As psicoses degenerativas de Kleist

O GRUPO DAS PSICOSES DEGENERATIVAS1

Esse conjunto de psicoses foi descrito por vários autores e, dentre eles, sobretudo por Kleist e seus discípulos. Cada uma delas representa uma entidade nosológica independente, com características psicopatológicas, evolutivas e heredológicas próprias. Têm em comum o aspecto genético e a evolução benigna, isto é, uma tendência constante de haver remissão integral, após cada surto, além de, habitualmente, apresentarem uma duraçao relativamente breve, de apenas algumas semanas. 

As expressões típicas e atípicas não traduzem características intrínsecas dessas psicoses, mas sim ao fato de os autores denominarem de atípicas as psicoses que não se enquadram nos conceitos de esquizofrenia ou P.M.D. 

Na verdade, são tão típicas quanto essas últimas e sua frequência entre as psicoses endógenas é de cerca de 25%. As denominações dessas psicoses procuram traduzir o dinamismo ou o sintoma psicopatológico fundamental e o fazem com clareza. Não cabe aqui pois a crítica que, em geral, se faz aos psiquiatras por usarem linguagem hermética e imprecisa.

Grupo das Psicoses Ciclóides

Sob esse nome Kleist agrupou duas psicoses que apresentam maior parentesco com a P.M.D.: a psicose da motilidade e a psicose confusional. Tendem a incidir mais na juventude e no sexo feminino.

 A psicose da motilidade se caracteriza por uma bipolaridade2 traduzida em duas formas opostas: a forma hipercinética e a forma acinética. A psicose confusional também se caracteriza por uma bipolaridade expressa em duas formas opostas: a forma agitada e a forma estuporosa.

No âmbito da psicose da motilidade, a forma hipercinética apresenta abundância de movimentos, embora sem motivação ou finalidade, movimentos parasitas em curto-circuito, multiplicidade e fugacidade de paracinesias, aparentemente pilhéricas. Há tambem um notável estímulo do trabalho intelectual. O oposto disto ocorre na forma acinética onde há tendência à imobilidade, à inércia, à pobreza de mímica e uma lentificaçao do trabalho mental. As duas fases frequentemente se combinam no mesmo episódio psicótico, sucedendo-se uma à outra. A duração média é de duas a quatro semanas. 

Na psicose confusional o setor atingido é o intelectual, dominando o quadro a incoerência do pensamento, com excitação na forma agitada, e com uma tendência à perplexidade na forma estuporosa. A duração média é também de duas a quatro semanas. 

Kleist estabeleceu um paralelo entre a P.M.D. e as psicoses da motilidade e as confusionais que exprimem alterações quantitativas dos três setores da personalidade, envolvidos com a dinâmica afetiva, com a dinâmica da atividade e com a dinâmica da inteligência.

 No nosso modo de ver, essas psicoses são resultantes do insuficiente desenvolvimento de determinados aparelhos cerebrais, muito provavelmente do tronco cerebral, que por isso seriam lábeis e sensíveis às influências de substâncias orgânicas, provavelmente endócrinas. Nesse sentido, chama a atenção o fato de os sintomas dessas psicoses surgirem também em outras doenças não endógenas como a P.G., a arteriosclerose, as psicoses infecciosas, o que demonstra que as síndromes têm como base dispositivos cerebrais especiais e distintos. Ainda mais: é provável que cada um desses supostos dispositivos cerebrais compreenda duas partes, quanto à funcionalidade: um centro excitador e outro inibidor.

Psicoses da individualidade

Essas formas de psicoses foram, inicialmente, descritas e validadas por Kleist e seus discípulos. Posteriormente, foram compreendidas em outros grupos de psicoses.

Esclarecido esse aspecto, as duas formas que correspondiam a esse grupo, a Confabulose expansiva e a Hipocondríaca também podem alternar-se, porém, menos frequentemente do que nas formas confusionais e nas formas da psicose da motilidade e menos do que na P.M.D.

