Contato Intelectual com a realidadeFunções da Inteligência

Contato Intelectual com a realidade
Funções da Inteligência
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(Lúcia Maria Salvia Coelho)

  1. Concepção de inteligência:

Esfera da personalidade que compreende um conjunto de funções subjetivas que promovem o ajustamento harmônico do indivíduo à realidade objetiva. O resultado do trabalho intelectual corresponde a um processo contínuo de contato eferente do indivíduo com o ambiente, isto é, permite a captação dos dados externos e a expressão de nossa elaboração pessoal relativa aos fenômenos ambientais. A inteligência é essencialmente uma adaptação de ordem conativa mais complexa e superior e que depende da colaboração das funções conativas e das disposições afetivas e a ao mesmo tempo orienta e rege estes dois outros setores da personalidade. 

A afetividade estimula o trabalho intelectual, fornecendo interesse e a energia necessária para que o indivíduo se volte para o ambiente onde busca não apenas os meios necessários para a satisfação de seus impulsos instintivos, mas também as condições para o seu próprio aperfeiçoamento e para o progresso social. A necessidade de conhecer e de modificar as condições da realidade corresponde a um impulso natural do homem, cujas raízes se encontram nas funções afetivas da sociabilidade. Baseado nesta necessidade natural ao homem, Augusto Comte examina as fases progressivas do conhecimento pelas quais vem atravessando a Humanidade (Lei dos três Estados: fetichista, metafísico e positivo).

Além disso, é o estímulo conativo que permite a direção e a manutenção da atenção – processo este indispensável tanto para a fase de seleção dos dados externos (que inicia o trabalho intelectual) quanto para a concentração necessária à reflexão.

Mas como já dissemos, a inteligência não apenas sofre o estímulo das funções afetivas e das conativas, como também as preside. Assim, a cada momento, o ser humano adquire uma noção intelectual do ambiente, esta noção repercute sobre seus afetos primários (individualidade) e sobre seus sentimentos mais diferenciados (sociabilidade). Este processo contínuo de ação da inteligência sobre a afetividade corresponde ao que denominamos “emoção”. Graças à emoção, torna-se possível o aprendizado e o estabelecimento de nexos cada vez mais complexos entre o indivíduo e o ambiente. Além disso, a inteligência é indispensável para esclarecer a atividade, tornando cada vez mais adequada a reação conativa aos estímulos externos.

Os modos de aferir a inteligência dependem do conhecimento de suas funções básicas, subjetivas e, em seguida, da observação do resultado do trabalho mental executado por cada indivíduo segundo as tarefas ou as situações que lhe são propostas. Quando apenas se leva em conta o resultado global e manifesto da atividade intelectual, pode-se utilizar os denominados testes de inteligência, cuja finalidade consiste apenas em aferir a capacidade do indivíduo em relação à população média. Os níveis mais profundos e complexos deste setor da personalidade só poderão ser examinados através das entrevistas psicológicas e do método de Rorschach.

  1. Funções intelectuais
  1. Observação – fase inicial de captação dos dados externos e que resulta da percepção, processo realizado através dos órgãos sensoriais. A observação se processa em dois níveis:
    1. Observação concreta: permite a captação mais direta e imediata dos dados externos. Mais ligada à atividade prática, ela se refere aos seres; é de ordem sintética e assim é mais limitada no tempo e no espaço, permitindo construções intelectuais mais restritas: classificação por comparação dos dados do mundo externo.
    2. Observação abstrata: de ordem mais analítica, esta função permite a apreciação dos fenômenos independentes dos seres concretos, onde eles ocorrem (ex. cor, movimento). Este tipo de observação permite a generalização e, em consequência, a formulação de concepções mais complexas sobre nossas experiências.
  2. Elaboração – fase mais diferenciada do trabalho mental e mais independente dos dados externos imediatos. A elaboração supõe um processo intrapsíquico de maior complexidade: dela resulta não apenas uma “noção”, mas uma ideia ou pensamento. Nesta fase de trabalho mental nós julgamos os estímulos captados. A elaboração também é feita em dois níveis:
    1. Elaboração indutiva: reunimos todos os dados captados através da observação concreta e por um processo de comparação das analogias e dos contrastes verificados nós chegamos à conclusão, a uma nova ideia sobre os fatos que foram assim sistematizados.
    2. Elaboração dedutiva: neste nível do trabalho mental, nós abstraímos a noção particular que teríamos de um ser ou de um objeto (e que se basearia na observação concreta) e passamos a analisar os fenômenos segundo a relação dinâmica entre eles, ou seja, segundo o grau de coordenação, de coerência, de sucessão. Verificamos, então, as consequências destas diferentes combinações entre os fenômenos. Neste caso, a participação da inteligência é de ordem mais ativa e original, não se limitando apenas aos dados imediatos da realidade. A elaboração dedutiva rege a observação abstrata e permite a concepção de leis gerais que nos levam a prever o resultado futuro da manifestação de fenômenos específicos.

