ACEPÇÃO DE SEMIOLOGIA NO DOMÍNIO DAS DOENÇAS MENTAIS

ACEPÇÃO DE SEMIOLOGIA NO DOMÍNIO DAS DOENÇAS MENTAIS¹

Inicialmente, desejamos frisar que a finalidade precípua deste curso será a de concorrer para a orientação teórica dos médicos estagiários que se encontram praticando no Hospital Central do Juqueri. Por isso, os psiquiatras experientes que nos honram com sua presença nos desculparão por desenvolvermos o tema pelo aspecto mais simples, pois o curso terá caráter elementar. Lembramos também que os colegas têm plena liberdade para formular perguntas ou fazer objeções que acharem cabíveis, para o que ficarão reservados quinze minutos no final de nossa exposição; de nossa parte, reservar-nos-emos a liberdade de, no caso de não sabermos esclarecer imediatamente a questão proposta, estudar o assunto para posterior elucidação.

¹Não tenho referência quando foi ministrada esta aula, mas na década de setenta, para os estagiários em Psiquiatria no Hospital do Juqueri. Também não consta se foi submetida a revisão do autor, porém, esta postila encontra-se um pouco mais organizada que as outras transcrições de aulas.

É possível que em alguns casos o que dissermos corresponda a simples opinião pessoal, que os ouvintes desejem discutir

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Na aula de hoje procuraremos estabelecer a acepção do termo “semiologia” tal como o deve encarar o psiquiatra. Ele assume aqui sentido particular, não pelo lado técnico da semiologia, mas por se aplicar às doenças mentais. Naturalmente, como semiologia, visa o estudo sistemático de sinais que conduzem ao diagnóstico. Mas a acepção de sinal é um pouco diversa daquela em uso na clínica geral e mesmo na neurologia. E isto exatamente porque o problema que temos a enfrentar, isto é, o diagnóstico a que procuramos chegar, se refere a distúrbios – quer funcionais, quer de origem orgânica – de funções muito complexas, as quais dependem essencialmente, tanto no estado normal como no patológico, dos demais níveis de integração da personalidade e que são subsidiários às dessas funções.

A estrutura humana é de tal ordem que as manifestações psíquicas dependem não somente das correlações das funções cerebrais entre si como também do substrato anatômico do encéfalo – do cérebro particularmente. Por sua vez, estas disposições anatômicas decorrem, indiretamente, das condições gerais do organismo e de maneira direta do nível de desenvolvimento do aparelho encefálico. Além disso, cumpre levar em conta as influências oriundas do meio social, e no caso da patologia, a interferência de fatores do ambiente físico. Portanto, temos que recorrer a todos esses conhecimentos para avaliar corretamente de que maneira determinada função psíquica está situada em relação à faixa normal correspondente.

Desejamos frisar como característica do exame psiquiátrico a necessidade de apoiar-se em dados objetivos precisos e ao mesmo tempo de levar em conta fenômenos de ordem funcional e principalmente de dinâmica social. Dizemos dinâmica social não em sentido evolutivo, de fases sociológicas, mas em relação a grupos coexistentes no mesmo ambiente geográfico: assim, para exemplificar, a alusão do paciente a “espíritos encostados” ou a malefícios de “coisa feita” não constitui de per si, delírio, se o ambiente peculiar ao examinando poderia endossar. 

Depreende-se dessa rápida revisão que a semiologia psiquiátrica não se pode limitar aos sinais objetivos manifestados pelo paciente no momento do exame: ela envolve questões extremamente complexas que transcendem o limite da pessoa física em estudo e se prendem, por um lado a fenômenos sociogênicos, por outro a condições atinentes à herança biológica.

