Psicoses afetivas. PMD em particular

PSICOSES “AFETIVAS” E PSICOSE MANÍACO-DEPRESSIVA EM PARTICULAR1

Colocamos afetivas entre aspas porque não se trata de psicoses com colorido afetivo, mas sim psicoses que se originam do distúrbio da afetividade – esfera subjetiva da personalidade. É necessária essa distinção porque Karl Leonhard descreve essas psicoses como “parafrenia afetiva”. Como sabem, a parafrenia foi descrita por Kraepelin como sendo um distúrbio caracterizado por falta de relacionamento afetivo e que faz parte do grupo das esquizofrenias. Leonhard quis caracterizar a parafrenia afetiva como um quadro em que há uma alteração esquizofrênica, mas o indivíduo conserva a afetividade. Portanto, o sentido de afetivo para Leonhard não é o mesmo para nós, nem para Kleist. 

Na patologia relacionada com o envolvimento da afetividade devemos considerar três aspectos. Um primeiro aspecto corresponde à psicose cuja patogênese se situa na esfera afetiva da personalidade. Outro aspecto corresponde a um distúrbio psicopatológico na afetividade, que quando se refere a reações afetivas abrange dois polos: o da depressão e o da exaltação ou excitação. Um terceiro aspecto implica a participação da esfera afetiva acarretando sintomas que derivam da afetividade, em um quadro clínico comum e qualquer.

Patogenicamente consideramos, portanto, esses três aspectos de alteração da afetividade. Quando o distúrbio for global ele abrange todas as esferas psíquicas, no sentido de expansão ou de depressão. Assim, a exaltação psíquica, a exaltação no sentido de poderio, a euforia, facilidade de comunicação e de elaboração, caracterizam um tipo de alteração global, em que todos os sistemas psíquicos participam porque ocorre o estímulo global da afetividade. A afetividade é a esfera fundamental que dá o estímulo para a ação, para o trabalho intelectual, contato com o meio exterior, o interesse. Dessa forma, todas as esferas psíquicas estão fundamentalmente ligadas com a afetividade. O interesse, no sentido de captação dos estímulos, a elaboração dos estímulos em última análise depende do estímulo afetivo. Assim, se há desinteresse pelo mundo exterior, o indivíduo não capta os estímulos, não age: há uma apatia, uma abulia, ou ainda, um completo desligamento para com o mundo exterior, chamado de “autismo” na terminologia de Bleuler. Mas pode não haver apenas o desligamento para com o mundo exterior ou apenas o estímulo excessivo para o contato com o meio externo, mas sim a oscilação entre estímulo e inibição.

Isto explica por que em muitos quadros clínicos ocorre essa duplicidade de ação – de estímulo e de inibição. E é o que se passa em todos os níveis do organismo humano, desde o aspecto vegetativo até a parte intelectual do contacto com o meio exterior. 

Em toda a atividade, segundo uma das leis fundamentais da Biologia (Bichat, 1801), há a alternância entre a atividade e o repouso. Portanto, a oscilação entre bloqueio e estímulo, corresponde a uma determinação que é característica da espécie humana e de todos os seres vivos. Essas oscilações se manifestam por períodos: há fases de excitação e de inibição. Daí vem a noção de dois polos: de expansão e de bloqueio ou de depressão. 

Além disso, há a participação de sistemas da esfera afetiva dando quadros clínicos diversos. Assim, por exemplo, a agitação, a agressividade, a impulsividade, em um quadro clínico comum, ou então, o desânimo, o desinteresse, o retraimento em outros quadros clínicos. Dessa forma, o colorido dos quadros clínicos decorre da participação da esfera afetiva. Digamos, nos dois polos: agressividade como o máximo de estímulo e bloqueio ou apatia no polo oposto. 

Quando o distúrbio é global, caracterizando o envolvimento da esfera da afetividade em si própria – não apenas a participação afetiva como elemento biológico, nem como participação apenas no quadro clínico -, temos aquelas formas descritas por Esquirol em 1835, quando procurou retificar os conceitos da época, especialmente a partir de Pinel. A concepção de Melancolia descrita por Pinel, é um remanescente da concepção da renascença em relação a essas doenças. Assim, “melancolia” significava “bílis negra” o que não correspondia à realidade pois trata-se de uma desordem subjetiva, isto é, moral. Ele criou o termo “Lipemania” para exprimir esse quadro clínico que se caracterizava como falta de interesse, falta de entusiasmo, dasânimo, incapacidade de contatuar com o mundo exterior, com retração afetiva e, às vezes, com a ocorrência de suicídio. Ao passo que em outros quadros em que havia, ao contrário, estímulo excessivo, maior atividade e contato desordenado com o mundo exterior, chamou simplesmente “Mania”. E, para distinguir esses dois aspectos em que não há um quadro propriamente delirante, de um outro em que há uma série de concepções delirantes, ele criou o termo Monomania. Portanto, os quadros que conhecemos hoje como psicoses afetivas, correspondem de certa maneira, não inteiramente, à Lipemania e à Mania de Esquirol. Publicou esse trabalho em 1835, e depois, em seu trabalho de 1838 ele fez um estudo completo, mostrando que a Lipemania ocorre quase sempre com concepções delirantes, com ideias de negação, de aniquilamento de personalidade, com sensação de mal-estar e com desinteresse progressivo que pode levar até à falta de alimentação, à sitiofobia, e à morte. Além disso, há a possibilidade de suicídio em consequência dessa depressão, com perda completa de interesse pela vida. A “Mania”, pelo contrário, manifesta sensação de bem-estar, euforia, exaltação, e também com concepções delirantes e distúrbios alucinatórios.

