O SENTIDO ACTUAL DA OBRA DE K. KLEIST E AS REPERCUSÕES NOS PAÍSES IBERO-AMERICANOS

O SENTIDO ACTUAL DA OBRA DE K. KLEIST E AS REPERCUSÕES NOS PAÍSES IBERO-AMERICANOS1

(Professor H. Barahona Fernandes)

Em 31 de Janeiro de 1979, celebrou-se na sala de aula de Clínica Psiquiátrica, integrada no Nerven Centrum de Francfort sobre-o-Meno, o centenário do nascimento do Professor KARL KLEIST, falecido em 1959.

Falaram o Professor H. J. MÜLLER, decano da atual organização médica (dita “área profissional da Medicina Humana”) da Universidade de Johann Wolfgang Goethe e o Dr. H. HERGER, presidente da Academia de Estudos Médicos pós-graduados e fizeram comunicações, os professores R. JUNG, de Fraiburgo, sobre a importância de Kleist para a investigação neurológica; R. HASSLER, de Francfort, sobre a sua descoberta da biopsicologia dos núcleos centrais do cérebro; P. DUUS, que em nome dos antigos assistentes, teve a iniciativa da homenagem, sobre o modo de trabalho na Clínica de Kleist, dando num exemplo de um caso de afasia motora; K. LEONHARD, sobre o valor persistente da psiquiatria de Kleist e o A. destas linhas, sobre as doutrinas de Kleist, e a sua difusão em Portugal, Espanha e países íbero-americanos. 

Escrevendo nesta Revista, evoco os colegas espanhóis, também “irmãos em Kleist”, com quem tenho privado, em especial aqueles com quem em 1934-35, trabalhei na Clínica de Fracfort, ROJAS BALLESTEROS, já falecido e que foi brilhante catedrático em Granada e JUSTO GONZALO, investigador do Instituto Ramón y Cajal.

Em 1934-35 trabalhei, como bolsista do Instituto de Alta Cultura, na Clínica de Kleist, assisti ao seu ensino, participei da sua atividade clínica e de investigação e fiz estudos de histopatologia cerebral e de psicopatologia e patofisiologia dos sintomas psicomotores, ponto de partida de outras investigações. O convívio pessoal e científico com um investigador tão produtivo e original constituiu sem dúvida uma aprendizagem inesquecível e decisiva para a minha formação. A gratidão e devoção pessoal estabelecida não implicam contudo qualquer epigonismo nem impedem – como cabe ao homenagear um alto espírito – a visão crítica-problemática da sua obra. 

Num artigo publicado num volume de Autobiografias psiquiátricas (1) tinha já dado conta da minha experiência nessa e noutras clínicas alemãs, na sequência da evolução das posições científicas tomadas. Tive agora ocasião, perante os colegas daquele tempo que ali compareceram em grande número, de evocar as minhas vivências epocais e de comentar a obra mundialmente famosa de Kleist, considerando em especial a sua repercussão em Portugal, Espanha e nos países íbero-americanos. 

Kleist foi convidado em 1950 para sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, com o patrocínio de Egas Moniz, António Flores e Almeida Lima. Fez então (26-X-1950) uma conferência sobre a “Posição da psiquiatria no sistema das ciências” que então tivemos ocasião de apreciar e que voltaremos a referir no final deste artigo. 

Pela influência que teve na evolução da escola psiquiátrica de Lisboa, em formação na época, Kleist merece ser relembrado nesta oportunidade. 

Fiel ao princípio que tenho defendido de focar na Academia das Ciências de preferência, os aspectos gerais e multi-e interdisciplinares de cada uma das especialidades, aproveito a oportunidade da comemoração do centenário deste investigador para tentar apreender aquilo que ele melhor possa significar – como contribuição científica básica para o progresso das ciências.

Digamos desde já: Kleist foi um neurologista e psiquiatra original e criativo. Tomou no seu tempo posições de oposição às correntes doutrinais dominantes, teve a coragem do não conformismo ante o estabelecido – tanto na ciência como nas suas aplicações médicas de ordem social e sanitário-política.

A sua lição merece, pois, ser evocada e apreciada em todos estes aspectos.

Pintemos primeiro o Homem. Os que o conhecem somente como autor da famosa “carta das localizações cerebrais”, rigorosamente arrumadas nos campos cito e mieloarquitetônicos (de Brodmann e von Economo) ficarão por ventura com uma ideias de secura e rigidez. O mesmo poderá acontecer frente à sua classificação conjunta das doenças neurológicas e psiquiátricas em especial das psicoses endógenas, também rigorosamente subdivididas segundo o modelo das doenças heredodegenerativas. Na realidade não era um homem frio de afetos. Antes um autêntico humanista, amigo de Albert Schweitzer, cultor da historia e das artes, leitor precoce de Schiller. O seu assinalável rigor metodológico eram o produto de um imperativo categórico de certo modo de uma “ética racional” congruente com a sua posição científica racionalista e naturalista. Nada exprimiu melhor essa atitude do que a sua maneira de observar os doentes, de modo exaustivo, aplicando ele mesmo certas provas psicológicas experimentais (na época ainda pouco usadas na clínica) e exigindo a mesma metodologia exaustiva dos seus colaboradores no âmbito de uma organização severamente disciplinada. Eu o conheci porém na intimidade e soube apreciar a finura da sua sensibilidade, extensiva também, contra as aparência, à compreensão psicológica dos seus enfermos – dos homens em geral. 