Parece estranho que o psiquiatra deva atender com o mesmo cuidado a fenômenos de esfera tão ampla como os da sociologia, e a outros tão particularizados como os caracteres heredológicos. E na realidade a maioria dos autores tende a encara a psiquiatria de maneira unilateral. Justamente por isso insistimos em que é indispensável ter sempre em vista que o nível moral, ou subjetivo da personalidade pressupõe necessariamente o concurso de numerosos fatores, dinâmicos, estruturais, biológicos, físicos e também sociais. Em consequência, é forçoso estudar muito maior número de fatos do que nos demais setores da medicina para concluir pelo diagnóstico adequado. E, ainda com mais razão que nos outros campos da atividade médica, a tarefa que se nos impõe na psiquiatria ao darmos um nome a cada caso não decorre, do fato, da simples necessidade de rotular. O diagnóstico nosográfico não constitui sequer a finalidade imediata do exame psiquiátrico. Convém não esquecer que as modalidades clínicas a que chegamos como conclusão desse estudo semiológico, isto é, as doenças mentais, representam entidades abstratas por excelência. Certamente, existe um conjunto de dados que rotulamos, por exemplo, como Esquizofrenia ou como Psicose Maníaco-Depressiva. Mas isto constitui simples criação do espírito humano, artifício lógico para metodizar o trabalho: nosso dever é considerar objetivamente em que condições somáticas e psíquicas se encontra o indivíduo cujas manifestações psicóticas descrevemos com o diagnóstico psiquiátrico, no caso a Esquizofrenia ou a Psicose Maníaco-Depressiva. São aquelas condições específicas, não esta entidade genérica, o que há de orientar o psiquiatra para o trabalho corretivo. 

Ademais dessa atuação essencialmente médica, desenvolvida em sentido imediato, cumpre ao psiquiatra intervir em âmbito mais largo e com finalidade muito mais elevada. Realmente, é na readaptação social do paciente que consiste a principal função do psiquiatra: ele há de encarar os distúrbios que tem diante de si como alterações patológicas em grau variável que levam o indivíduo a desajustar-se das atividades social na qual devera estar integrado. Somente a psiquiatria e a semiologia é que provê os meios para isto – permite ao profissional médico identificar até que ponto o indivíduo se desgarrou da própria finalidade social dinâmica, e de que maneira será possível corrigir tal desintegração. E, como complemento indispensável e de alcance ainda mais amplo, ocorre ao cultor da nossa especialidade evitar que essa alteração se mantenha ou se propague através dos traços heredológicos. Assim, essa dupla finalidade social e eugênica há de orientar o estudo da semiótica no setor da psiquiatria. Isso equivale a afirmar que não basta apurar os conhecimentos tendo em mira a finalidade imediata de atuação sobre os sintomas clínicos. Não é psiquiatra quem descura a solução mediata, a longo prazo. Não é lícito pensar que em psiquiatria a tarefa do médico cesse com a obtenção do resultado imediatista; ao contrário, cumpre-nos prever e planejar para muitas gerações consecutivas.

Encarada a semiologia por esse ângulo, é fácil verificar que ela vem sofrendo a mesma evolução que o conceito de psiquiatria. Passando rapidamente em revista essa evolução, lembramos a grandiosa construção devida a Kraepelin, infelizmente ainda mal apreciada. Coube a ele estabelecer, primariamente, o conceito de doença mental endógena, trazendo ao conhecimento do psiquiatra esse novo elemento semiológico que ultrapassava a identidade física do indivíduo. Foi certamente um progresso poder demonstrar que algumas doenças mentais sobrevêm sem que necessariamente intervenham causas exógenas, mas sim como resultado de componentes endógenos. É comum hoje em dia profligarem o empenho daquele grande inovador em classificar os quadros psicóticos, como se fora essa a meta fundamental por ele visada. Entretanto, a doutrina kraepeliniana representou o primeiro passo na evolução da psiquiatria, em primeiro lugar porque deu a esta uma base sólida: diante de certos números de dados, é possível hoje concluir se determinado caso clínico corresponde principalmente a tendências herdadas do indivíduo ou se ao contrário obedece à atuação de fatores ocasionais. É o que resumimos com a figura número 1, em que reunimos dois esquemas de Luxemburger.

DiagramaDescrição gerada automaticamente com confiança baixa

Começou assim a ser transformada em previsão a instituição clínica que em última análise, não passava de simples predição. Além disso, constitui o ponto de partida para a atual prevenção eugênica. De fato, será impossível promover a profilaxia das doenças mentais sem estabelecer o critério distintivo entre os quadros meramente acidentais e os que derivam do mecanismo heredo-biológico.

Outro passo também importante, fundamental, nessa direção, foi dado em épocas diversas por Wenicke, Meynert e Kleist.

