Sintomas e quadro mórbido em psiquiatria

PATOGÊNESE DOS SINTOMAS E QUADRO MÓRBIDO EM PSIQUIATRIA1

Nossa concepção de psicopatologia não corresponde exatamente à concepção de outros autores. Em primeiro lugar, a psicopatologia como entendemos não se confunde nem com a Psicologia Anormal ou Psicologia Patológica, nem com a Psiquiatria. 

Na Psiquiatria temos a descrição do paciente, estudo, portanto, individual; o paciente é compreendido como um todo, com uma série de problemas gerais, particulares, especiais de personalidade e de ambiente. 

Na Psicologia Anormal estudam-se os quadros mórbidos psicológicos que não chegam a constituir uma psicose, mas que são anormalidades compreendidas como um todo no funcionamento psicológico do indivíduo.

Denominamos Psicopatologia o campo de estudo dos dinamismos mórbidos, que dão resultado a sintomas ou quadros clínicos. Logo, não se trata de descrição, nem de estudo de conjunto individual: é o estudo mais geral dos dinamismos patogênicos. 

Devemos explicar, portanto, em que consiste a patogênese. Quando falamos em patogênese não referimos à genética patológica, não cuidamos das funções devidas aos dinamismos genéticos que se tornam patológicos. Isto é apenas um aspecto da patogênese, a qual tem dois sentidos: a patogênese dos sintomas e dos quadros clínicos, que nem sempre são psicoses, são quadros mórbidos, porque tanto num caso como noutro, sintomas ou quadro clínico subentende apenas alterações de setores da personalidade. 

Dessa forma, distinguimos sintomas mórbidos, quadro mórbido e doença mental. Há, portanto, três níveis de amplitude que devem ser considerados na patogênese dos quadros. 

Quando apenas os sintomas são anormais não significa que o indivíduo seja anormal. Quando os sintomas são gerais, o conjunto de desvios tão acentuados constituem o quadro clínico. Se um quadro é anormal, isto não quer dizer que o indivíduo seja um psicótico. A doença mental é um conceito mais amplo ainda, mas que configura uma perda de relação com a realidade exterior. Relação num certo sentido pois pode o indivíduo não se subordinar à realidade exterior, mas perfeitamente estar íntegro mentalmente. Exemplo: vamos supor um fanático; este pode estar ligado com a realidade em todos os aspectos, menos no campo que se relaciona com a sua crença. Se isso ultrapassar a faixa de variação admissível, teremos uma ideia fanática. 

Neurose é uma condição anormal na qual o indivíduo não subordina uma certa condição à realidade, é uma certa maneira de sentir, na qual ele subordina a concepção à realidade exterior. Portanto, o neurótico não é um doente mental.  O psicótico o é, mas há a possibilidade de o indivíduo ser um psicótico e estar ligado à realidade exterior de muitas maneiras, que não são adequadas; mas ele tem consciência disto. Portanto, reger-se pelas normas de toda gente não é a mesma coisa que aceitar estas mesmas normas. A epilepsia e a oligofrenia não são doenças mentais. A doença mental subentende uma ruptura do equilíbrio interior (da harmonia mental). O oligofrênico não chegou a ter uma capacidade mental de adaptar-se à realidade exterior. Assim, ele pode agir em desacordo com a média, pois não terá capacidade adquirida de assimilar os moldes do ambiente. Nesse caso teremos não a doença mental, mas uma condição mental mórbida ou um quadro mental anômalo. 

Psicopatologia são os dinamismos mórbidos, especificamente dinamismos patogênicos, que correspondem às ocorrências de sintomas clínicos (psiquiátricos no caso), de quadro clínico (quando se trata de um conjunto mais geral) ou de uma condição mórbida ou ainda de um quadro mórbido, se for mais ampla essa alteração de contato com a realidade. Quando falamos em patogênese, temos dois aspectos a considerar: primeiro o aspecto mais geral de todos, que está ligado ao dinamismo genético, isto é, a convergência ou divergência da carga genética que caracteriza o indivíduo; segundo a patogênese que está ligada com a estrutura cerebral. Portanto, são dois aspectos da patologia: a esfera da personalidade que é atingida de preferência no quadro clínico e os sintomas cerebrais que estão envolvidos no processo mórbido. 