Nas aulas era brilhante e vivo, por vezes com um certo ar empertigado de oficial germânico dos velhos tempos, acentuado pelo modo como punha o monóculo, ao sublinhar as suas asserções. A tradição que vinha de Kraepelin, da apresentação de casos clínicos demonstrativos, era nele exemplar, bem como a exemplificação, nas aulas, nas peças anatômicas. Embora integrado no sistema universitário alemão de seu tempo e guardando uma prudente fachada de aceitação, soube distanciar-se dos excessos, tanta vezes delirantes, da política (dita “sanitária”) nazi, em especial no que diz respeito às doenças hereditárias. Podemos testemunhar como “resistiu”, do modo possível, à aplicação da lei da esterilização eugênica obrigatória dos portadores das doenças hereditárias., diagnosticando generosamente como “psicoses marginais” (fasofrenias, psicoses cicloides, etc.) muitos casos (assim excluídos da operação) assim como outros com talentos excepcionais (musicais, literários) com a alegação do interesse da conservação genética de tais cepas hereditárias valiosas, a despeito da doença, e à sua transmissão nas gerações vindouras.

Já não estava na Alemanha quando da nefanda eutanásia sistemática e coacta dos doentes mentais asilados. Sei porém de fontes fidedignas que Kleist, como outros psiquiatra, aliás raros (ente eles EWALD, VILLINGER, H. H. MAYER) fez o possível por subtrair o máximo de enfermos a essa medida não só degradantemente anti-humana, como criminosa – a exterminação seletiva da vida pretensamente tida como “sem valor”.

Este real inconformismo tem parelhas como se disse, com a posição de EGAS MONIZ. Ambos tomaram atitudes iconoclastas de contradita, às “autoridades” do seu tempo, tanto científicas, como governativas. Não é necessário relembrar a persistente oposição à psicologia da época e a autocracia salazarista – como símbolo do seu espírito de independência, capaz de crítica livre e novas visões sociais e científicas. 

Em 1945 tivemos ocasião, com EGAS MONIZ, de propor o nome de KLEIST, juntamente com OSKAR VOGT (outro grande investigador do cérebro, bem conhecido desta Academia através de ANTONIO FLORES) para a atribuição do prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. Pusemos então em relvo a sua fama mundial e a importância genérica das suas pesquisas, feitas no homem doente, sobre a vida psíquica normal e patológica, as funções nervosas e as suas correspondências” com a arquitetonia cerebral. Na base do estudo das lesões focais do sistema nervoso (em especial feridos de guerra, mas também de afecções em foco do encéfalo) logrou assim novos conhecimentos não só anátomo-fisiológicos como bio-psicológicos, atingindo o nível das funções nervosas superiores. KLEIST é conhecido como “localizacionista” extremo, tendo estabelecido com relações entre as estruturas corticais, sub-corticais, e do eixo cerebral, não só com funções motoras, sensitivas e vegetativas, mas ainda com funções psicológicas, a todos os níveis, chegando à ousadia de correlacionar certas funções do Eu (a corporalidade, o próprio, o “Eu coletivo com o tronco cerebral, o córtex da região do cingulum e lobo fronto-orbitário. Referimo-nos para mais pormenores e comentários ao nosso estudo sobre a “Nova Carta das Localizações Cerebrais” comunicado à Sociedade Anatômica Portuguesa, em Coimbra, em 1937 (2). 

Notabilíssima é a antevisão bem concretizada dadas as correlações do que hoje se chama sistema límbico McLEAN 1952 pelo relevo dado ao cingulum, hipocampo, tálamo e hipotálamo nas suas funções órgano-vegetativas em relação com os processos afetivos. E ainda com o conjunto da sensibilidade interior e seu papel nas reações ansiosas (4).

Se sabe a importância que mais trade adquiriram estes estudos para o progresso da neurofisiologia e bio-psicologia norma e patológica. Relevemos apenas a sua aplicação à leucotomia, nas suas formas seletivas atuais, feitas por métodos estereotáxicos, e toda a moderna e irrecusável topisticas cerebral da investigação bioquímica das psicoses e da psicofarmacologia.

Referiremos a seguir – a propósito da repercussão da obra de KLEIST  noutros países, as suas mais importantes descobertas, tanto em neurologia como em psiquiatria.

Na sequência dos psiquiatras investigadores cerebrais Griessinger, Meynert e Wernicke, a reunião dessas duas especialidades médicas, era para KLEIST uma exigência científica irrecusável contra as tendências mais generalizadas de autonomia. Chegou mesmo a propor uma classificação sistemática comum das doenças neurológicas e psiquiátricas.

O mais importante no ângulo histórico científico e epistemológico e a forma nítida, enérgica e criativa, como marcou na Psiquiatria, a sua orientação anátomo-clínica e biopsicológica, baseada na análise sintomatológica concreta, tanto das psicoses como das doenças cerebrais, grosseiramente orgânicas. Independentemente da etiologia, alcançam-se assim os modos fundamentais especificamente humanos, de desintegração a todos os níveis das estruturas e do funcionamento das personalidades, segundo as suas “leis próprias” (Eigengezetzlichkeit) – um conceito decisivo do seu pensar que alguns depreciativamente chamavam “kleistisch” (kleistiano) mas que efetivamente se mostrou, embora de forma relativa, válido em muitos aspectos. 

Pelas suas opiniões, Kleist situou-se muitas vezes em oposição aos outros “grandes” da Psiquiatria da época (KRAEPELIN, BLEULER, JASPERS, K. SCHNEIDER etc.). Teve disputas acesas (por exemplo com BUMKE, SCHOLZ, etc.) e foi bastante criticado e até ignorado na Alemanha, assim como em outros países.