Wernicke individualizou na prática a ocorrência clínica de casos que se iniciavam com aparência catastrófica e que, entretanto, dentro de alguns meses entravam em remissão, com restituição integral da personalidade ao nível anterior. Faltou-lhe apenas a base indispensável dos conhecimentos heredológicos, então incipientes, para esclarecer doutrinariamente esse grupo de psicoses. Por outro lado, nos casos lesionais, pode evidenciar que lesões das várias regiões cerebrais acarretam distúrbios variáveis conforme atinjam de preferência o córtex ou a zona subcortical.

Meynert mostrou a influência de certas alterações cerebrais funcionais na constituição de determinados quadros clínicos: assim, filiava a sensação de euforia – durante fases de excitação em doentes mentais – à hipertermia funcional do cérebro, bem como o ânimo depressivo à isquemia acarretada pela constrição de vasos cerebrais. Anteriormente descrevera como entidade clínica a “amência”, à qual delimitou como excitação confusional onírica, curável, de origem tóxica.

Finalmente, Kleist, fundamentando a apreciação clínica em elementos muito mais diferenciados, imprimiu à psiquiatria o passo mais importante: demonstrou que algumas doenças mentais, independentes do grupo maníaco-depressivo, embora também endógenas, isto é, aparecendo autoctonemente sem nenhuma causa desencadeante evidente, podem decorrer com remissão integral e voltar de novo aos desvios funcionais, para depois remitir integralmente, uma série de vezes. Embora nos períodos intervalares nada de anormal se aprecie, esta modificação periódica da personalidade corresponde a tendências até certo ponto endógenas, não de modo constitucional, mas latente: constitui o substrato das chamadas “psicoses marginais”. Mas esse grande inovador da psiquiatria não só descreveu grupos clínicos precisos: deu principalmente a explicação heredológica desses quadros clínicos e evidenciou a base genética da psicopatologia. Além disso, mostrou que não basta saber que o indivíduo tem na família casos análogos aos seu ou então dissimilares; é necessário conhecer a que tipo correspondem aqueles casos clínicos, isto é, estabelecer a anamnese heredológica com critério de diagnose diferencial. Provou que muitas vezes a multiplicidade de “taras” representa fato benéfico, como atenuação da sobrecarga heredológica. Mostrou ainda que, em sentido contrário, a convergência de “taras” empresta aparência de tipo endógeno a psicoses tóxicas ou infecciosas. essa incomparável eficiência da elaboração heredológica dos quadros clínicos cabe a Kleist e à sua escola. Aqui mesmo nas reuniões anátomo-clínicas dirigidas pelo Prof. Maffei tivemos a ocasião de documentar o caso de um paciente observado pelo Dr. Spartaco Vizzotto. Era um paciente do quarto Pavilhão, cujas reações psicóticas, coincidiam com as exacerbações do processo reumático e remitiam completamente após o episódio febril. O quadro clínico correspondia a “episódios crepusculares”. Á necrópsia, efetuada pelo Dr. Maffei, revelou alterações cerebrais características do processo reumático e, além disso, disgenesia do sistema páleocerebral. Portanto, os dados heredológicos devem servir para compreendermos o quadro clínico, não para pré-julgar da gravidade ou benignidade do caso em apreço.

Outra aquisição valiosa da psiquiatria temo-la na apreciação biotipológica originada simultaneamente dos estudos de Jaensch e Kretschmer. Com critérios diversos e sob orientação doutrinária distinta, ambos aqueles chefes de escola precisaram a compreensão dos tipos somatológicos como indicativos de tendências paralelas no nível psicológico da personalidade. Veremos oportunamente como utilizar esses dados somato-psíquicos com finalidade semiológica. Mas podemos de momento lembrar que a experiência pessoal do nosso grupo já tem confirmado a veracidade dessa variação paralela. Assim, pudemos mostrar em nosso meio como o teste de Rorschach, por exemplo, que constitui prova eminentemente psicológica, varia nos resultados conforme o tipo somático do examinando, seja normal, seja doente mental. É, pois fato comprovado que existe uma relação constante entre o conjunto dos atributos somáticos e o comportamento psíquico do indivíduo, e que semelhante correlação não pode deixar de ser levada em conta ao apreciarmos os quadros mórbidos.