A patogênese, é dividida em dois tipos diversos (sempre referido aos dinamismos mórbidos); temos: na esfera da personalidade, aquele aspecto geral que dá o desvio global da personalidade ou, dentro da esfera atingida, os sintomas cerebrais que exprimem o quadro clínico. Se não considerarmos esse aspecto, teremos dificuldades depois em considerar, porque um sintoma mórbido às vezes apenas revela um dinamismo mórbido ou então constitui uma alteração global (que constitui um quadro clínico realmente). Portanto, será necessário distinguir os sintomas clínicos que decorrem de sistemas cerebrais e o quadro clínico. Assim, podemos ver alterações da esfera da personalidade que se traduzem predominantemente no quadro clínico (esfera afetiva, conativa e intelectual) mas, por mecanismos diversos. Isto vai dar o colorido geral do quadro clínico. Por isso que na psiquiatria mais que na clínica geral temos o diagnóstico mental representando uma abstração. 

Quando falamos de uma entidade mórbida, estamos falando de uma entidade abstrata. Se isso é verdadeiro na clínica, muito mais será na psiquiatria. Exemplo: pneumonia, o termo em si não traduz nada, pois pode haver uma série de causas desencadeantes, levando a uma evolução diferente, o indivíduo pode ter a pneumonia e mesmo com todo o tratamento adequado, pode chegar a fase de hepatização e chega à cura que pode ser rápida ou levar um certo tempo. Assim, quando falamos em pneumonia estamos nos referindo ao conjunto de fatores gerais que caracterizam o quadro mórbido, não a uma entidade que exista realmente.

Na psiquiatria, além disto, temos de levar em conta o fator da individualidade e das relações interpessoais, além do fator abstração (ou seja, a depuração daqueles elementos que não levam ao raciocínio, que não caracterizam o paciente) e prestar atenção àqueles fatos característicos, que nos permitem identificar uma série de sintomas. Além disso, temos de levar em conta o fator interpessoal, as relações do indivíduo com o ambiente, a evolução do indivíduo, com os elementos que vão transparecer no quadro clínico. Outro aspecto é o somático que não pode ser deixado de lado, quando considerarmos o paciente. Por conseguinte, se falarmos em esquizofrenia, estamos utilizando um conceito abstrato, isto é, estamos pondo à parte uma porção de fatores que não seriam ligados diretamente com o quadro que apreciamos; levamos em conta características gerais que identificamos com aquilo que chamamos esquizofrenia. Mas quando vamos tratar do paciente, isto não diz nada. Temos que saber em que condições se apresenta o paciente, e quais são os elementos que nos permitam ver o prognóstico, se poderá ser ou não recuperável para a vida comunitária, até que ponto pode ser reintegrado socialmente. Há uma série de fatores, portanto, que não estão ligados com a esquizofrenia, mas com a pessoa do esquizofrênico. Temos que considerar se ele teve uma lesão cerebral, sendo esquizofrênico ou se tem uma lesão hepática ou renal ou quaisquer outras alterações no metabolismo, de tal forma que possam interferir no organismo. Portanto, temos uma série de considerações a fazer, se quisermos, na psiquiatria, encarar um paciente, qualquer que seja seu diagnóstico, do ponto de vista individual. Mas se falarmos em esquizofrenia, fazemos uma abstração desses caracteres e nos situamos apenas num aspecto dinâmico, que em condições gerais em que o dinamismo psicológico ou psicopatológico estão em jogo para produzir este quadro que chamamos de esquizofrenia. É necessário, por conseguinte, situar primeiramente os dinamismos patogênicos, não só em função da esfera da personalidade ou dos sistemas psíquicos que traduzem os sintomas (e, portanto, o quadro clínico em si), mas também a relação entre esses elementos, abstratos, psicológicos, subjetivos e o substrato cerebral, isto é, a estrutura e dinamismos cerebrais. Ora, a estrutura cerebral, nos vai dar a expressão do quadro clínico, mas a compreensão do mesmo só pode ser tomada no conjunto. Portanto, levamos em conta o dinamismo que pode ser neurofisiológico (demonstrável) ou subjetivo. Tudo isto está ligado com o indivíduo considerado. 

Portanto, psicopatologia e psiquiatria são questões distintas, mas temos que levar em consideração que os dinamismos psicopatológicos são indispensáveis para conhecer a psiquiatria. Este modo de encarar a psicopatologia é encontrado nos trabalhos recentes de K. Taylor. Essa é a base para fazer uma psiquiatria correta, pois não podemos dar uma assistência completa ao paciente sem analisarmos os dinamismos que levam ao quadro clínico. Esses dinamismos estão ligados com a parte genética geral, com relações genéticas específicas e com zonas cerebrais (os dinamismos cerebrais) e por outro lado com os psicológicos (subjetivos) que estão em jogo no caso.

