características da psicologia humana evolutiva.

Tem-se que os estímulos do meio exterior e aqueles relacionados ao próprio organismo, no plano somático, são captados pelos diferentes órgãos dos sentidos; são transformados em impressões nervosas e através dos nervos sensoriais dirigem-se às estruturas subcorticais, mais precisamente ao núcleo sensorial correspondente, onde se dá a sensação. A sensação se processa mediante a seleção de estímulo ditado pelo interesse afetivo. Do núcleo sensorial partem estímulos simultâneos que vão até o córtex afetivo e à região frontal da observação concreta. Nesta área se processa a integração dos impulsos nervosos que chegam da região afetiva e da região subcortical, dando como resultado a noção. O processo da percepção é assim complexo como havíamos referidos no tema anterior, implicando na seleção dos estímulos, na ressonância afetiva não consciente (ao nível das estruturas occipitais) e nas reações emocionais que toda noção determina através da atuação direta da inteligência sobre a afetividade.

Cada sentido corresponde uma noção e cada um contribui para a “formação” da realidade. A integração total da realidade estabelece-se assim do conjunto de noções particularizadas. Há uma hierarquia dos sentidos na dependência da fase em que se encontra o indivíduo quanto ao aspecto evolutivo. Predominam no recém-nascido o tacto, a gustação e o olfato, limitando a realidade para a criança nesta fase apenas àqueles aspectos relacionados à alimentação. Os demais sentidos atuam secundariamente, mais como ressonância.

Portanto, a noção da criança acha-se limitada aos sentidos intimamente ligados à alimentação, o que não permite a distinção dos diferentes elementos do meio exterior nem dela própria como um ser independente. Assim ela mesma se integra nesse mundo caótico distinguindo apenas parte do corpo, principalmente a região Peri bucal. A noção nessa fase, ainda que com a participação dos outros sentidos, é predominantemente ligada à gustação, à musculação e ao tacto, razão pela qual a criança tende a levar tudo à boca ou apanhar partes do seu corpo como que examinando. 

Posteriormente, ela desenvolve a noção de espaço, a princípio no sentido bidimensional, depois tridimensional. De início, apanha ou tenta apanhar objetos à sua frente, depois engatinha, indicando já nessa fase a noção de terceira dimensão. O desenvolvimento sensorial está assim harmonizado com o desenvolvimento motor e esta noção da dimensão vai determinar a noção de sua própria limitação no contato com o meio exterior. Dá-se, por exemplo, que a área de ação do campo visual é distinta e mais ampla do que a área de apreensão. 

A musculação é o sentido fundamental para a noção da própria posição do espaço e do equilíbrio e somente o seu perfeito domínio dessa noção é que possibilita à criança a se voltar mais aos estímulos do meio exterior, com a participação preponderante dos sentidos de visão e de audição. Alterações a esse nível ou um domínio incompleto vai determinar problemas na elaboração e na linguagem exigindo tratamento que vise harmonizar o domínio motor, através de exercícios especiais.

Ao lado do desenvolvimento desses elementos ligados aos sentidos externos vamos encontrar o desenvolvimento paralelo da unidade subjetiva até o plano diferenciado. Os estudos de psicologia evolutiva demonstram que nesse aspecto a criança desenvolve primeiro a noção da unidade materna para depois desenvolver a dela própria, pela prevalência da imagem materna e de sua ligação para com os estímulos afetivos ligados à nutrição. Apenas na fase seguinte ela desenvolve a noção de si própria como elemento destacado e integrado ao meio exterior. 

As noções de lugar e de ambiente, que se apresentam distintamente aparecem depois, implicando aqui num elemento mais diferenciado e não apenas ligado à observação concreta. Exige-se o trabalho da abstração no sentido de que, dos elementos concretos da realidade abstraímos aqueles que possibilitarão a noção de local e de ambiente. Este reúne necessariamente a finalidade, já envolvendo o juízo mais diferenciado da realidade. 

No início, a criança tem noção limitada de lugar, não conseguindo associar dois ou mais lugares distintos porque esse trabalho de abstração se faz presente ligado apenas aos estímulos imediatos e atuais, já que não domina completamente a noção de tempo decorrido.