Outra orientação doutrinária que tem ponderado no setor psiquiátrico foi a dada por Monakow e Freud respectivamente, introduzindo os dados semiológicos no âmbito da psicologia profunda.

Com o grande anátomo-patologista de Zurich, vemos a interpretação dos quadros psicóticos baseada na dinâmica instintiva. as inter-relações anátomo-funcionais e principalmente a introdução do fator cronológico, bem como os conceitos filosóficos sobre a dinâmica dos instintos, colocam os problemas da clínica psiquiátrica em base segura.

Freud revolucionou a técnica psicoterápica instituindo normas precisas para investigação dos fatos inconscientes, as quais habilitam o médico a identificar os problemas profundos da personalidade, desmontando-os a partir da exteriorização sintomatológica atual. Graças às grandes aquisições psicológicas iniciadas pela escola freudiana foi possível restaurar em muitos doentes o nível de maturação afetiva que deviam ter e, portanto, liberar esses pacientes de perturbações funcionais que não seriam acessíveis a modalidades psicoterápicas que precederam à psicoanálise. Tornou-se mesmo possível corrigir psicoterapicamente, no estado atual dos conhecimentos, graves alterações de personalidade, que não se supunham passíveis de tratamento, e ante os quais falham as terapêuticas comuns – tais os casos em que elas derivam, em última análise, de lesões anatômicas cerebrais, como as da encefalite na infância, para exemplificar.

Como orientação psiquiátrica mais recente, a concepção genético-dinâmica de Adolph Meyer estendeu também a atuação médica para o meio social. Com esse autor entra decididamente na psiquiatria, como técnica, o ecletismo, procurando investigar de modo sistemático as correlações entre indivíduo e ambiente quer nas fases que precederam ao desajuste “psicobiológico”, quer (nas fases que precederam ao desajustamento) na gênese das alterações tanto orgânicas como funcionais. 

Diagrama, EsquemáticoDescrição gerada automaticamente

O psiquiatra já não se pode considerar com investigador isolado, mas por força da própria doutrina passa a receber o concurso da assistente social. Em nenhuma outra corrente foram assim precisados a parte que deve caber ao médico aquela que compete à assistente social psiquiátrica. É da escola de Adolph Meyer que decorre a sistematização do trabalho da assistente social. Dela deriva a organização deste ramo fundamental da atuação psiquiátrica; e ainda dela se originou a concepção hoje fortemente sedimentada, nos Estados Unidos, da “orto-psiquiatria”, na qual se conjugam os esforços do psiquiatra, do psicólogo e da assistente social.

Do que resumidamente dissemos se depreende que a concepção da psiquiatria como especialidade que se limita a tratar os doentes mentais constitui imperdoável anacronismo. Após a longa e penosa evolução só é possível encará-la como conjunto de normas de investigação do mundo subjetivo, organizadas em sistemas eminentemente dinâmicos e com finalidade principalmente preventiva. Ela assume desta maneira feitio eclético, por isso que resume em si uma série de tendências doutrinárias diversas, as quais foi sucessivamente incorporando (ver figura 3). Eclética nesse bom sentido e não no sentido de aglomerar métodos díspares como meios de investigação da personalidade. Ao contrário, só é possível chegar ao diagnóstico psiquiátrico dando a cada fenômeno o devido valor. Assim, por exemplo, numerosos pacientes patenteiam transtornos “neurológicos” evidentes, que entretanto não têm nenhum substrato anatômico lesional: é o caso de tics ou de certos rituais compulsivos graves, exibidos mesmo em público, que ao exame psiquiátrico não correspondem a uma doença mental nem a alteração orgânica. Por outro lado, doentes que tiveram encefalite na infância, por vezes exibem atos aparentemente pitiáticos ou compulsivos, os quais, entretanto dependem de lesões em estruturas anatômicas especiais. A priori não é possível, portanto, decidir se em determinado caso os distúrbios correspondem a lesões orgânicas do cérebro ou simplesmente a desvios de ordem funcional. E é para que o médico se liberte do apriorismo e da improvisação diagnóstica que a semiologia tem de ser apurada.