Temos que considerar os dinamismos mórbidos que se referem aos sintomas psiquiátricos, os que se referem aos quadros clínicos e os que se referem às condições mórbidas. Essa distinção nos vai permitir que compreendamos porque um diagnóstico de um paciente, que esteja em agitação psicomotora intensa possa ser uma esquizofrenia, psicose maníaco depressiva, psicose benigna de Kleist, um quadro de agitação senil, uma reação motora psicogenica, ou uma série de implicações clínicas ou diagnósticas que não são apenas o quadro clínico. 

Os sintomas que compõem o quadro clínico podem ser estudados como expressão da interação dos vários sistemas psíquicos. O quadro clínico corresponde às alterações desses sistemas dentro da esfera da personalidade que é atingida de preferência, e as condições mórbidas correspondem aos fatores mais profundos que justificam o diagnóstico encontrado. Com isto dizemos que podemos considerar a psiquiatria quando nos baseamos no diagnóstico diferencial. No nosso modo de ver, há uma correlação estrita entre os sintomas psíquicos e cerebrais. As várias esferas da personalidade são correlatas entre si embora uma delas confere o colorido fundamental ao quadro. Ribot mostrou que a psicopatologia é o melhor meio de se investigar o dinamismo psicológico normal. Isto porque traz dissociações que a experimentação não nos poderia dar. Mas, vimos que a psicopatologia é o estudo dos dinamismos, por isso temos dois programas: um geral, em que estudamos o quadro em si e outro que é o quadro mórbido, ambos quanto à sua gênese. Exemplo: porque a esquizofrenia pode-se apresentar sob a forma catatônica, hebefrênica ou paranoide? Para esclarecer isto, é preciso entrar nos dinamismos de cada um destes quadros, estudando-os e comparando-os com outros quadros análogos. Sem essa revisão, de todos os dinamismos gerais que produzem os quadros clínicos, não poderíamos entrar nos dinamismos dos vários quadros diagnósticos. Por isso não podemos diagnosticar uma esquizofrenia apenas pela manifestação de desagregação, que pode ser simplesmente um automatismo mental. Não podemos, portanto, nos basear para fins terapêuticos nos conceitos gerais e vagos da esquizofrenia, psicose maníaco depressiva e epilepsia, mas temos que nos basear no quadro clínico. Para a terapêutica adequada devemos observar os problemas (ansiedade, delírio, alucinação) que estão levando o paciente para fora da faixa média normal, verificando também a causa destes sintomas, os dinamismos implícitos.

Temos, portanto, para resumir, sintomas, quadros clínicos e condições mórbidas. Os sintomas são tomados isolados ou em grupos pela dinâmica neles implícita. No quadro mórbido observamos a prevalência de um sintoma sobre os outros. Exemplo: numa confusão mental, esta pode estar ligada a uma série de fatores que temos que levar em conta ao estudarmos o quadro mórbido. Pode ser uma confusão porque o paciente não compreende o que falamos. Neste caso o paciente pode ter alteração no sentido de apreender a realidade. Pode ser um caso de parafasia e a confusão se faz então num sentido de apreender o que dizemos somente, podendo estar ligada a um tumor cerebral. Portanto, o termo confusão não quer dizer nada. A parafasia pode ser um aspecto puramente dinâmico da estrutura cerebral anormal (atrofia, tumor), portanto, é necessário localizar a zona cerebral envolvida. O quadro clínico não está implícito no sintoma. 

A terapêutica deve tomar em consideração todos esses elementos. Finalmente, temos que estabelecer o diagnóstico diferencial e para isto é necessário conhecermos a psicopatologia.

O quadro clínico pode não somente estar ligado a condições diversas especiais, como corresponder a vários grupos diversos. 

Temos um grupo que pode ser uma condição mórbida geral que não corresponde a uma doença mental. Podemos ter doenças mentais constitucionais que são aquelas que decorrem do desvio de conjunto da personalidade ligada com as características morfológicas e psíquicas, que caracterizam a constituição do indivíduo.

Temos a doença mental constitucional e marginal, no sentido de Kleist, que são, respectivamente, as psicoses progressivas e as benignas. Finalmente temos as condições mórbidas que são apenas ocasionais. 

  1. Texto organizado por Roberto Fasano, em 2003, a partir de aula de Aníbal Silveira, proferida em 7 de junho de 1977, sem referência a local e de quem a compilou. Revisto em 19/09/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano. ↩︎