INSTINTO NUTRITIVO

INSTINTO NUTRITIVO1
(Lúcia Maria Salvia Coelho)

  1. Evolução no ser vivo

    A nutrição é um fenômeno característico de todo ser vivo. Consiste na contínua renovação orgânica, ou seja, na assimilação e desassimilação em um meio que é próprio ao organismo. Nas plantas esse fenômeno de nutrição celular se distribui por todo o organismo sem possibilidade de provar um nexo subjetivo pois que lhes faltam um sistema cerebral coordenador. Nos seres unicelulares ocorre uma troca osmótica semelhante ao que se passa nos vegetais. Já com a evolução das espécies animais surge um certo grau de organização hierárquica sendo que a contínua variação da estrutura química do organismo já apresenta uma diretriz precisa, graças à estruturação neuronal. Mas é a partir dos vertebrados que se estabelece a regência central cujo correspondente psicológico se caracteriza como “instinto nutritivo”. A centralização e a coordenação, por um órgão definido, destas funções nutritivas no Sistema Nervoso é correlata à especialização que atinge maior grau na espécie humana.
    O fator responsável pelas características definidoras da espécie é o genoma. Em cada aspecto do comportamento de um ser vivo devemos considerar os fatores genéticos, próprios da espécie e a carga genética individual. Os primeiros são de ordem geral e de natureza estável, e a segunda é específica a cada ser. No plano subjetivo podemos definir as funções psíquicas inatas e presentes em todos os indivíduos da espécie – permitindo a concepção de uma estrutura de personalidade e o dinamismo específico que se estabelece entre estas funções e entre o indivíduo e o ambiente – caracterizando a dinâmica de personalidade – diversa para cada ser considerado. O instinto nutritivo corresponde às funções características de todo ser vivo e que assumem um feitio particular na espécie humana, graças à evolução do sistema nervoso. A ele acham-se relacionados dois aspectos característicos dos fenômenos vitais: a evolução que termina com a morte e a reprodução que perpetua a espécie. De modo que todas as reações viscerais bioquímicas estão subordinadas ao Sistema Nervoso. O correspondente psicológico desta regência central está ligado, no plano subjetivo, ao que denominamos “instinto nutritivo”.
    Em cada fase do desenvolvimento ontogenético o sistema nutritivo interfere de modo cada vez mais complexo. Na realidade, os processos nutritivos surgem desde a fusão zigótica, permitindo as reações que acompanham o desenvolvimento fetal, ou seja, dirigindo a maturação genética. Portanto, o instinto atua antes da formação do órgão correspondente, pois que o desenvolvimento fetal – a de embrião – em sua primeira fase antecede à formação do sistema nervoso. Este fenômeno nutritivo e de desenvolvimento do ovo – decorre da estimulação recebida através do organismo materno, do instinto nutritivo e sexual da mãe. Caso haja uma alteração grave nesse processo de maturação inicial, ocorrerá o aborto.
    Assim, o instinto nutritivo é o único realmente indispensável à sobrevivência e representa o elemento fundamental para o desenvolvimento do sistema nervoso, isto é, do próprio sistema psíquico correspondente. Após a formação do sistema nervoso no feto define-se uma região – o verme cerebelar – que daí por diante centralizará este processo metabólico, funcional e bioquímico.
    Von Monakow denomina o instinto nutritivo de “instinto formativo”, baseado em investigações anatomopatológicas, neurofisiológicas que demonstraram a manifestação deste instinto antes da formação do feto. Sontag verificou este aspecto decapitando os embriões no interior do organismo de uma porca prenhe. Os porquinhos nasceram sem cabeça, o que indica que a ausência do cérebro não impediu o processo nutritivo de formação do indivíduo. Tal fenômeno ocorre na espécie humana com os fetos anencefálicos que chegam até a fase de maturação e apresentam apenas um sistema nervoso rudimentar. Em ambos os casos o centro coordenador deste processo de evolução embrionário é o cerebelo materno.
    Podemos ainda estabelecer um certo paralelo entre a concepção positivista de instinto nutritivo e a concepção freudiana de libido – energia biológica que estimula todas as reações vitais e que incita o indivíduo a agir no ambiente.