Em Portugal, logo em 1924, SOBRAL CID – outro nosso grande Mestre e antecessor na Cátedra – considerou então largamente as psicoses da motilidade, o papel do Striatum e outros, estudos de KLEIST na sua obra sobre os Syndromes psychomores, Encephalite e Schizophrenie.

SOBRAL CID, aceitou, de começo, nessa linha, as relações desta psicose com os estados tardios da doença de von Economo (encefalite epidêmica). Mais tarde evolucionou porém no sentido dos estudos clínicos, em especial de BLEULER  e KRETSCHMER que assim se difundiram em Portugal. Apesar da sua “antítese psicopatológica” 9tal definimos a sua posição) ficou ligado às bases biológicas da Psiquiatria, apoiando, desde logo, os tratamentos somáticos de psicoses então introduzíveis. Mais uma vez surgia assim a antinomia clássica entre “somáticos” e “psíquicos”, que ainda hoje, lamentavelmente subsiste (de modo quase “psiquiatricida”) no digladiar das correntes psicogenéticas e somatogenéticas e até na práxis, por exemplo na oposição exclusiva das bio- e psicoterapias. KLEIST libertou-se, em parte, desta contradição, diferenciando categoricamente os diferentes níveis de perturbação, desde os organo-neurológicos até aos funcionais e os psicológico-reativos, etc. (no caso referido, sintomas amiostáticos, psicocinéticos e catatônicos em sentido estricto e buscando, a sua diferente localização nos gânglios centrais e no eixo cerebral). 

Do esforço de superar essas e outras contradições dialéticas nasceu o meu “ponto de vista convergente”, comunicado em Francfort, em 1936, no I Jahres versammlung der Geselschaft Deutscher Neurologen und Psychiatern, sessão memorável na qual Kleist, a par de muitas apreciações positivas foi, violentamente atacado pelo relatório complementar à sua monumental obra Gehirnpathologie, publicada em 1934.

No citado estudo sobre sintomas acinéticos acentuamos a inter-ligação dos aspectos patofisiológicos e psicopatológicos e analisamos muitos sintomas originais de KLEIST, numa sutil diferenciação hoje muito injustamente desprezada, tais como a separação dos sintomas catatônicos em sentido estrito da oposição motora (Gegenhalten) diferenciada do negativismo, o acompanhamento motor (Mitmachen), a fixação preênsil (Festhalten) e o enganchar, automática dos dedos (Hackeln), como variedade do reflexo de preensão (Greifreflex) e discinesia psicomotora, etc.

Em 1938, investiguei, já em Lisboa, os Síndromes hipercinéticos na mesma orientação, fazendo larga referência e publicando casuística sobre as sutis análises de Kleist (paracinesias, etc.) nas psicoses da motilidade (Motilitatspsychosen) pertencentes ao grupo das psicoses cicloides (Cycloidepsychosen) de que também com Fünfgeld tive longa experiência em Francfort. Já então ampliávamos os dados de KLEIST com o estudo das vivências e outros dados psicopatológicos.

Aconteceu, então, o encontro coincidente com o “neo-jacksionismo” de H. EY, desenvolvido até ao seu “organo-dinamismo”. Desse modo se alargavam, como novas perspectivas evolutivas e estruturais, à ideias básicas de Wernicke-Kleist, acentuando a organização e diferenciação hierárquica das funções normais e, na patologia, sua desintegração, também escalonada e hierarquizada no quadro de organização da personalidade.

Direi aqui apenas que nessa linha tenho vindo a propor diferentes “modelos” psicopatológicos, da personalidade e das síndromes psicopatológicas até à formulação atual das “estruturas psicopatológicas” básicas e das formas gerais de perturbação da Personalidade. 

Para além dos aspectos anátomo-fisiológicos (de importância fundamental) e dos esforços de diferenciação “neurologizante” da nosologia de KLEIST (com tantas contribuições positivas, v.g. fasofrenias, a individualização das formas monopolares e bipolares das psicoses cicloides etc.), a contribuição maior de KLEIST foi a apreciação clínica analítica (sem ser “atomística”, note-se bem) das diferentes síndromes psicopatológicas. A sua distinção entre complexos sindromáticos homônimos e heterônomos (e depois também, as formas “intermediárias”) e a ligação dos primeiros com a vida psíquica normal, em contraste com a desintegração mórbida dos segundos – adquire hoje, sem dúvida, um novo sentido, dado que o problema subsiste desde E. BLEULER até o presente, debatendo-se repetidamente a distinção entre sintomas primários (ligados ao processo orgânico, a “somatose”) e secundários (psicogenéticos). Dei ao problema outra versão num ângulo “fenomenológico-estrutural-dinâmico”. Por exemplo, reuni as síndromes incoerentes, estuporosos, hipercinéticos, acinéticos, primeiro como um “tipo clínico” peculiar sem compromissos nosológicos (holodisfrenias) mais tarde sintetizado numa das “estruturas psicopatológicas básicas” consideradas etiologicamente neutras e que surgem sob o modo de invariantes transfenomênicas na evolução (aguda) de diversas doenças. Na paralisia geral descrevi estes estados, aparecidos como “ictus”, sem sintomas neurológicos, mas sob a forma de estados agudos e curáveis, acinéticos ou hipercinéticos. Algo de comparável acontece com as formas crônicas de outras estruturas básicas (de desintegração do Proprium (Eu), etc.). A distinção feita por Kleist nas esquizofrenias, das formas “combinadas” e “extensivas” mostra as suas múltiplas possibilidades evolutivas. Se realmente (nesse ou noutras formas) são efetivamente entidades nosológicas autônomas ou tipos biologicamente diversificados do suposto morbus esquizofrênicas é a esperança da atual investigação genética e bioquímica.

