ELABORAÇÃO E LINGUAGEM

ELABORAÇÃO E LINGUAGEM¹

A imagem sensorial resulta da incidência de vários estímulos sensoriais, produzidos simultaneamente pelo mesmo fenômeno ou pelo mesmo ser, porém através de sentidos diferentes.

A dissociação subjetiva desses vários elementos – abstração ou observação abstrata – representa uma modalidade fundamental da elaboração intelectual; daí resulta uma imagem primária, não elaborada. O reagrupamento ulterior dos diferentes fatores dissociados – do qual advém a reconstituição subjetiva do exterior – constitui operação intelectual mais complexa, a observação concreta

Dessa maneira, como o mostra Audiffrent (*Págs. 580 e segs.), a imagem do mundo externo não resulta diretamente do estímulo sensorial. Trata-se, todavia, de imagem primariamente ligada ao exterior; tanto num caso como em outro ocorreu a percepção. O trabalho de elaboração ainda mais diferenciado – raciocínio indutivo e dedutivo – levará essas noções primárias a nova modalidade de imagem, construída mediante os processos de assimilação e diferenciação: imagem subjetiva por experiência. Essas diferentes fases de elaboração, de que resultam os vários tipos de imagem, dependem de órgãos cerebrais distintos.

A comunicação do pensamento, a seu turno, exige novo aperfeiçoamento da imagem, resultante da contração desta, sob o estímulo afetivo. A relação constante entre a sensação e contração correspondente constitui o sinal na acepção de Comte: um aperfeiçoamento lógico ou simbolismo abstrato. Todavia, o sinal pode resultar também da imagem em fase ainda não destituída de carga afetiva – a imagem primária.

Cumpre ainda lembrar que cada estímulo sensorial desencadeia uma série de imagens primárias, uma central, que prevalece, e outras acessórias, suscitadas pela ressonância afetiva. Essas últimas não chegam à percepção normal, pois não se transmitem com a principal à zona intelectual do córtex, mas se detém na zona afetiva correspondente. Para não nos estendermos a respeito desses dinamismos intelectuais, procuramos reuni-los no Quadro I, que alteramos ligeiramente após a 1.ª edição.

A expressão ou linguagem constitui função intelectual específica e exige, pois, um órgão independente. Não somente rege a exteriorização do estado subjetivo, como assiste o trabalho intelectual de elaboração mediante a instituição dos sinais, como mencionado. É isto que permite à mente humana formular os pensamentos abstratos por excelência e chegar às mais arrojadas generalizações, que culminam com a formulação das leis científicas. 

Essa mesma especificidade funcional da linguagem na construção da lógica é admitida recentemente por Hess, que de resto não conhece a doutrina de Comte: “Finalmente, é de importância decisiva para o desenvolvimento de capacidades intelectuais o emprego de símbolos para a objetivação de determinado conteúdos de consciência. A transição que leva do ábaco (Zählrahmen) para o cálculo mental com números abstratos e ainda para o cálculo escrito, demonstra a ligação entre trabalho mental e a manipulação, mediante representantes concretos. Ao mesmo tempo, faz-se conhecer como possível, pelo emprego de símbolos, dominar relações complexas e ampliar a função do intelecto até as regiões que ultrapassam a limitada capacidade humana de representação mental (Vorstellungsvermogen). Exemplos disto são o tratamento e a solução matemática de problemas da Física, bem como o espantoso sucesso na objetivação simbólica de conteúdos da consciência sob o aspecto de fórmulas químicas (págs. 13-14. Grifo no original). 

DiagramaDescrição gerada automaticamente

Para o estabelecimento do trabalho intelectual a este nível concorrem, portanto, como foi lembrado, todos os atributos subjetivos: desde os afetivos básicos – os da individualidade – até as funções conativas e as mentais da elaboração. Entretanto – e justamente por isto – na expressão se refletem graus diversos de elaboração, decorrentes de vários dinamismos cerebrais. Daí a complexidade que caracteriza os distúrbios da linguagem, que se traduz pelas numerosas classificações das afasias e das apraxias, cuja revisão ainda não chegou ao termo, bem como pela patologia da leitura, da escrita e do cálculo. Na verdade, parece-nos que para todas essas ocorrências clínicas o que está em causa é o pensamento abstrato.

Por outro lado, na própria função psíquica linguagem há que se distinguir três níveis de integração. Basta recordar as correlações psicofisiológicas da ontogênese e da filogênese para verificar que a expressão mímica se prende a fatores tão elementares que ela já se manifesta em rudimento nos insetos, aperfeiçoando-se ao máximo nos primatas. A forma verbal depende da interação humana, mas ocorre logo no início da vida extrauterina, ao passo que a forma gráfica – por ser mais abstrata – requer a maturação de zonas mais diferenciadas da personalidade. 