    Entretanto, a teoria de libido é ainda imprecisa e do ponto de vista científico ela é bem inferior à teoria comteana. Freud não estabelece a natureza deste fenômeno considerado no plano cerebral, ao passo que Comte relaciona-o com o verme cerebelar, e tal atribuição atualmente já foi amplamente demonstrada por investigações neurofisiológicas, da anatomia comparada e mesmo através dos estudos sobre alterações patológicas.
    Logo após o nascimento temos a expressão puramente visceral do instinto nutritivo, o qual atua na assimilação dos estímulos externos através dos reflexos condicionados e através das primeiras construções intelectuais. A alimentação e a própria eliminação das fezes provocam um relaxamento orgânico e satisfação que é basicamente associada pelo indivíduo ao ambiente externo, provedor de suas necessidades. A este nível já ocorre um processo emocional em que as noções da realidade externa se acham associadas às satisfações vegetativas. Assim, quando a criança recebe os alimentos ocorre uma estimulação visceral correspondente à modificação da situação de carência alimentar. Ao mesmo tempo ela relaciona intelectualmente este estímulo à satisfação instintiva sem distinguir no ambiente os fatores sociais: ela identifica a presença da mãe com a própria satisfação subjetiva. Este processo emocional permite os primeiros nexos da criança com o ambiente. Tais nexos são fundamentais para a evolução de seus sentimentos sociais.
    Daí a importância atribuída pelos psicólogos a esta relação primordial estabelecida entre a mãe e a criança.
    A incidência de uma perturbação nesta fase de relacionamento afetivo-visceral da criança no ambiente poderá determinar associações irracionais ou fantasias que poderão interferir no ajustamento harmônico à realidade e mesmo se traduzir, mais tarde, como um processo neurótico. O aspecto da emoção decorre da repercussão da noção sobre o instinto nutritivo, ligado diretamente ao metabolismo. Veremos que, quando esta repercussão atingir o nível mais diferenciado dos sentimentos, a expressão emocional terá um conteúdo social, como por exemplo, a expressão de alegria pelo riso, o de tristeza pelo choro, e o do pudor pelo enrubescimento.
    Assim, logo após o nascimento, a reação infantil é predominantemente instintiva com reduzida participação da cognição. Ocorre de início a prevalência do instinto nutritivo que vai caracterizar o relacionamento do indivíduo com o ambiente. Nesta fase a unidade subjetiva baseia-se nos impulsos instintivos. Esta unidade geral do ser apenas pode ser compreendida através dos meios que ele dispõe para prover sua própria conservação. Esta unidade subjetiva supõe necessariamente a continuidade do estímulo afetivo.
    Uma vez que toda função animal é intermitente, a continuidade decorre da ação dos órgãos cerebrais afetivos. Tais órgãos não apresentam uma ligação direta com o ambiente externo, e não sofrem, portanto, a excitação periódica que é captada pelos órgãos sensoriais para a realização do processo intelectual e que provoca reações de contração muscular traduzindo-se como mobilidade.
    Assim, apenas as funções intelectuais e as conativas são processos intermitentes enquanto as funções afetivas agem continuamente. Comte sintetiza este aspecto do processo psíquico em sua expressão: “Podemos deixar de agir e até mesmo de pensar, mas nunca podemos deixar de amar”. Entretanto, mesmo atuando continuamente no organismo os instintos não asseguram uma síntese harmônica.
    As reações instintivas podem ser contraditórias e cegas, e por caracterizarem o contato do recém-nascido com o ambiente, elas não asseguram a estabilidade do comportamento e a unidade subjetiva se faz de modo precário e sincrético. À medida que a criança vai subordinando seus impulsos básicos aos imperativos do ambiente social ela já é capaz de distinguir a imagem de um ser humano que a alimenta como elemento responsável por sua satisfação. Esta fusão da imagem com a sensação corresponde à fase inicial do estabelecimento de uma síntese subjetiva superior da qual resultará a noção de identidade, a consciência da existência autônoma com referência aos demais indivíduos e a própria concepção da realidade objetiva. Tal síntese só se completa através da ampliação das relações interpessoais.
    Porém é necessário assinalar que o instinto nutritivo participa nas fases do desenvolvimento individual, se bem que em níveis crescentes de complexidade e de subordinação