 Isto porque a noção de tempo é a última a ser desenvolvida e os estudos evolutivos dão provas que a criança, mesmo com o domínio da realidade abstrata, não consegue se situar plenamente no tempo. Fala no amanhã como elemento já decorrido. É interessante notar que a noção de tempo requer, apesar de se desenvolver posteriormente, uma fase de predomínio visual e auditivo, sendo que o concurso da musculação relacionada à musculatura intrínseca e extrínseca do globo ocular e dos músculos do ouvido interno possibilitam a noção sucessiva das imagens visuais e auditivas.

Essas características ligadas à evolução da criança no plano de noção da realidade e da unidade subjetiva são importantes para a avaliação dos diferentes graus de alterações. As noções mais precocemente desenvolvidas e mais intimamente ligadas ao mundo afetivo são as mais dificilmente alteradas; as noções desenvolvidas mais tardiamente como a de lugar e ambiente e de tempo são facilmente alteradas no contato interpessoal e muitas vezes não representam sequer um estado patológico. 

É importante ressaltar que o contato com a realidade e com os estímulos individuais são predominantemente afetivos, não apenas porque dependem do interesse, sem o qual o indivíduo não voltaria a sua atenção para o estímulo do meio exterior, como também de todo o processo subsequente que trabalha as imagens percebidas até a simbolização da realidade, é ditado por impulsos afetivos.

Este trabalho foi estudado por Ribot e sistematizado desde a fase inicial até a simbolização da realidade.

Quadro I – Dinâmica das operações mentais

A percepção subentende a seleção dos estímulos através de processos anteriores ao nível dos núcleos sensoriais. O processo de captação exige, além do interesse, a polarização do mesmo através das funções conativas e esse processo em conjunto denominamos atenção. O processo de fixação depende dos dinamismos afetivos. O estímulo fixado é posteriormente identificado e nessa fase se estabelece a necessária comparação para com outros estímulos que chegam a plano da consciência através da ressonância afetiva. Uma vez fixado e identificado ele pode ser evocado, no que se liga ainda o interesse afetivo, individual ou social e desse processo resulta necessariamente uma noção simbolizada. Apenas pela abstração ou pela dissolução patológica é que podemos apreender os diferentes níveis. 

À direita do quadro Silveira coloca aspectos mais complexos da atenção, que subentende a seleção e a captação do estímulo; a memória, que subentende a fixação, a identificação e a evocação do estímulo, e a consciência que subentende a projeção cronológica e a simbolização. Notem que são operações complexas que englobam todo o trabalho mental e por isso mesmo, impossíveis de serem limitadas às áreas corticais ou subcorticais correspondentes como querem alguns autores. Pelo que podemos apreender dos sistemas psíquicos e seus correlatos cerebrais, tais operações podem sofrer solução de continuidade em diferentes níveis resultando alteração de todo o conjunto; quanto mais complexo, e consequentemente mais dependentes, no caso a consciência, mais facilmente se verifica a alteração, dada a complexidade dos sistemas envolvidos.

Um estímulo atual é necessariamente integrado à nossa experiência e disso resulta a noção de continuidade quer em relação aos estímulos proprioceptivos quer aos exteroceptivos. As alterações ao nível da orientação implicam em diferentes planos de trabalho mental, evidenciando os aspectos parciais do processo acima descrito. 

Do ponto de vista prático, seguindo a sistemática de Wernicke, podemos considerar os aspectos relacionados à orientação do ponto de vista auto e alo psíquico. Estas eram para o autor; as duas maneiras de interpretar a realidade como um todo: o indivíduo vê os elementos do mundo externo de maneira integrada, ou seja, concomitantemente tem a noção de si próprio como unidade distinta. Wernicke considera que essa noção de si decorria de dinamismos recorrentes intelectuais, ocorrendo uma projeção cortical em determinadas áreas cerebrais. Kleist mostra a impropriedade de tais conceitos porquanto o contato se processaria fundamentalmente ligado aos dinamismos afetivos, que por si só são extremamente complexos e não ligados ao trabalho de uma área cerebral específica.