O nosso colaborador e sucessor atual na Cátedra da Faculdade, P. Polônio, fez estudos catamnésticos e de análise clínica estrutural das psicoses cicloides e também das esquizofrenias e Fragoso Mendes, estudou no mesmo sentido as psicoses sintomáticas. Confirmou entre outros, o conceito genético da “labilidade sintomática” de Kleist. NUNO GONÇALVES, atualmente vivendo na Alemanha, estudou as holodisfrenias. Sem entrar em detalhes, citemos ainda outros portugueses. A. BROCHADO, do Porto, que investigou fenômenos psicomotores (oposição, etc.) no choque hipoglicêmico provocado. Noutros estudos desses estados transitórios da saída do coma insulínico) encontrei perturbações da linguagem com algumas formas peculiares e menos conhecidas, descritas por KLEIST (disartria cortical), falta de empuxo (Antriebsmangel), da linguagem, mutismo verbal, etc.). 

Um nome português merece ser citado, MAGALHÃES LEMOS (falecido em 1931) com renomada obra neurológica e psiquiátrica; embora de escrita francesa, tem afinidades com KLEIST, nos seus estudos sobre a afasia, apraxia, agnosia e sobre síndromes estritos. Recentemente, A. DAMÁSIO trabalhou em perturbações simbólicas, revelando a apraxia construtiva como sintoma parietal e também frontal, tanto esquerdo, como direito.

Embora Kleist (além das localizações para fins neurocirúrgicos) não tivesse tirado consequências terapêuticas das suas investigações, historicamente não podia deixar de estar ligado à descoberta portuguesa da psicocirurgia. Esteve pessoalmente em Paris em 1950, no I Congresso Mundial de Psiquiatria para discutir os relatórios de FREEMAN, MAYER e do A. sobre  anátomo-fisiologia cerebral à luz da experiência da leucotomia. Valorizamos, então, da obra de Kleist, em especial o fato de as lesões operatórias pouparem as áreas ligadas à exteroceptividade e alterarem (efeitos sobre o tálamo, eixo cerebral, cingulum etc.) a interoceptividade (ligada por Kleist às funções do Eu); daí a extraversão, e a “sintonização regressiva” (BARAHONA FERNANDES) dos leucotomizados a aproveitar para a sua psicoterapia (na base da nova “transferência vital” e para a recuperação social. 

É curioso lembrar as “resistências” de Kleist a tais “intervenções” cruentas em especial a sua reação de protesto contra a “técnica orbitária”, tão imprecisa e chocante, praticada por FREEMANN. Perante os fatos consumados – os doentes assim transformados – sobrepujava, porém o sereno investigador com aquela altura de que nos deu mostra no final de sua Gehirnpathologie elaborada sobre as trágicas consequências dos feridos de guerra: “In Ehrfucht und Dankbarkeit derer em derem Wunder wie lernten” (em respeito e gratidão por aqueles em cujos ferimentos aprendemos). 

KLEIST foi também muito conhecido em Espanha. 

Além de GONZALO e ROJAS que trabalharam na mesma época com Kleist referimos VALLEJO NÁGERA, MIRA Y LÓPEZ e outros tratadistas da época que se referiram largamente aos seus trabalhos e posições teóricas

LOPEZ IBOR, em 1949, na sua obra Los problemas de las enfermidades mentales, expõe largamente as obras de KLEIST, frente à fenomenologia clínica, de modo crítico mas fazendo juz aos seus ricos achados originais e intenções de renovação científica. 

Além da nossa divulgação em português em 1937, das suas famosas cartas de organização e funções do encéfalo, LOPEZ IBOR publicou uma versão espanhola. A tradução dos conceitos kleistianos oferece certas dificuldades que importava resolver, como atualmente se procura com os glossários internacionais. 

Foi porém em Barcelona que a obra clínica de KLEIST teve maior repercussão o Entusiasmo de SARRÓ BURBANO pela nosologia das esquizofrenias motivou vários trabalhos sobre o tema (o SCHANNAN BRAVO, etc.). SOLÉ SAGARRA, além de estudos próprios publicou com LEONHARD, um Manual de Psiquiatria (1953) com larga audiência em Espanha e Portugal. CABALEIRO GOÁS, além de larga informação publicou (1970) uma estatística de 400 casos de esquizofrenia, classificados segundo a nosologia de KLEIST. ALONSO FERNÁNDEZ, no seus Fundamentos da Psiquiatria (3.ª ed., 1976) faz numerosas referências a KLEIST como “autor das grandes construções teóricas, a par de FREUD, JASPERS, PAVLOV, H. EY, ADOLPH MAYER, etc.”. 

Na América do Sul e Central as influências francesas, alemãs e norte-americanas foram-se sucedendo e temos conhecimento do interesse que merecem as aquisições de KLEIST da parte de notórios psiquiatras, como HONÓRIO DELGADO, de Lima (Peru), DIONÍSIO NIETO e outros no México; E. KRAPF, na Argentina, Chile, Cuba etc.