Assim, norteada pela concepção hodierna, a semiótica em psiquiatria corresponde ao estudo sistemático do comportamento dos vários elementos clínicos, com a finalidade imediata de estabelecer o diagnóstico diferencial e – principalmente – com as finalidades mediata e remota de orientar a terapêutica e de estabelecer a previsão psicobiológica do caso clínico em apreço, tendo sempre em vista a reintegração funcional do indivíduo no ambiente objetivo e a atuação dele através das correntes genéticas.

Por esse motivo dissemos que constitui questão assaz complexa a colheita dos dados semiológicos que terão de ser utilizados para tal fim. É imperativo da própria psicologia normal – que depende de tantos níveis de integração, funcional, estrutural e também gregária – além disso acrescida em complexidade pela incidência dos fatores mobígenos.

Resumindo as revisões que deveremos fazer nas aulas subseqüentes, enumeramos os setores a que terá de aplicar-se a semiologia:

1. Anamnese: Esta pode ser tomada diretamente do paciente – anamnese subjetiva – ou colhida objetivamente, isto é, baseada na informação da família ou dos que convivem com o examinando. Raríssimas vezes não consegue o psiquiatra que o próprio doente mental forneça dados aproveitáveis. A prática demonstra que na maioria dos casos a alegação de que o paciente não coopera ou não sabe informar deriva da atitude cética ou apressada daquele que examina e não da incapacidade deste. Mesmo dados subjetivos falseados ou contraditórios são úteis ou instrutivos: e não raro a investigação da anamnese desperta a cooperação de doentes até ali alheados. É sempre elucidativo comparar a anamnese subjetiva com a objetiva. Em ambas temos que colher dados não apenas como se faz na clínica geral – para estabelecer em que época começou a doença atual, quais os antecedentes mórbidos da família, que doenças ocorreram anteriormente e qual a respectiva correlação. Cumpre que o psiquiatra se habitue a verificar principalmente os dados heredológicos, com técnica especial. É com essa técnica – à qual consagraremos alguns tópicos oportunamente – que devemos caracterizar os antecedentes pessoais, o ambiente psicológico em que viveu o examinando, a maneira como se verificou o início da moléstia. Desejamos ainda frisar este dado importante: o paciente deve também ser registrado em ficha especial quanto à anamnese e aos traços de personalidade, de maneira que tenhamos posteriormente ao nosso contato direto com ele um resumo clínico-heredológico preciso. A súmula dos dados relativos ao paciente no respectivo ambiente doméstico e social quando egresso deverá ser anotada nesse mesmo registro, constituindo a catamnese. Como na anamnese as anotações catamnésticas obtidas no meio social – seja depois da remissão, seja em fase residual – devem focalizar de preferência as relações genealógicas no sentido colateral e descendente.

2. Dados diretos de ordem objetiva – A inspeção já pode, de início, fazer suspeitar de condições herdadas, mas estas não devem fazer pressupor que o quadro clínico também o seja. Exemplo: em algumas ocorrências a deficiência mental congênita se acompanha de má formação somática, de tipo disgenético; mas os distúrbios psicóticos que trazem a nós dado paciente com disgenesias somáticas podem ser reativos, tanto quanto toxi-infecciosos ou devidos a neoplasia intracraniana.

De qualquer forma, tanto as condições somáticas endógenas quanto o estado físico atual ou a aparência estrutural tipológica do indivíduo, devem ser pesquisados à luz dos dados de laboratório clínico, completadas por meios paraclínicos, que permitam avaliar em que condições se encontra o organismo realmente. Constituem elementos semiológicos indispensáveis e por isso mesmo devem ser interpretados com objetividade.

        Cumpre considerar os dados neurológicos – discretos como os que decorrem da encefalite na infância, ou mais grosseiros, que podem estar ligados a destruições mais ou menos extensas do tecido cerebral. Ainda aqui a finalidade é obter mais exata compreensão do feitio clínico em apreço e não excluir diagnósticos ou atribuir os sintomas psíquicos à mesma gênese lesional. 