Kleist distinguiu as psicoses afetivas, que posteriormente denominou de psicoses fásicas, a partir da utilização do critério patogênico. As psicoses fásicas constituem um grupo importante e muito mais frequente que o da Mania ou da Melancolia, que foi conhecido a partir do trabalho de Kleist em 1908, quando estudou as chamadas “Psicoses da Motilidade”. Daí para cá tem havido uma série de trabalhos no sentido de delimitar o que vem a ser “Mania”, “Melancolia” e “Psicose Maníaco-Depressiva”, retirando do grupo inicial, estabelecido como quadro clínico por Kraepelin, em 1896. Esse autor classificou todas as psicoses e reuniu em grandes grupos aqueles conhecimentos parciais de psicoses isoladas dos autores que o precederam. 

Kleist distinguiu no grupo das Psicoses Maníaco-depressivas, descritas por Kraepelin, as psicoses que também são afetivas e que também são fásicas, que não são Psicose Maniaco-depressiva. A concepção de Kraepelin decorre dos conhecimentos que vem mais de Jean Pierre Falret em 1845, que descreveu esse quadro psicótico que aparece como mania ou como depressão – como dois polos distintos – e que, às vezes, aparecem em sucessão no mesmo paciente: a fase de excitação e a fase de depressão.

Somente mais tarde, em 1896, depois de ter feito duas ou três revisões do Tratado de Psiquiatria, é que Kraepelin fundiu esses dois grupos na Psicose Maniaco-depressiva. Tinha descrito antes as formas de mania e as formas de depressão, mas apenas nesta ocasião verificou que correspondem a uma forma definida, que há oscilações de mania e depressão, que podem surgir em seguida de uma fase a outra ou em que são interrompidas, com fases de normalidade completa. De qualquer maneira, coube a Kraepelin mostrar que esse grupo de psicoses em que há exaltação e depressão, que ele chamou Psicose Maniaco depressiva, não deixa sequela alguma. Com isto distingue a Psicose Maniaco-depressiva das psicoses progressivas (na acepção de Kleist), isto é, aquelas formas de psicose que Kraepelin chamou de Demência Precoce, em que pode haver excitação, pode haver depressão, pode alternar os dois aspectos, mas a evolução leva o paciente ao estado demencial. 

Quando se fala, portanto, em “Mania Crônica” ou em “Demência Maníaca” ou em “Demência Depressiva”, já não se trata de Psicose Maniaco-depressiva, pois nesse caso trata-se de um processo cerebral orgânico qualquer, genético, endógeno ou não, que se apresenta com oscilações no sentido da depressão ou da excitação, resultante de uma tendência genética, mas é apenas um epifenômeno do quadro clínico. O próprio Kraepelin mostrou que há uma particularidade na Psicose Maníaco-depressiva: os acessos são intercalados por anos, mas com o tempo esses intervalos vão se amiudando. Os autores, posteriormente, verificaram que há uma maior frequência entre os acessos quando o processo é deixado a si próprio. Até pouco tempo havia apenas recursos de tratamento quando das fases, mas não havia recursos para impedir o amiudamento entre as fases. Hoje já existe – o litium – que deve ser usado com critério. Já bem demonstrado os seus resultados, com o trabalho de Mogens Schou, na Dinamarca. 

Quando Kleist estudou o grupo da Psicose Maníaco-depressiva demonstrou, primeiramente, que é muito frequente na clínica aparecerem as psicoses com fases isoladas de mania ou melancolia. Mais frequente ainda era o grupo das psicoses fásicas em que aparecem os dois polos de depressão e de expansão, mas que não são Psicose Maníaco- depressiva. São formas fásicas, benignas, cedem rapidamente em três ou quatro meses, não deixam sequela e remitem integralmente.

Quando Kleist desmembrou esse grupo, demonstrou que há uma série de quadros clínicos que se traduzem como depressão ou como expansão e que apresentam, além disso, um colorido particular, o delírio.