No Brasil houve também uma certa difusão da clínica kleistiana em parte através de discípulos nossos e pelo ensino diversificado dos professores PACHECO E SILVA, LEME LOPES, PAIM, NELSON PIRES e outros. O seu maior representante foi, sem dúvida, ANÍBAL SILVEIRA2, de São Paulo, porventura mais “kleistiano” que o próprio KLEIST, ao localizar estados psicopatológicos na base de pneumoencefalografias. Os erros e dificuldades destas e outras técnicas foram desde sempre motivo de críticas a dificultar ainda mais o princípio das localizações circunscritas no encéfalo. É curioso notar que ANÍBAL SILVEIRA é ainda hoje um convicto positivista, cultor de A. COMTE. Parece ter encontrado em KLEIT, muito para além das intenções deste, a base orgânica para o especular dessa corrente filosófica muito espaldada nos países latinos, desde o século XIX até ao 2. ° quarto do século XX.

No meu ensaio Filosofia e Psiquiatria (1966) dedico todo um capítulo à posição de KEIST situando-a como realista e naturalista, em evolução dialética com outras correstes (fenomenológicas, psicológicas, filosóficas etc.) aliás admiravelmente criticadas por KLEIST, logo em 1925. Devemos ver na sua original obra uma das mais importantes contribuições para os alicerces da investigação anátomo-fisiológica cerebral no sentido biopsicológica de uma biopsicológia a partir de uma base clínica concreta e realista.

Não é possível agora uma discussão aprofundada dos problemas epistemológicos envolvidos. 

KLEIST, na sua atitude de combate contra as correntes conceptuais opostas em especial na patologia cerebral, mostrou-se sempre avesso às tendências holistas e globalistas, o que se compreende pela feição vaga e imprecisa de muitas delas (“o cérebro funcionando como um todo”) face aos dados diferenciados que a rigorosa observação clínica e anátomo-cerbral parece impor e se tornou para KLEIST uma funda convicção.

A posição atual (R. JUNG, HECAEN, entre outros) é a de descriminar funções localizáveis com certa segurança (e não apenas funções senso-motoras focais) de outras funções mais amplas e gerais, relacionadas com sistema anátomo-fisiológicos que se estendem por vários níveis encefálicos, e não apenas com os chamados “centros” (definidos pela sua topografia e arquitetônica). 

Um bom exemplo é dado pela “localização” das funções da consciência (melhor dito da vigilidade). Se há atividade sintética e globalizante é sem dúvida a da consciência. No entanto, KLEIST na base de seus achados alinhou logo em 1924 com a opinião de VON ECONOMO (1917), REICHARD (1919) de que havia uma regulação global das funções da consciência (hoje correspondentes ao conceito de vigilidade), que havia um chamado “centro nervoso” no diencéfalo, também responsável pelas suas variações fisiológicas (sono etc.) e, quando alterado, determinante das suas perturbações (sonolência patológica, perdas de consciência, síncopes, estados confusionais etc.). A insistência no relevo dado às regiões subcorticais como suportes da vida mental já naquela época contra a preponderância atribuída ao córtex, tido como a zona nobre das atividades psicológicas. Mais uma atitude de contradita de Kleist que chegou (sem escândalo de certos psicólogos) a considerar o hipotálamo como a “central da excitabilidade afetiva e instintiva”.

A neurofisiologia e a psicologia usam hoje outros conceitos, mas encerrava-se aqui um núcleo de conhecimento importante e fecundo de consequências com interesse até para a clínica vista do ângulo da psicossomática.

Pela acentuação dada ao sistema nervoso central Kleist chegou a ser considerado como “materialista”. Certo é que evitava todo o reducionismo simplista do tipo do monismo materializante e mecanicista. De forma alguma tendeu para o chamado epifenomenismo, dando pelo contrário especial valor como já se disse às “leis próprias” de cada grupo de fenômenos desde os materiais e fisiológicos até aos psicológicos e espirituais. Embora evitasse especulações filosóficas, aproximou-se assim implicitamente de uma doutrina categorial hierarquizada, como mais tarde formulamos, a partir de NICOLAI HARTMANN, sublinhando sempre, no entanto, a maior “força” da base órgano-fisiológica com apoio das superestruturas. 

A sua obra e ação na sua prática quotidiana evidenciavam a clara rejeição de todos os psicologismos, tanto de inspiração psicoanalítica como de outras correntes. Não deixou, no entanto, de dar relevo às aquisições mais sólidas da “psicologia da forma (Gestaltpsychologie) e outras correntes embora de forma limitada, porquanto no que respeita às localizações perceptivas, estava convencido, como R. JUNG, e outros ainda atualmente depende da correspondência “ponto a ponto” (quase “atomística” neste particular), por exemplo entre localizações da retina e localizações do córtex do polo occipital (campo 17 de Brodmann). KLEIST dava assim preferência ao método analítico frente ao globalista, sem excluir a posição sintetizante, como faz, por exemplo (fig. 1,2,3 e 4) na repartição geral da carta cerebral em grandes “esferas” e “zonas” no lobo occipital, a esfera da visão; no temporal, da audição no centro parietal, do tacto, na área sub-central, do gosto, no lobo frontal, a esfera labirinto-mioestésica, no que respeita à face externa do córtex, e mais na parte profunda da face interna, no lobo orbitário, no cíngulum e retrosplenium, a esfera da interoceptividade (do Eu), e no lobo priforme e amônico a esfera olfativa. 