Na forma denominada de Confabulose expansiva dominam as fabulações, em geral relacionadas com pretensas capacidades do paciente. Apresenta-se sempre com expansividade, lembrando nesse aspecto certos casos de P.G. A forma Hipocondríaca corresponde ao quadro já clássico de depressão e queixas em relação à própria pessoa física, ao seu próprio corpo. 

Dependeriam essas duas formas de psicoses do envolvimento de sistemas cerebrais mais diferenciados, isto é, em relação com o “Eu próprio3”, segundo a acepção de Kleist, daí ele agrupá-las sob a denominação de psicoses da individualidade, colocando-as em plano intermediário entre o grupo paranoide e o cicloide. 

Na forma Confabulose expansiva a exaltação atinge tanto a esfera somática como a subjetiva, enquanto, na forma Hipocondríaca a dinâmica depressiva só atinge a esfera somática.

Psicoses paranoides

Neste grupo estão as psicoses aparentadas com a Paranoia, na acepção de Kraepelin. Ele após ter limitado a paranoia a quadros clínicos crônicos, autóctones, com delírio e com conservação dos outros setores do psiquismo, sem deterioração, passou, no entanto, a admitir formas atenuadas e passageiras. Essas formas de psicose foram bem estudadas por Kleist, que as sistematizou. Com frequência, incidem em indivíduos com constituição hipoparanóica, caracterizada por desconfiança e supervalorização de si próprio. 

Na análise estrutural desses sintomas salienta Kleist que a desconfiança não é propriamente um estado afetivo, nem mesmo no sentido de combinação de correntes afetivas opostas; ela exprime intenções e atitudes, com carga afetiva do indivíduo para com os demais.

A atitude de uma pessoa sã é a de sentir-se ligada a seus semelhantes pela confiança, pela afeição e pelo auxílio recíproco, o que é indispensável para a vida coletiva. O paranoico se sente constantemente lesado pelas pessoas com que convive e, em vista da desconfiança, aversão e hostilidade, tende sempre a passar de suposto perseguido a perseguidor e agressor. 

A intenção e a atitude explícita de desconfiança que mantém o delírio persecutório é a negação da bondade, da tolerância, do auxílio mútuo e da amizade, perturbando assim sua sociabilidade. O paranoico é egoísta e se isola dos que o cercam. 

Desta análise conclui Kleist que a camada da personalidade que se compromete é aquela preposta às inter-relações afetivas e conativas da individualidade. Distúrbios da individualidade, no sentido de sua exaltação ou depressão, explicam, no primeiro caso, o paranoico sensitivo. Estes distúrbios isolados, como vimos, levam à confabulose expansiva e à hipocondria. 

Nos quadros paranoicos o essencial, portanto, são as perturbações na esfera afetiva, fundamentalmente, no setor da sociabilidade. O polo oposto é representado pela paranoia expansiva, em que os pacientes revelam bondade infinita e amor para com seus semelhantes, só supervalorizando sua personalidade no sentido de se julgarem predestinados a grandes missões em relação ao próximo. 

Com esta análise psicopatológica das paranoias típicas tornam-se, também compreensíveis as duas formas atípicas de psicoses paranóides: a Inspiração Aguda e a Alucinose Aguda. Surgem elas bruscamente, com intensa sintomatologia, e são, em geral de curta duração. A personalidade pré-psicótica na inspiração aguda muitas vezes demonstra traços de religiosidade acentuada e interesses altruísticos dominantes. A alucinose aguda é um quadro em tudo semelhante à alucinose alcoólica, porém autóctone.


  1. Texto baseado em aula de Aníbal Silveira, utilizado como referência no âmbito do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Jundiaí (FMJ). Foi selecionado por Roberto Fasano em 2015 e revisto, em 17/01/2023 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flávio Vivacqua, Francisco Drumond de Marcondes de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano Neto. ↩︎
  2. Essa questão da bipolaridade aparece, na atualidade, nas denominadas psicoses bipolares, sem a preocupação de, mesmo que fosse descritivamente, considerar as suas múltiplas expressões: portanto, as psicoses ditas bipolares podem ser relacionáveis com distintas bases fisiogenéticas, não constituindo uma unidade nosológica precisa. ↩︎
  3.  Em alemão: “Siebst Ich” ↩︎