 Na melancolia podemos ter a concepção delirante – quase sempre de negação, de sentimento de inferioridade, de incapacidade de ação, de ser prejudicial ao ambiente, a sociedade, às vezes de negação de órgãos e, às vezes acompanhada de alucinação ou de automatismo mental. 

Na Mania não há alucinação. Portanto, uma psicose que tenha um colorido geral semelhante à mania, com alucinação, não é Mania. Se usarmos o critério patogenético, verificaremos este aspecto. A ocorrência de concepção delirante, de automatismo mental e de alucinação, exclui o diagnóstico de Mania, apesar dos autores, em geral, descreverem a excitação mental como mania. Ainda permanece uma tendência em falar-se de “síndrome maníaca”, que é uma maneira do psiquiatra afirmar que não se trata propriamente de uma Mania, mas apenas uma síndrome. Assim, uma série de pacientes delirantes, que apresentavam excitação psíquica, foram considerados como “com Mania”. Isso deturpa a estatística e, portanto, a epidemiologia que se baseia nessa estatística.

Vemos que segundo Kleist as psicoses afetivas são as que surgem como distúrbio primário da esfera afetiva. E essas psicoses afetivas constituem um quadro dentro das chamadas psicoses fásicas.

Kleist demonstrou que um grande número de psicoses se caracteriza por fases de expansão ou de depressão, de estímulo ou de bloqueio, que não são afetivas. Por exemplo, as Psicoses da Motilidade, que apresentam uma fase hipercinética e uma fase acinética. Essas psicoses se confundem com a Mania porque tem fases de expansão afetiva, de produção excessiva da motilidade ou, se confundem com a depressão por haver inibição ou bloqueio. 

Também ocorre o que Kleist chamou de “Psicose Hipocondríaca” em que há a depressão ligada ao elemento vegetativo e há a excitação ou o estupor. 

Nas psicoses fásicas há três aspectos fundamentais, segundo Kleist.

Levando em consideração a esfera da personalidade (na acepção da Teoria da Personalidade por nós adotada) atingida: há um grupo de Psicoses Afetivas, um grupo que se refere à atividade ou conação, por exemplo, as Psicoses Epileptoides de Kleist; e um grupo que se refere a alterações intelectuais, as Psicoses Paranoides de Kleist. 

Essas condições mórbidas intermediárias, às formas progressivas da esquizofrenia e às formas endógenas clássicas da melancolia e da mania, são as psicoses fásicas afetivas de Kleist. 

A diversidade entre elas está, fundamentalmente, na heredologia, na parte genética, na carga genética que leva o indivíduo a esse tipo de reação. 

A confusão no diagnóstico deve-se à falta de rigor no critério diagnóstico adotado, uma vez que se utiliza apenas o aspecto descritivo, fenomenológico. E nesse aspecto encontramos elementos comuns entre os diferentes quadros, uma vez que há a participação das mesmas esferas da personalidade e dos mesmos sistemas psíquicos nas psicoses. O que permite a distinção é o critério patogênico. E isto é fundamental para a terapêutica.

A psiquiatria exige o diagnóstico diferencial para que se faça corretamente o tratamento e o estudo epidemiológico, essa última envolvendo o aspecto social. Temos aqui um dos aspectos fundamentais da psiquiatria, que é o aspecto da prevenção social e a genética. 

Nesse sentido, é importante qualificar a atuação do psiquiatra em eventual aconselhamento genético: ele pode dar uma orientação inadequada, se basear a sua avaliação apenas na descrição clínica, e não no aspecto do prognóstico.

A contribuição de Kleist na psiquiatria não tem equivalente, pois ele definiu um campo muito importante, relativo à sua descrição das formas reversíveis, que não deixam nenhum traço de patologia e que são distintas das formas progressivas. E mostrou a participação da carga genética dando um colorido distinto aos quadros clínicos que Kraepelin havia fundido em um quadro único.

Os dinamismos envolvidos nas psicoses fásicas e especificamente na Psicose Maniaco-depressiva são os mesmos. A diferença é que na Psicose Maníaco-depressiva ocorre uma alternância de fases, que nem sempre aparece no mesmo paciente. As psicoses fásicas abrangem a Psicose Maníaco-depressiva, as psicoses do humor ou do ânimo que são constitucionais e as psicoses benignas, diatéticas, condições latentes que não se traduzem na constituição do indivíduo e que apenas se manifestam na fase psicótica. Dentre as psicoses fásicas temos as psicoses afetivas e dentre essas a Psicose Maníaco-depressiva, como caso mais restrito ainda.

  1. Texto organizado por Roberto Fasano, em 2003, sem referência a data, local ou a quem o compilou. Revisto em 11/10/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano. As referências adicionais em azul serão vinculadas a um texto relacionado com um determinado autor ou um determinado assunto. ↩︎