Feita esta concessão sintetizante, não se desliga da exigência mais analítica de pormenor (que a sua experiência pessoal – nas condições em que era feita lhe impunha) – ao subdividir cada uma destas esferas em 3 zonas, respectivamente, sensorial, motora e psíquica e 2 zonas mistas (senso-motora e senso-psíquica).

Denota-se assim uma tendência basicamente “neurologizante” que se estende à própria psiquiatria (ao sistematizar de modo excessivo as formas de doença segundo um “modelo neurológico” e ao descriminar funções parcelares, por exemplo nas afasias, apraxias e agnosias e outras perturbações das funções simbólicas etc.).

Ainda na senda de Wernicke e em contraposição às ideias prevalecentes, esforçou-se até por encontrar, por exemplo nas perturbações da linguagem e do pensamento dos esquizofrênicos, relações analógicas com as alterações focais do tipo das afasias. É conhecida a sua distinção entre perturbações “alógicas” e perturbações “paralógicas” do pensar, respectivamente referidas às afasias motoras e às afasias sensoriais e, correlativamente, ao lobo frontal e ao lobo temporal.

Uma consequência extrema desta linha é a aproximação da conduta psicótica das perturbações da apraxia (alterações dos movimentos e atos simbólicos) aliás, apenas esboçada por KLEIST e que não vale mais do que uma atitude de combate a certa imprecisão e subjectividade especulativa de muitas interpretações psicológicas, tanto fenomenológicas como psicodinâmicas.

Não pertence aqui o significado especializado do tema. O que importa é marcar o desenvolvimento de toda esta problemática. 

Quem consultar as páginas 1146-1159 da sua monumental Gehirnpathologie (infelizmente uma obra mais citada do que lida!) acerca de “Psicomotórica e a vontade” convencer-se-á do esforço de KLEIST de se aproximar de outras aquisições, tidas por mais sólidas da psicologia da sua época neste aspecto, das investigações de N. Ach sobre o processo de decisão (o querer) feitas já com o método de auto-observação fenomenológica. 

Nos nossos trabalhos sobre síndromes psicomotoras (1935-38) aprofundamos a questão, tentando definir e organizar a convergência integrativa da patologia cerebral e da psicopatologia nas linhas da teoria das camadas, como também mais tarde (1967) R. JUNG aplicou à neurofisiologia.

Essa obra magna de KLEIST impressa em 1934, vem aliás do tempo da 1.ª Grande Guerra mundial, e não se pode libertar ainda das doutrinas do “arco reflexo” medular transposto para o encéfalo. Estava então na forja a obra de Wizäcker – Gestaltkreis (o círculo configuracional (193) ligando o recursivamente sensações e movimentos num todo unitário, Kleist opunha-se teoricamente a Goldstein, o campeão do holismo da época. Na apresentação dos dados, não deixa, porém, de os ordenar e Inter correlacionar estímulo e tendências sensoriais e estímulos e tendências motoras, tanto nas suas formas elementares como nas mais complexificadas. No âmbito do normal transitava assim da “motilidade” (mecânica) para a psicomotórica mais dinâmicas das sensações elementares para as percepções cognitivas e para os efeitos básicos correspondentes. No âmbito da patologia, transitava também correlativamente das perturbações amiostáticas (extrapiramidais, de feição neurológica) para as perturbações psicomotoras (de feição psicopatológica (V. pgs. 1063-1149 da Gehirnpathologie)

Kleist fica na história como o mais ousado e criativo defensor das correntes naturalistas da Psiquiatria.

Temos hoje, no entanto dificuldade em aceitar, sem uma severa crítica restritiva, os seus esquemas localizatórios (além do córtex, nas regiões subcorticais, ao longo do eixo cortical, do que demos um exemplo acerca dos sintomas psicomotores). 

Vendo agora o problema num ângulo mais dinâmico, como cabe à neurofisiologia e à biopsicologia, podemos aceitar as ideias de Kleist como um esboço básico das correlações psicofísicas. A investigação ulterior veio confirmar, nas suas linhas gerais, muitas dessas correspondências psico-orgânicas em especial, no que concerne aos sintomas neurológicos (amiostáticos, ditos extrapiramidais como e emperramento motor, rigidez plástica, falta de movimentos associados ou de movimentos anormais do tipo coreático do tipo atetósico, balístico, tremores dos antagonistas etc.) e ainda, com menos segurança no que respeita a certos sintomas psicomotores (acinesia, hipercinesia, paracinesia, etc.). Outros, pelo contrário, como as condutas catatônicas não há ainda suficientes dados comprovativos. 

Não se pode negar que o esquema do “arco reflexo” dos processos psicomotores, propostos por KLEIST (pg. 1149 da Gehirnpathologie)3 levanta muitas objecções. E ainda um arco aberto clássico; se o fechamos, porém, o “circuito” retroativo (como a neurofisiologia cibernética veio a fazer) e se o inserirmos no conjunto muito mais completo de um modelo das estruturas da personalidades – ressalta, então, claramente a importante aquisição que constitui – na sua época (da psicologia atomística e intelectualista o estabelecimento de correlações dos processos básicos da atividade com certas estruturas cerebrais profundas (striatum, etc.) e a sua sobre modelação estrutural pelos processos psíquicos mais diferenciados (nos quais neste aspecto, como se sabe, o córtex frontal desempenha papel de relevo. 