    2. Nível cerebral do processo nutritivo

    O páleo-cerebelo ou verme cerebelar é o órgão básico responsável pela expressão biológica do instinto nutritivo. A nutrição se manifesta de duas maneiras: como fenômeno específico de regência do metabolismo e como estimulação geral de ativação do sistema nervoso central.
    Devemos, portanto, considerar dois níveis de atividade cerebelar: em que corresponde apenas às funções objetivas vegetativas e outro que corresponde já à manifestação da estimulação cortical (apreciável pelo EEG, ou pelo exame neurológico direto) – com um correlato subjetivo de ordem psicológica. Vemos que o cerebelo é o órgão que funde todas as atividades: desde metabólicas que são fundamentais à existência individual até à expressão do interesse pelo ambiente que se traduz tanto como “espontaneidade” – resultante da correlação entre afetividade e conação da “consciência” dos estímulos externos e internos que resulta da correlação inteligência-conação.
    A regência do metabolismo se faz no hipotálamo e a distribuição geral dos estímulos ao Sistema nervoso central se faz pela regência da zona reticular do encéfalo. Mas tanto o hipotálamo como a substância reticular não são zonas autônomas, mas estão subordinadas às vias cerebelo-cerebelares.
    Verificou-se experimentalmente que a regência hipotalâmica não é autônoma, pois quando o cerebelo é atingido ocorrem modificações nos núcleos hipotalâmicos. Além disso o potencial bioelétrico nos núcleos hipotalâmicos é influenciado pela integridade ou pela alteração do verme cerebelar.
    Além disso, também não é autônoma a regência da zona reticular do processo de ativação de Sistema Nervoso. Existem fibras de ligação entre a substância reticular e os núcleos hipotalâmicos (cerebelo-retículo-hipotalâmico).
    A verificação experimental da existência de zonas supressoras da atividade cortical comprova ainda a importância do cerebelo na coordenação dos processos nutritivos. Inicialmente Baylay e McCulloch verificaram em animais que a estimulação das zonas corticais específicas (2, 4, 8, e no ângulo das áreas 23, 24 e 37 de Brodmann) produziam inibição total da atividade cortical. Mais tarde estes dois autores e independentemente Magoun, observaram que a atividade supressora não é apenas de ordem cortical, mas vai até os núcleos da base do encéfalo.
    Magoun verificou que nesta inibição participa igualmente a substância reticular do bulbo. Atualmente já foi comprovado experimentalmente que do cerebelo até a zona reticular do encéfalo partem estímulos que são inibitórios e que vão até a corticalidade. Portanto, existe um sistema páleo-cerebelar-paleo-cerebral responsável por este processo inibitório. Isto explica por que uma alteração cerebelar provoca perda da consciência (Magoun: The walking).
    Temos, então, dois circuitos inibitórios: um córtico-cortical (córtex-tálamo-estriado-cortical nas zonas 4 e 45), outro cerebelo-cerebral (cerebelo-hipotálamo-zona orbitária) – zona frontal, cortical.
    Um outro aspecto do fenômeno nutritivo foi verificado por Silveira em 1941. Este autor estimulando o hipotálamo produzia a “falsa raiva” no gato, isto é, sua reação de cólera e de agressividade.
    Ao cortar as ligações entre o cerebelo e o hipotálamo, Silveira observou que repetindo a estimulação elétrica no hipotálamo do animal, apesar deste demonstrar uma reação de cólera, não manifestava um comportamento agressivo.

    1. Apostila produzida na Faculdade de Medicina de Jundiaí, como complemento ao curso de Psicologia Médica, destinado aos alunos de Medicina e residentes em Psiquiatria. Também esta apostila foi utilizada no Curso de Teoria da Personalidade na Sociedade Rorschach de São Paulo. O texto foi composto em 1978. Seu conteúdo foi considerado parcialmente superado pela própria autora que já discorreu sobre o tema sob nova perspectivas. Eu, Roberto Fazzani, no entanto, digitalizei todas as apostilas do grupo no qual esta está incluída. Acredito que ainda possam ser úteis para compreender a Teoria de Personalidade por nós adotada. ↩︎