Percepção – Teoria das Imagens

Percepção – Teoria das Imagens1

(Lúcia Maria Salvia Coelho)

I. Natureza complexa da percepção

    Devemos distinguir a sensação da percepção. A percepção envolve todo o dinamismo subjetivo, permitindo e caracterizando o contato do indivíduo como o ambiente. Observa Audiffrent: “A percepção supõe o concurso de todas as faculdades cerebrais: o interesse, que determina a atenção, a atividade que mantém e, enfim a observação que é inseparável da elaboração intelectual”.

    Sabemos que toda experiência é mediada conjuntamente por nossas percepções do mundo externo por nossa vida subjetiva. A percepção – tanto das situações ou de objetos definidos e familiares como de objetos e circunstâncias ambíguas – representa, necessariamente, a interação recíproca do indivíduo que percebe e do estímulo percebido.

    1. Polo extremo do processo perceptual

    Teoricamente podemos admitir, como o faz Korchin, que todo percepto esteja compreendido entre dois polos extremos: um onde ocorre um completo “autismo” e outro em que prevalece a determinação do estímulo objetivo. Qualquer ato perceptual reflete graus diversos de participação ao longo deste continuum. Então a percepção pode ser de ordem predominantemente subjetiva, isto é, com maior participação da reação afetiva, incluindo no caso tantos processos patológicos de alucinação, com a ilusão. Pode ainda, consistir em modificações criadoras e normais resultantes da originalidade individual ou da própria ambiguidade do estímulo – ou, ao contrário, resultar de uma verificação objetiva determinada primordialmente pelo estímulo externo. Audiffrent afirma que em casos de excessivo subjetivismo o espírito estimulado intensamente por impulsos poderosos adquire grande atividade. O oposto, isto é, o excesso de objetividade, caracteriza-se por um defeito na espontaneidade do indivíduo, resultando em um predomínio inadequado dos aspectos exteriores sobre as concepções subjetivas. Porém, de qualquer modo, como já havia postulado Comte, em condições normais sempre prevalece a imagem real sobre a imagem idealizada, mesmo considerando que em toda percepção ocorre necessariamente uma repercussão afetiva, indispensável à noção de identidade e de continuidade das experiências em um mesmo indivíduo. Essa diferença entre reação emocional ao estímulo e noção intelectual do mundo externo torna-se menos acentuada à medida que o ser humano amadurece.

    1. Seletividade perceptual

    A natureza seletiva da percepção já havia sido assinalada por Comte e por Audiffrent como condição inerente à natureza humana. Este último autor restabelece que é preciso haver um trabalho de concentração para podermos agrupar certas impressões e mantermo-nos insensíveis ou indiferentes a outras. Por mais espontânea que seja esta operação, ela supõe sempre o concurso da atenção, isto é, do esforço conativo e da relação afetiva de onde emana todo interesse. Assim, em todo trabalho especulativo, refere o autor, a atividade interfere de modo a permitir todas as combinações subjetivas. De outro modo, nenhuma noção seria possível, isto é, a comprovação de um evento interno ou externo, nem seria possível a recordação. A atividade é indispensável para a vontade. Sem o ato mental voluntário nossos aparelhos sensoriais poderiam sem dúvida, ser impressionados, mas não haveria percepção. É o que ocorre a cada instante em relação aos objetos estranhos ou indiferentes à nossa existência. Eles podem atingir os nossos sentidos, mas não deixam nenhum traço, nenhuma passagem, nenhuma lembrança.

    Sullivan, refere-se a este aspecto da percepção como característico e indispensável à saúde mental, denominando-o “desatenção seletiva”. Refere o autor que não podemos estabelecer um contato adequado com os vários eventos concomitantes, ainda que notáveis, mas que não sejam pertinentes ao ato desejado. A eficiência desse processo é verificada pela adequação da exclusão do alheio e da consideração do adequado. Mediante o processo de desatenção seletiva, o indivíduo vai adquirindo a capacidade de hierarquizar os fatos que deverão ser desatendidos em um dado momento. Se não houvesse a “desatenção seletiva”, ou a atenção que decorre da seletividade perceptual (nos termos da teoria aqui adotada), nossa atividade mental seria incoerente e instável. A natureza do processo seletivo na percepção depende em parte dos fatores sociais que estimulam ou imitam o comportamento do indivíduo (padrão de conduta, normas, valores, preconceitos, tabus); das experiências pessoais do indivíduo considerado e das disposições genéticas.