Algo semelhante poderemos desenvolver acerca das funções do Eu e a sua correspondência (o que é diferente de “localização”) já referida com o diencéfalo, o cíngulum e o lobo orbital. Claro que para alguns pode ser chocante a diferenciação feita por Kleist em atividades (Leistungen, atos, condutas) do Eu repartida em diferentes níveis – desde o vegetativo, o afetivo, o instintivo, até ao próprio corpo, do próprio ser pessoal e do chamado “Eu coletivo” (compreendendo as convicções normativas e éticas). Toda esta espécie de “atomização” funcional de algo que, como o Proprium é essencialmente unitário e globalizado carece, sem dúvida, de severo exame crítico. 

Visto, porém, em especial, na sua aplicação à patologia – as possibilidades reais de desintegrações parciais diferenciadas – oferece-nos uma primeira base para a sua abordagem psicofisiológica: há na verdade seguros indícios da relevância das atividades neurofisiológicas daquelas regiões para a sustentação (“de fundo”) e a conservação do equilíbrio funcional do conjunto. Note-se, em especial, que lesões dessas áreas vêm romper esse equilíbrio totalizador, exprimindo-se em sintomas psicopatológicos diferenciados, tais (a) como perturbações neuro-vaso-vegetativas (de expressão psicossomática) (b) alterações do esquema corporal, (c) perturbações emocionais variadas, até (d) deterioração dos afetos valorativos pessoais e altruísticos e condutas instáveis e atos ditos anormais etc. O que poderia parecer “atomização” torna-se já aceitável mesmo fecundamente heurístico se for visto na perspectiva estrutural dinâmica (multidimensional) que propusemos. 

Não é possível alongarmo-nos sobre o tema nem dar outros exemplos de interesse, como o da construção da atividade psicomotora na sua fase de iniciativa e espontaneidade para o movimento, para a ação e para a linguagem, processos estes relacionados com o lobo frontal áreas de cujas lesões determinam perturbações também diferenciadas (perda de “empuxo” motor, Antrieb de iniciativa verbal e de condutas ativas, nas lesões nos campos 10, 11 e 46 de Brodmann, em especial do hemisfério esquerdo).

Nestas autênticas “descobertas” de Kleist devemos ainda ver uma abertura para novas vias da futura investigação biológica na psiquiatria. Recordemos os novos impulsos que esta corrente ganhou, primeiro em 1936, com a leucotomia e as terapêuticas “de choque” (insulínico e convulsivante, das psicoses e, desde 1952, com a introdução dos modernos psicofármacos e atualmente se desenvolve de modo fecundo com toda a sorte de investigações genéticas, de biológica molecular, neurofisiológica, etologia, psicologia experimental etc.

Na sua última lição, em 27-VII-1950 conta Kleist como no começo da sua carreira se chocou com o célebre discurso do fisiologista DU-BOIS REYMOND (1872) sobre os “limites do conhecimento da natureza”, concluindo por um ignorabimus decepcionante quanto às possibilidades da matéria e da energia “poderem pensar” …

Em vez de desanimar viu Kleist nessa decepção um grato estímulo para mais estudo e para de novo investigar. E assim que motiva a sua atividade nesse campo até o fim da vida – já depois de emérito, ao continuar a trabalhar numa Secção de estudo de patologia cerebral (Forschungsstele für Gehirnpathologie) que conservou anexa à Clínica depois dirigida pelo psiquiatra antropologista J. ZUTT, displicente ante a investigação cerebral…

KLEIST tinha consciência das dificuldades filosóficas (epistemológicas) da sua orientação como investigador. Mais tarde refere que, nos seus primeiros passos, se esclareceu muito com a obra do filósofo ERNST MACH e por último com as novas ideias da física nuclear.

No VI capítulo do nosso trabalho já citado, “Psiquiatria e Filosofia” (1966) criticamos esta posição basicamente naturalista, e em parte neo-positivista modificada. Não o repetimos aqui nem desenvolveremos o problema até à crítica que se infere do nosso ponto de vista convergente alargado depois num ângulo “fenomenológico-estrutural- dinâmico” (1974), estendendo-se aos níveis inorgânico, biológico, psicológico e sócio-histórico-cultural (espiritual). 

Se o “dinamismo” (tanto vital como psico e social) se tornou hoje para além de uma “moda”, uma diretriz irrecusável que devemos inserir mais solidamente na perspectiva estrutural (também depurado dos seus excessos) não pondo de banda as estruturas de base em que os dinamismos assentam e assim são movimentados e acionados. 

A obra de KLEIST apela perenemente para a organização arquitetônica fundamental do encéfalo sem a qual não é possível erguer o edifício funcional da Personalidade nem encarar a sua situação no ambiente sem o risco de uma diluição insignificativa das interações entre dados não individualizados nem caracterizados em si mesmo (como em muitos casos acontece com certas teorias modernas da comunicação e interacionismo).

O cérebro parece, por vezes ter sido esquecido pelos psicólogos e psiquiatras. Alguns falam de vida mental e suas bases – dito numa vontade que fez carreira como se o crânio estivesse apenas cheio de algodão em rama…

A Psiquiatria de Kleist reforça-nos contra tais correntes – a necessidade de não perder de vista o fundo somato-biológico de todo o acontecer psíquico e psicossocial.

Doutro modo, perder-se-ia uma sólida orientação no caminho para uma ciência objetiva, para uma psiquiatria médica, definida em termos reais e humanos – que não esqueça a sua funda natureza bio-antropológica. 

Face às recentes correntes da chamada “antipsiquiatria” que esquecem por completo a vida biológica do sistema nervoso e tudo reduzem ao social, quando não cultural-político – face à sua negação da existência de realidade de doença mental, a contribuição de Kleist – que em seu tempo também fora uma ruptura epistemológica – vale com fundamentos basal para o real concreto do viver e existir do Homem e das suas bem humanas perturbações e sofrimentos. 