Como vimos, a observação abstrata e a elaboração dedutiva são de ordem superior, apresentando maior complexidade e menor participação da influência afetiva. O raciocínio lógico, que como veremos é feito através de sinais (processo de simbolização) é de ordem abstrata, e, portanto, não se liga diretamente aos dados concretos, imediatos de nossa experiência. A partir deste tipo de raciocínio, o cientista poderá conceber hipóteses através de atributos potencialmente definidos. Por exemplo, o físico diz: “Vamos supor que exista uma partícula nuclear, cuja órbita seja uma espiral” e a partir desta concepção abstrata ele irá desenvolver uma série de experimentos que recombinarão de modo diverso de fatores por ele considerados antes da formulação desta hipótese. Tal experimento poderá ou não confirma o raciocínio do físico. 

Assim, neste sentido, o raciocínio abstrato é mais isolado da realidade concreta e é mais independente das condições sociais e dos sentimentos experimentados pelo cientista. Tais funções estão mais ligadas diretamente à afetividade egoística, à “destruição” e à “coragem” (associadas à perseverança).

Por outro lado, a observação concreta e a indução sofrem maior influência dos sentimentos e acham-se mais ligadas à realidade imediata e concreta. O raciocínio da criança e do de indivíduos cuja capacidade de abstração for mais reduzida não se regem por uma lógica (lógica de sinais), necessariamente impessoal, mas dependem de uma lógica dos sentimentos, diretamente ligada ao “interesse” afetivo. Em consequência, a adaptação intelectual ao ambiente é “de natureza concreta e pautada nas normas culturais” (“construção” – “prudência” – “observação concreta” e “elaboração indutiva”) (Nota: nesta fase, a criança já deverá ter desenvolvido os sentimentos sociais de apego e veneração). 

  1. Comunicação – esta função intelectual é a mais complexa e indispensável ao trabalho intelectual, pois a integração do indivíduo à realidade é que supõe necessariamente a modificação progressiva do indivíduo de do ambiente. Não depende apenas da observação dos seres ou dos fenômenos, nem tampouco da elaboração indutiva ou dedutiva dos dados assimilados, mas o trabalho intelectual deve ser passível de ser comunicado aos demais membros da sociedade. A comunicação é indispensável para o progresso da Humanidade em todos os setores de sua atividade. A comunicação não apenas permite a exteriorização do resultado da elaboração intelectual, como ela própria orienta, preside e rege os aspectos a serem observados e a coordenação do pensamento, necessariamente realizado a partir de imagens ou de sinais. A função da comunicação se faz em três níveis:
    1. Mímica: a mímica, examinada tanto à luz da filogênese quanto da ontogênese, liga-se a fatores tão elementares da personalidade que já se manifesta, de modo rudimentar, nos insetos, aperfeiçoando-se ao máximo entre os primatas.

No caso do ser humano, a expressão mímica surge como o primeiro modo de comunicação de suas necessidades vegetativas. A criança aprende a comunicar-se com os demais através da mímica. Ex.; choro de medo ou de desagrado ao ver uma pessoa desconhecida. Nesta fase de seu desenvolvimento, a criança rege globalmente, devido a uma ligação mais intensa com as sensações do próprio corpo, inclusive as de ordem visceral. Até mesmo no sono, ela expressa esta globalidade, reativa, ela adormece mais rapidamente que o adulto como reação imediata esta necessidade nutritiva de repouso.