Assim se compreende por que as alterações cerebrais orgânicas possam, com maior facilidade, acarretar afasias de compreensão do tipo da que Wernicke isolou, que das do tipo motor, embora tal peculiaridade seja mascarada pelo déficit concomitante de outras funções intelectuais. Para que a utilização da expressão mímica se impossibilite é mister que as lesões se assestem em áreas ligadas ao dinamismo afetivo mais profundo. Essas distinções ressaltam, com maior nitidez, quando a pesquisa se estende a grande número de pacientes, estudados sob critério rigoroso, como o fez Weisenburg que organizou extensa lista, com a qual estudou 84 afásicos: comparou-lhes o desempenho com a de 150 pacientes não afásicos, porém com lesões cerebrais e a de 85 adultos – provenientes de ambiente hospitalar comparável – indenes sob o aspecto neuropsíquico. E, para só nos referirmos ao tópico em causa, tal investigação revelou aquela proporção decrescente entre os distúrbios da compreensão e os da articulação, e ao mesmo tempo confirmou que as perturbações dos afásicos excedem de muito à simples deficiência de resposta verbal.

Vemos assim que mesmo em referência à linguagem, função intelectual única, é ilusório pretender “localizar” o distúrbio psíquico em um determinado foco de lesão cerebral. Muito menos admissível, à luz da fisiologia cerebral, é pesquisar tais “localizações” no âmbito de operações mentais complexas como aquelas que assinalamos na coluna direita do Quadro I. 

Conforme procuramos resumir ali, atenção, memória e consciência resultam do entrosamento, em diversos graus, de outros processos – não funções simples – mentais, que registramos na 3.ª coluna. Cada uma daquelas atividades complexas subentende, pois, a cooperação das três esferas da personalidade, como frisamos linhas atrás. Além disso, correspondem não a dinamismos cerebrais independentes, mas, ao contrário, a processos intimamente entrelaçados. Da mesma forma que não há consciência sem o complexo fenômeno da atenção, também não ocorre este último senão na vigência daquela.

Essa condição de entrelaçamento harmônico de funções para que se processe qualquer trabalho mental constitui o principal argumento da chamada psicologia holística (Ganzheitspsychologie). Estudando a participação da memória na integração do fenômeno percepção, diz Ehrenstein: “…embora possam ser muito diversos os graus de consciência em que a experiência prévia incide sobre a experiência atual, nunca está em causa a simples adição de recordações a uma percepção; muito mais que isso, ambas as partes se fundem completamente em uma qualidade complexa, íntima e unitária, e na maioria das vezes não se pode separar do que deve ser atribuído às disposições perceptuais inatas aquilo que cabe à aquisição – e que frequentemente permanece inconsciente. A memória participa de cada percepção, sem que se trate de recordação consciente. A memória consciente constitui apenas fração do conjunto de funções mnêmicas (Ganzheitspsychologie).”

Semelhante distinção entre disposições subjetivas inatas – isto é, inerentes à estrutura subjetiva, dizemos nós – e condições resultantes do exercício delas, parece estar claramente definida nas concepções de Hughlings-Jackson, citadas por Denis Wiliams. Williams reporta a Herbert Spencer e, portanto, fazemos notar aqui, à escola de Comte, as concepções jacksonianas que situam o homem em categoria peculiar. “Isto aparece claramente quando distingue consciência subjetiva e consciência objetiva. A primeira, noção de si próprio no sentido mais amplo e mais elevado; a segunda, a do ambiente interpretada pelo próprio individuo” (pág. 76. grifos no original).² 

Atualizando tal distinção e colocando-a em outras bases, Williams interpreta a consciência como estado subjetivo e não como função psíquica e a desdobra em dois componentes: capacidade de reconhecer (awareness) e capacidade de reagir (reactivity). Ademais, introduziu nesse conceito o aspecto dinâmico e localizatório, principalmente, posto em evidência pelas pesquisas de Magoun³. A primeira estaria ligada ao dinamismo cortical, esta outra ao tronco cerebral: “O paciente perdeu a capacidade de reagir (reactivity) a modificações do ambiente, mas reagirá parcialmente se a iniciativa for propiciada pelo comando, e mantém o reconhecimento (awareness) e a atividade reflexa. Em termos deste artigo, o estado de consciência do paciente é perturbado pela redução global da capacidade de reagir (reactivity) como conservação da capacidade de reconhecer (awareness), o que sugere uma lesão limitada ao tegmento central do cérebro médio”. (pág. 81-82. parênteses dessa transcrição). 

Na nossa opinião, não é adequado “localizar” dinamismos assim vagos e gerais, um no tronco cerebral, outro em todo córtex e realmente nada tem isso a ver com a “localização” da consciência. Todavia, é aceitável e real o aspecto dinâmico, isto é, a verificação de que estruturas diencefálicas transmitem o estímulo para toda a atividade cortical. Compreende-se isto, neurofisiológicamente, uma vez que tais estruturas subcorticais se integram no dinamismo geral de ativação a um tempo metabólica e psíquica.