Quando KLEIST falou neste lugar há 29 anos, a sua maturidade aconselhava-lhe já um ponto de vista mais dialectizante. Dizia então: (tradução das versões alemã e francesa) “…Como todas as outras ciências médicas, a Psiquiatria pertence às ciências da Natureza, porque as funções e perturbações mentais referem-se a estruturas anatômicas e a processos fisiológicos de caráter orgânico. Neste sentido são elas mesmo manifestações biológicas. Mas a Psiquiatria tem como Janus uma cabeça com duas faces. Vira a sua outra face para as ciências do espírito e aí reside a sua posição tão especial entre as ciências médicas e naturais. Esta posição exige também daqueles que a cultivam uma educação psicológica e permite-lhes perspectivas na filosofia, na religião e nos problemas sociais. Desta maneira a Psiquiatria torna-se também uma parte das ciências do espírito.

O médico e o psiquiatra que pensam em termos de causalidade estão colocados em face de fenômenos psíquicos com a sua ordem e intencionalidade dos valores, como se tratasse de um mundo estranho que, entretanto, com boas razões defende a sua autonomia. Afirmou-se muitas vezes a impossibilidade de reunir os dois reinos do espírito e da natureza e considerou-se a questão das suas relações como um problema insolúvel. Creio, no entanto, que o mundo não existe para ficar eternamente dividido em duas partes. Estou convencido que o psiquiatra tem necessidade para o seu ofício, de fazer justiça a estas duas partes e que poderia contribuir mais do que outros investigadores da Medicina e da Natureza para a solução destes problemas. Entretanto o mundo no seu conjunto, não é apenas matéria nem apenas espírito e as suas relações não podem ser compreendidas nem exclusivamente em termos de causalidade nem em termos de finalidades. A unificação desta contradição não será possível senão num outro nível de ordem superior. 

Com este fim a ciência da natureza já mostrou um caminho desde que a física, no seu próprio domínio tinha esbarrado com problemas que pareciam insolúveis. Se a física atômica descreve o mesmo processo quer como um movimento de corpúsculos quer como um movimento ondulatório e não vê aí nenhuma contradição, mas duas maneiras de ver que se completam, poderíamos encará-lo como um modelo para os problemas psicofísicos. Poderemos assim esperar que as funções psíquicas e corporais, as relações causais e finais não devem mais ser consideradas como inconciliáveis, mas como pontos de vista diferentes e legítimos da mesma unidade superior (derslben hohern Einheit). 

Ficará para outra oportunidade a discussão crítica destes e outros problemas epistemológicos – se esta unidade que KLEIST propõe pode corresponder ao Uno platoniano de ANTONIO SÉRGIO ou é apenas uma referência à forma moderna (3. ° Mundo do conhecimento objetivo) que K. POPPER deu ao espírito objetivo de HEGEL e que ECCLES tentou relacionar com a experiência neurofisiológica. E toda uma vastíssima problemática envolvendo a filosofia das ciências que agora não podemos tratar.

Kleist hoje? – Caberia então por fim perguntar. – O seu interesse está efetivamente na relevância dada às investigações rigorosas não só na neurologia como na psicologia e na psiquiatria, abrangendo também o mundo físico e biológico em evolução dialética com os estudos psicossociais e socioculturais. Está na confirmação do princípio, que se pretende estar ultrapassado, da diferenciação neurofisiológica e biopsicológica das diferentes estruturas cerebrais – atualizada na topística da moderna-bioquímica e psicofarmacologia e com grande interesse para as suas aplicações humanas, inclusive terapêuticas. 

Num ângulo genérico queríamos ainda sublinhar o facto das rupturas epistemológicas envolvendo nestes processos científicos terem tido como condição o inconformismo dos investigadores face à ciência feita e face ao seu contexto social, permitindo assim a emergência – livre de coações e de preconceitos – da criatividade e da descoberta de novos dados, de novas teorias, de um novo conhecer do mundo e da melhor explicação e compreensão dos Homens. 

  1. Publicado em ACTAS LUSO-ESPAÑOLAS DE NEUROLOGIA, PSIQUIATRIA Y CIENCIAS AFINES. Volumen VII. Noviembre-diciembre 1979. Número 4. ↩︎
  2.  Segundo notícias recebidas diretamente de A. SILVEIRA, celebrou-se também em São Paulo (Faculdade de Jundiaí) no mesmo dia do Centenário uma comemoração sobre a obra de KLEIST (Comunicação de A. SILVEIRA, MATOS PIMENTA, LÚCIA COELHO, DORA MORALES, JOACYR BARROS, LUIS FIORI). Desde há muito que este grupo de São Paulo publica trabalhos sobre os problemas kleistianos (número especial dos Archivos de Neuro-psiquiatria, núm. 2, junho de 1959. ↩︎
  3. O esquema parte dos processos corticais: (a) os motivos e convicções normativas, as vivências primárias da vontade e impressão de força e de cansaço; (b) ligando-se num plano mais elevado (pela interferência dos motivos e outras impressões) e num plano menos elevado (de interferência dos estímulos e tendências); (c) aos processos do eixo cerebral (a iniciativa ou empuxo e a persistência, até ao ato em execução mediante os sistemas neurológicos piramidais, extrapiramidais, até à medula e inervação (versus sensibilidade) muscular. ↩︎