Força é recorrer aos dados subsidiários, principalmente o exame neurooftalmológico, sem o qual muitas vezes não podemos estabelecer diagnose correta e, portanto, intervenção terapêutica adequada. Muita vez são os resultados deste precioso exame especializado que permitem distinguir entre transtornos funcionais e por outro lado a encefalite, ou manifestação epileptóide, ou mesmo condições cerebrais tardiamente adquiridas, como por exemplo a arterioesclerose, que não deve apelar para o colega oftalmologista como quem apela para o do laboratório bacteriológico. Lembremos o caso de um paciente de cinquenta anos que examinamos com o Dr. W. de Carvalho neste hospital. Apresentava alterações características no setor neuro-ocular, a confirmar sinais clínicos; entretanto, o quadro mental correspondia a reações obsessivo-ansiosas que datavam de uns trinta anos e que foram agravadas por problemas atuais – estes ligados à arterioesclerose encefálica – os quais determinaram o episódio reativo de situação.

Dentre os exames paraclínicos, é indispensável para nossa especialidade o exame do liquor.

Também a bioquímica do sangue nos revela uma série de condições importantes, quer ligadas à própria gênese do quadro, quer de tipo ocasional. Citemos a dosagem de colesterol e suponhamos uma eventualidade que ocorre com frequência: a de um epiléptico com crises espaçadas, as quais em dado momento se intensificaram; o exame clínico faz suspeitar de hipertireoidismo, o qual se confirma ante a bioquímica pela baixa de colesterol sanguíneo – o qual a seu turno representa elemento protetor contra convulsões. Certamente esse exame bioquímico não poderia revelar a etiologia dos distúrbios epilépticos, mas comprovou a gênese das convulsões, até ali compensadas, e permitiu restabelecer com a correção do hipertiroidismo- o nível de resistência eficiente às tendências convulsivas.

Igualmente valioso é o concurso da hematologia, que ao denunciar as várias modalidades de anemia ou ao revelar desvios de tipo tóxico, agudo ou crônico, no hemograma, pode com isso atestar a etiologia geral de determinadas ocorrências psiquiátricas. Mas não é somente como auxiliar na interpretação patogenética do quadro clínico, e sim para avaliar as condições somáticas em que se encontra o paciente, e que urge sejam corrigidas, que devemos recorrer à hematologia.

Os elementos diagnósticos da radiologia neurológica e o eletroencefalograma fornece ao psiquiatra importantes ensinamentos de aplicação diária.

3- Exame Subjetivo ou Psíquico – Em seguida, como parte central do exame psiquiátrico, há a considerar os dados subjetivos que compõem a observação direta. Como questão de método e de importância semiológica, vem em primeiro lugar a orientação psíquica do paciente: constituem modalidades importantes a noção de tempo, de ambiente, de local, e o reconhecimento da própria personalidade. O indivíduo pode, por exemplo, estar perfeitamente orientado quanto ao meio e aos dados cronológicos e, no entanto, não se identificar como o mesmo indivíduo que anteriormente, por ter perdido ou falseado a noção subjetiva da personalidade. Isto deve ser levado em conta como elemento prognóstico, por quanto a perda das noções referentes à personalidade subjetiva indica tratar-se de processo mais grave do que nos casos em que ocorre perda da orientação no mundo subjetivo ou no tempo.

Outro dado diferencial importante, a noção de doença: é comum o doente apresentar alterações psicóticas graves e, entretanto, ter consciência do próprio estado mórbido, podendo revelar esta eventualidade de duas maneiras: quer referindo-o ao médico, explicitamente ou mediante alegações que denotem reconhecer as modificações, quer fazendo alusões evasivas ou tentando sonegar por meio de justificativas ou dados correspondentes.

Devem se pesquisar em seguida os distúrbios da percepção, setor este no qual a semiologia terá de aplicar-se com esmero. Deveriam ser objetos de várias revisões, pois abrangem gama extensa e cada tipo de distúrbio oferece significado diagnóstico e prognóstico diverso; além do mais são possíveis – e infelizmente mesmo frequentes – apreciações errôneas dos fatos nesse domínio. Não obstante, devido à exiguidade do tempo, teremos que resumi-los em duas aulas apenas.

Ao examinar o trabalho mental, cumpre que se analisem separadamente os dois aspectos: o formal, isto é, como se processa o trabalho elaborativo; e o que entende com a elaboração intrinsecamente, a qual independe de haver ou não distúrbios no raciocínio e mesmo do nível intelectual. Verificamos então como se estabelecem os pensamentos: se a construção dos conceitos obedece à “lógica racional” peculiar ao adulto, ou à “lógica afetiva”, impropriamente a nosso ver, denominada “pensamento mágico”.