Temos como duplamente falseada – pelo conceito vago e pela interpretação errônea de fatos anátomo-clínicos – a conclusão de Alford: “Sumariando, pois o que foi evidenciado neste capítulo, aparece que o toldamento de consciência ou a demência, ou ambas, só são deduzidas por lesões prevalentemente destrutivas quando estas se localizam na região do tálamo esquerdo. E considerando toda a evidência sobre a localização de funções mentais, há indicações de que todas elas ou quase todas, aí estão da mesma forma reunidas e localizadas.”

Tal maneira de localizar funções psíquicas – mesmo que estas se considerassem em sentido estrito – fora do córtex encefálico representa grave desvio à luz da neurofisiologia, pois já se tornou anacrônica desde o século XIX, ao surgir a doutrina de Gall. Tal doutrina atribuía as funções mentais ao manto cortical, conforme acentua judiciosamente Berger: “Franz Joseph Gall, o fundador da Frenologia, tantas vezes injuriado, era excelente anatomista do cérebro e instituiu conhecimentos precisos em fisiologia e também na clínica das doenças cerebrais. Demonstrou ele, baseado nos fatos clínicos, que não é simplesmente o cérebro todo, porém predominantemente a crosta cinzenta do cérebro denominada córtex cerebral, o que constitui o local que se relaciona com os processos mentais. Já com essa verificação, que todas as pesquisas ulteriores têm unanimemente confirmado, prestou imorredouro serviço para nossa ciência”.

Retomando o tema das correlações funcionais apresentadas no Quadro I, é preciso notar que a percepção só desperta interesse do indivíduo – e, portanto, só determina a Atenção quando associada ao processo de simbolização. São muito expressivas a esse respeito duas experiências citadas por Frances:

Riesen criou dois chimpanzés até a idade de dezesseis meses em completa escuridão, e os mergulhou de repente em ambiente luminoso. Pode anotar neles a ausência de sinais de atividade visual, exceto o reflexo pupilar e o nistagmo. Todos os componentes ligados à percepção visual – reconhecimento de objetos, da alimentação, piscamento desencadeado pelo deslocamento de objetos diante dos olhos – estavam ausentes. Hayes realizou a contraprova dessas observações, com um chimpanzé que educou no próprio lar. Não só o jovem animal se orientava quanto aos objetos e a lugares, mas se mostrava capaz, aos três anos de idade, de reconhecer a significação de imagens: vendo numa revista a figura de um relógio, aplicou aí o ouvido; no caso de um frasco de bebida levou o dono à cozinha e designou o móvel em que se encontravam os vinhos”. 

¹Texto baseado em aula sem referência de data ou de local. Deve compor um conjunto com a aula Sensação e Percepção. Revista em 09/05/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano.
²John Hughlings Jackson, (4 de abril de 1835 – 7 de outubro de 1911) foi um neurologista inglês. Ele é mais conhecido por suas pesquisas sobre epilepsia. Uma parte importante do seu trabalho dizia respeito à organização evolutiva do sistema nervoso, para a qual propôs três níveis: um inferior, um médio e um superior. No nível mais baixo, os movimentos deveriam ser representados na sua forma menos complexa; esses centros ficam na medula e na medula espinhal. O nível médio consiste na chamada área motora do córtex, e os níveis motores mais elevados são encontrados na área pré-frontal. Ele influenciou mais os pesquisadores continentais do que os seus conterrâneos.
³Horace Winchell Magoun (23 de junho de 1907 – 6 de março de 1991) foi um pesquisador médico. Graduou-se em Medicina em 1931. Em 1948, em colaboração com o neurofisiologista italiano Giuseppe Moruzzi, Magoun identificou o centro cerebral responsável pelo estado de sono: a estimulação elétrica do tronco cerebral, por Moruzzi e Magoun encontrou uma ligação entre a estação cerebelo e o córtex motor, produzindo ondas EEG típicas de um estado de intensa supervisão. Com investigações mais aprofundadas mostraram que tanto a estimulação cerebral profunda desta estrutura, que chamaram de “formação reticular”, causou o despertar do animal, enquanto sua destruição o fez cair em coma permanente.[1] Com este guia “clássico”. São considerados “clássicos” aqueles trabalhos que foram citados em mais de 400 artigos científicos e Moruzzi Magoun lançou as bases para o estudo da fisiologia do sono. Magoun se interessou pela neuroendocrinologia, mostrando, entre outras coisas, o importante papel do ‘hipotálamo’. Em 1963 publicou um ensaio (O cérebro desperto) que resumia seu trabalho sobre a neuroendocrinologia. (https://en.wikipedia.org/wiki/Horace_Winchell_Magoun).