A mímica compreende dois aspectos: a mímica fisionômica e a gesticulação.

A mímica fisionômica traduz uma reação vegetativa básica, isto é, ela exprime diretamente as necessidades instintivas ou as reações de satisfação (início da sociabilidade em nível de apego).

A gesticulação envolve o esquema motor, a sensação e a expressão muscular. Ela resulta da participação conativa além da reação afetiva. A utilização do gesto como meio de expressão já supõe, portanto, o amadurecimento conativo – a coordenação motora. Como observa Piaget, a criança constrói uma “imagem motora” da realidade que antecede a imagem propriamente intelectual.

A este nível da comunicação – fisionômica ou por gestos – a ligação interpessoal se faz de modo direto, isto é, de pessoa para pessoa.

Em fases mais avançadas do desenvolvimento individual, a mímica pode ser utilizada como um modo de expressão abstrato. Por exemplo, o teatro. Outro exemplo é o psicodrama, onde a ideia abstrata encontra sua expressão mais intensa na gesticulação.

  1. Verbal: modo de comunicação onde ocorre maior participação das funções conativas. Todo nosso trabalho mental de indução e de dedução implica na utilização da expressão verbal. A expressão verbal compreende dois aspectos: um articulado e outro gráfico.

A criança aprende a falar inicialmente por imitação: ela articula sons e os associa diretamente a objetos ou a sentimentos e intenções. Dada a ligação afetiva estabelecida com a família, os adultos compreendem tal comunicação e reagem de acordo com a pretensão da criança. Nesta fase de imitação, o trabalho mental é regido pela observação concreta e, em menor grau, pela elaboração indutiva. Ela inda não utiliza a palavra como modo de expressão abstrata. Com o desenvolvimento da conação, a criança já se mostra interessada em expressar-se através de desenhos e, mais tarde, ela começa a aprender a associar os sons ao uso de símbolos gráficos: ela escreve.

A comunicação verbal já permite a comunicação mais ampla com um número maior de pessoas e que pode ser feita à distância.

  1. Abstrata: corresponde à comunicação mais geral, independentemente do tempo e do espaço. Tal comunicação é regida pela lógica formal e é a mais despojada de conotação afetiva. Ex.: a comunicação de ideias feita através de expressões matemáticas. O raciocínio abstrato é feito através de sinais e de conceitos operatórios – como, por exemplo, modelos científicos. Tal trabalho mental não se baseia em imagens concretas (ex: ideias de Deus com fisionomia e com comportamento humano), mas de concepções abstratas de ordem mais geral e que permitem uma comunicação universal através do tempo e do espaço. 

Tais noções abstratas não são necessariamente obtidas a partir de concepções positivas e científicas, pois que elas podem estar ligadas a criações artísticas ou teorias filosóficas. Entretanto, nesse caso, ocorre maior participação da afetividade neste meio de expressão. Através das construções abstratas nós podemos dominar dados da realidade cada vez mais complexos e atingir as regiões que ultrapassam a limitada capacidade humana de representação mental (criatividade e imaginação)

Para a efetuação de todo trabalho mental a este nível concorrem todas as funções subjetivas: desde as afetivas básicas até as funções intelectuais de elaboração

E, naturalmente, o resultado deste trabalho provocará modificações e ressonância em todo dinamismo da personalidade. 

  1. Apostila produzida na Faculdade de Medicina de Jundiaí, como complemento ao curso de Psicologia Médica, para o curso de Psicologia Médica para os médicos residentes em Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Jundiaí e para o Curso de Teoria da Personalidade para a Sociedade Rorschach de São Paulo. Composta em agosto de 1978. Já considerada em parte superada por sua autora que já reescreveu o tema sob novas perspectivas. No entanto, eu, Roberto Fazzani redigitalizei e formatei o grupo de apostilas ao qual esta pertence pois poderão ser úteis na compreensão inicial da Teoria Sociológica da Personalidade por nós adotada. ↩︎