Finalizando, o grupo das manifestações ligadas com as funções intelectuais no sentido aferente há a considerar a seleção e a identificação, funções paralelas, entrelaçadas tão intimamente no estado normal que só artificialmente podem ser estudadas em separado. Por efeito do processo patológico darão margem a distúrbios variáveis, desde a desorientação, o falso reconhecimento, até a fabulação, a estranheza e a própria despersonalização.

A expressão, atributo intelectual eferente com relação ao mundo externo pode ser alterada – em qualquer das modalidades, mímica, verbal e gráfica – em consequência de transtorno intrínseco, o que como regra indica lesões focais do cérebro. O que é mais comum, porém, é que os distúrbios expressivos decorrendo de desmantelo em outras funções: na percepção – tal como a mudes secundária à surdez congênita; na elaboração, o que se exemplifica com o “agramatismo”, na conação como, a nosso ver, é o caso da parafasia.

O exame subjetivo deve apurar em seguida como se comporta o paciente sob o aspecto da afetividade e da emotividade, da mesma forma que pelo aspecto conativo. De fato, nossa função imediata, como psiquiatra, é conhecer-lhe a personalidade integral. Não podemos ater-nos apenas à maneira como o doente raciocina, às concepções que emite, ou aos distúrbios que apresenta na esfera perceptiva. Temos que julgar de que modo e até que ponto dá vasão à necessidade de agir; e a justificativa das próprias ações – não só a concordância ou a discordância destas – põe por vezes a descoberto sistemas delirantes ou desvios relacionáveis a outros distúrbios, como os afetivos, de outra forma não evidenciáveis.

4. Finalmente, havemos de levar em conta na observação clínica, o comportamento explícito do paciente no meio objetivo: constituem dado de particular relevância as reações desencadeadas pelo estímulo externo, quer no meio pregresso social, quer no ambiente hospitalar. 

Se não levarmos em consideração todos os dados que passamos em revista e aos quais pretendemos analisar no decorrer destas reuniões, não estaremos praticando a semiologia adequadamente. Aplicando-os sistematicamente na prática hospitalar verificaremos que a semiologia como meio de acesso à personalidade nos conduz mais a fundo aos problemas mesmo somáticos do examinando. Ela fornece aos psiquiatras dados mais compreensíveis e em conjunto muito mais complexos que, infelizmente, nos outros setores da medicina. Dizemos infelizmente, porque o clínico geral, ainda hoje, imbuído do espírito da especialização mal compreendida, tende a considerar o paciente como máquina em que há peças desarranjadas cujo funcionamento deve ser corrigido. O internista, ou cirurgião, comumente não leva em consideração na prática, mas o admite em tese, que distúrbios mesmo orgânicos, na vida vegetativa, podem ser consequência de perturbações psicológicas não suspeitadas. Esquece-se, via de regra, de que por trás de sintomas clínicos pode haver problemas domésticos – não reveláveis porque o médico não cogita deles – ou situações angustiantes do fundo sociogênico em geral. Não recorre por isso ao trabalho da assistente social, como não cuida de investigar no paciente o comportamento psicológico que lhe é peculiar. Daí a grande messe de clientes que “não reagem à terapêutica” embora adequada ao diagnóstico clínico. É que os sintomas em tais casos não mais representam que defesas inconscientes para com problemas “psicogênicos”. Não no sentido habitual de conflitos psíquicos acessíveis ao próprio ambiente, mas na acepção de causa psicológica profunda, que somente desmontada analiticamente pode ser conhecida e eliminada.

Portanto, deve partir da psiquiatria, cerceamento indispensável ao conhecimento da Medicina, o movimento orientado para modificação do pensamento médico em geral. Torna-se indispensável que o psiquiatra amplie o raio de ação e colabore com o clínico geral no sentido de que este possa incluir na observação de rotina os dados relativos ao mundo psíquico. É tempo de cooperarmos todos para a compreensão da Medicina como arte que focalize a personalidade humana integral.

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Figura n.°3 – Escolas psiquiátricas contemporâneas. Em traços interrompidos a orientação que adotamos

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