Postula que a esfera autopsíquica se compõe de três esferas interdependentes, a autopsíquica propriamente dita, a somatopsíquica e a timopsíquica; respectivamente a noção de identidade subjetiva, a noção do próprio corpo no plano somático e a noção do plano vegetativo. A esfera alopsíquica também foi desdobrada: alopsíquica propriamente dita, cenopsíquica e holopsíquica. Da primeira decorreria o contato com os estímulos do meio exterior, da segunda um plano mais diferenciado de contato social; a terceira, mais diferenciada ainda, interessava para Kleist o plano religioso. 

Os autores em geral consideram a autopsique e a alopsique não como esferas de personalidade, mas como tipos de orientação. Muitos ficam alheios a esses aspectos desenvolvidos por Wernicke e Kleist.

 A orientação autopsíquica diz respeito ao próprio indivíduo abrangendo na realidade dois níveis distintos: a noção de identidade subjetiva e a noção do próprio corpo através dos estímulos proprioceptivos. 

A noção de identidade subjetiva acha-se plenamente desenvolvida em fases precoces da vida evolutiva da criança, do que resulta a noção de continuidade subjetiva. Esta se apresenta em dois níveis: um ligado mais à identidade propriamente e outro mais profundo e diferenciado que se refere à noção da própria personalidade. Num caso teríamos em condições patológicas a perda da noção de identidade e no outro a despersonalização que engloba necessariamente a perda da identidade. Aqui o dinamismo é mais profundo no sentido de não serem os estímulos atuais incorporados à nossa experiência, perdendo-se a noção de continuidade. O indivíduo despersonalizado age de modo adequado no plano social e físico, apenas não ligando os estímulos atuais à sua experiência. Há também um aparente desligamento afetivo com a realidade, o que pode ser notado pelo ar perplexo. Isso pode passar despercebido principalmente para aqueles que desconhecem o indivíduo. É uma condição extremamente rara, pela profundidade dinâmica, por estar ligado a dinamismos emocionais profundos como na histeria ou na epilepsia ou a quadros psicóticos progressivos em fase final.

O mais comum é a perda da identidade subjetiva, estando preservada a ligação dos estímulos atuais à própria experiência. O caso é limitado à identidade apenas, e quando apresenta a desorientação a este nível o indivíduo não sabe quem é; esta condição pode ser acompanhada de angústia e também de um certo desligamento afetivo. Esta condição pode aparecer em certas formas esquizofrênicas, mas particularmente na Autopsicose progressiva, mas nesses casos é mais comum o falseamento da identidade e não a perda da orientação. O paciente identifica-se como outra pessoa, comporta-se como tal, exige indenizações de pessoas importantes, seus descendentes, mas um exame mais cuidadoso vai nos mostrar que apenas falseia a identidade, tendo plena noção da mesma.

A orientação autopsíquica compreende também a orientação no plano somático através dos estímulos proprioceptivos quando alterada, o indivíduo perde a noção de determinadas partes do corpo, resultando na chamada somatoagnose, que sempre se liga a aspectos parciais do soma. É também uma desorientação profunda porque implica na integração em nível precocemente definida da evolução ontogenética.

Um aspecto interessante envolvendo a orientação somática é o aparecimento do chamado membro fantasma que mesmo em ausência, o indivíduo continua a senti-lo. É o caso, por exemplo, de dores pertinentes ao nível da perna amputada e na realidade o dinamismo é o contrário do que ocorre na somatoagnose, ou seja, desorientação somática. A integridade das fibras proprioceptivas faz com que persista o estímulo ligado com a experiência. Neste plano há casos de dores incoercíveis que para cessar é necessário recorrer-se à topectomia na área cortical correspondente.

A somatoagnose aparece ligada a quadros neurológicos orgânicos e no caso da psiquiatria vamos encontrar uma outra forma de esquizofrenia, a Somatopsicose progressiva cujo sintoma nuclear são concepções delirantes interessando o aspecto somático. O indivíduo acha que parte de seu corpo foi trocada, que apresenta uma perna como se fosse de um pombo ou tem o corpo consumido como uma folha de papel. Aqui é mais o elemento de elaboração e estímulos que estão alterados e não propriamente de percepção.

Há uma condição relativamente comum ligada com a epilepsia, muitas vezes associada a crises de grande mal, como aura, outras vezes aparecem isolados, como a sensação de estranheza corporal. Nestas condições o indivíduo tem a sensação de que parte do esquema corporal se apresenta modificado, transformado, indo certificar-se o mesmo que constatado objetivamente a inexistência de qualquer alteração contínua tendo a noção clara de modificação. O estímulo é mais funcional, não havendo lesão cerebral.