    II. Percepção e “Imagem”

      Em sua teoria das imagens Laffitte distingue no processo perceptual três fases distintas: a impressão sensorial, a imagem sensorial (sensação) e a imagem primária (percepção). A impressão é exercida pelo estímulo externo sobre o indivíduo e captada por um órgão periférico específico. Nos órgãos sensoriais periféricos a impressão ocorre apenas quando os estímulos estiverem dentro da faixa de vibração correspondente ao seu funcionamento fisiológico. Portanto, embora seletiva, a captação do estímulo externo ainda não é espontânea. Em seguida, este impulso é transmitido até os núcleos subcorticais correspondentes, onde ocorre a sensação. A sensação, já seletiva, e espontânea, é percebida como uma modificação súbita no indivíduo; porém, ela é vaga e ainda não associada conscientemente ao objeto exterior. Finalmente a sensação é transmitida para a zona cortical, tornando-se consciente e permitindo o relacionamento da sensação com o estímulo ambiental. Segundo o “Princípio de Audiffrent”, confirmado por Silveira através de suas verificações em anatomia cerebral e em neurofisiologia de cada núcleo sensorial subcortical partem dois feixes de conexão, respectivamente para a região intelectual do cérebro (córtex frontal) e para a região afetiva (córtex parietal alto e occipital). A zona occipital ao receber o estímulo envia o influxo nervoso, através de fibras longas occipito-frontal, até o córtex frontal. O encontro dos dois influxos (geniculado-frontal e occipito-frontal) na zona correspondente ao órgão da observação concreta, resulta na percepção. A percepção é um processo dinâmico originado por um estímulo externo e resultante do trabalho realizado por toda a corticalidade. (ver esquema – “princípio de Audiffrent”).

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      Processos psicofisiológicos da percepção, no caso, visual – Esquema baseado no Princípio de Audiffrent

      E. – estímulo; I. – impressão sensorial; S. – sensação (no caso visual, núcleo geniculado lateral, de localização talâmica; A. – reação afetiva, inconsciente, ante o estímulo, no caso as áreas 17, 18 e 19 de Brodmann, localizadas no córtex occipital (sempre considerando o caso da visão); P. – percepção, áreas 10 e 46 de Brodmann, correspondentes ao órgãos da observação abstrata e concreta; em linhas de pontos-e-traços – vias de condução do núcleo sensorial ao córtex afetivo, no caso, tapete e fibras que vão à área 19; em pontilhado – ligação do núcleo com o córtex frontal, ainda não demonstrada anatomicamente; em linhas interrompidas – vias occipito-frontais.

      Princípio de Audiffrent

      Da percepção resulta uma noção, que corresponde a uma imagem. Imagem e noção são conceitos praticamente equivalentes, mas diversos de percepção. Laffite define imagem como toda impressão que se reproduz em nós, independentemente do objeto externo que primariamente o produziu (Nota – o texto destas páginas foi apenas uma transcrição do livro Epilepsia e Personalidade, págs. 83-86, de Lucia Coelho). Passaremos agora a discutir os esquemas propostos por Aníbal Silveira e referentes a Dinâmica das operações mentais ligadas ao processo perceptual.

      Teoria das Imagens de Laffitte

      Imagem sensorial – núcleo subcortical. Seleção afetiva inconsciente – apenas como vibração do núcleo subcortical correspondente, sem representação mental ao nível cortical.

      Imagens corticais

      1. Imagens que resultam da percepção ao nível da observação concreta. Corresponde à IMAGEM PRIMÁRIA – Resulta do estímulo externo e liga-se de modo mais direto a ele, apesar de já ter sofrido uma modificação. Esta imagem é completa e sintética: reúne em si os vários estímulos do objeto, mas faz prevalecer um aspecto sobre os demais.
        • Nesta imagem Laffite distingue dois níveis:
          1. Imagem acessória – corresponde à ressonância afetiva (parieto-occipital). Funde em si todos os elementos do objeto. Ela é sincrética e inconsciente. Permanece como ressonância afetiva ao nível de instinto.
          2. Imagem principal – resulta do nexo entre afetividade e inteligência (emoção) resultando em uma noção consciente do meio externo, mas ainda impregnada de afetividade. (frontal – órgão da observação concreta) “juízo de valor”.
      1. Através do trabalho mental de abstração, ou de elaboração indutiva e dedutiva, forma-se uma imagem que apenas depende indiretamente do estímulo externo (através da imagem primária) mas nela já se opera uma redução e apenas elementos do estímulo são considerados, portanto ela é uma imagem incompleta e analítica: IMAGEM SUBJETIVA. Resulta do trabalho mental intrapsíquico – Pensamento. Ela permite a associação lógica (juízo de realidade) e a evocação voluntária. Trata-se de uma associação consciente, voluntária, intelectual, embora sofra a influência do nexo afetivo e depende necessariamente do interesse.
      2. Em seguida, passemos de juízo de realidade exterior que corresponde a uma imagem lógica, abstrata, onde o componente afetivo é praticamente desprezível. Esta imagem é denominada SINAL (corresponde ao sinal de 2.ª ordem de Pavlov). O sinal permite a generalização dos conceitos, preside o próprio trabalho de construção mental (raciocínio) e permite a comunicação. Sinal é definido como relação constante entre o estímulo sensorial e a contração correspondente (contração como redução intelectual da imagem e como resultado da musculação). O sinal pode resultar diretamente da contração da imagem primária, sem a formação da imagem subjetiva – como ocorre em crianças pequenas ou em certas formas de criação artística.
      1. Apostila produzida na Faculdade de Medicina de Jundiaí, como complemento ao curso de Psicologia Médica, para o curso de Psicologia Médica para os médicos residentes em Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Jundiaí e para o Curso de Teoria da Personalidade para a Sociedade Rorschach de São Paulo. Composta em agosto de 1978. Já considerada em parte superada por sua autora que já reescreveu o tema sob novas perspectivas. No entanto, eu, Roberto Fazzani redigitalizei e formatei o grupo de apostilas ao qual esta pertence pois poderão ser úteis na compreensão inicial da Teoria Sociológica da Personalidade por nós adotada. ↩︎