A orientação dos estímulos do meio exterior é também complexa e envolve níveis distintos, profundos e superficiais. Um nível mais profundo corresponde à desorientação no espaço objetivo. No caso, acha-se atingido o órgão da observação concreta e consequentemente o plano de integração ao nível da terceira dimensão, que aparece quando a criança engatinha. É um processo profundo e raro e quando presente indica o comprometimento orgânico ao nível do lobo frontal e das estruturas mais profundas. O indivíduo não consegue elaborar no plano perceptivo os estímulos visuais que chegam do meio exterior, denotando claramente no comportamento esta dificuldade. Assim, em tumores do lobo frontal, no quadro de arteriosclerose, nos quadros pré-senis e nos senis vamos encontrar essa desorientação na fase adiantada do processo.

Em condições especiais pode ocorrer dificuldade da orientação no espaço quando se acha suprimido o contato com a realidade. É o caso de indivíduo que passa do sono para a vigília, e nesse estado, nas fases iniciais apresenta dificuldade de se orientar quanto ao local em que se encontra, fazendo esforço no sentido de recobrar a noção, através da integração dos estímulos que paulatinamente vão determinando tal orientação.

A desorientação quanto ao meio ambiente em que o indivíduo se encontra implica já em elementos abstratos e não só concretos, como o espaço objetivo. São elementos que integram o aprendizado. Assim, um indivíduo que é internado em estado de coma, se recobrar a consciência pode, por si só, ter a noção do ambiente em que se encontra, analisando o tipo de pessoas com quem se relaciona e podendo saber perfeitamente que se encontra numa enfermaria. A noção de lugar é um aspecto correlato, implicando um nível mais abstrato ainda e, consequentemente, mais passível de erro do que a orientação quanto ao ambiente. Assim, o indivíduo pode não ter noção de lugares em que se encontra, mas ter os pontos de referência para distinguir o meio. Pode estar numa enfermaria e não saber de que tipo de Hospital ou se realmente se encontra num Hospital. 

A sensação de estranheza quanto ao meio externo, ou o chamado “jamais vu” é uma condição em que o indivíduo não consegue integrar os estímulos atuais, no plano abstrato da finalidade, a sua experiência. Assim, muito embora se encontre num ambiente que lhe é familiar ele tem a sensação de estranheza, não conseguindo assimilar o ambiente e o lugar à sua experiência. Aparece como condição ligada à epilepsia, como equivalente epileptoide.

A desorientação mais superficial, e não necessariamente ligada à sua condição patológica, é a do tempo. Pelo aspecto ontogenético vimos que é a última noção a ser precisada e somente tem um certo valor a desorientação no tempo decorrido, porque envolve aspectos mais concretos de referência. Quando o indivíduo perde os pontos de referência que norteiam a atividade no meio exterior e no relacionamento social, é normal o indivíduo perder a noção, não sabendo mais o dia da semana ou o mês correspondente. É o que acontece frequentemente no período das férias, quando mudamos completamente os hábitos, principalmente aqueles que tomamos como ponto de referência. Qualquer ruptura com o meio exterior desencadeia a desorientação no tempo. Pelos mesmos dinamismos os quadros psicóticos caracterizados pelo desinteresse no contato interpessoal e para com os estímulos do meio exterior também levam a uma desorientação no tempo. A orientação pode estar falseada por dinamismos delirantes em pacientes psicóticos sem que na realidade ocorra uma desorientação.

Quanto aos aspectos semiológicos ligados ao exame psíquico de consulentes não psicóticos, os dados referentes à orientação são extraídos da própria anamnese. Deve-se evitar as perguntas diretas porque poderão parecer ao paciente descabidas e sem propósito. No caso de doentes psicóticos devemos precisar melhor essa orientação no exame psíquico porque a condição assim o exige.

  1. Texto organizado por Roberto Fasano, em 2003, a partir de aula proferida por Aníbal Silveira, no Curso de Psicopatologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí, no ano de 1977, em Jundiaí, sem referência de quem a compilou. Revisto em 15/02/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano. ↩︎