FUNÇÕES DA CONAÇÃO
Regência da ação explícita e relações para com a afetividade e a inteligência¹
A atividade, na acepção de Comte, constitui o setor da personalidade que regula a ação explícita. É fundamental ressaltar que essa regência não se refere aos atos do indivíduo adulto, como muitos autores ainda a entendem, porém, a toda a atividade, desde os primórdios da vida intrauterina. O amadurecimento desse setor, através da musculação, já se revela mesmo durante o período fetal. Também não se confunde com os atos humanos: por isso designamos como ação explícita.
Realmente nos atos humanos, mesmo nos mais simples e desde os primeiros esboços na evolução individual, há que se distinguir a execução por um lado, e por outro, as disposições internas: a primeira constitui apenas a objetivação, a qual depende do aparato periférico da motilidade, preensão e locomoção. As disposições internas representam os fatores subjetivos vinculados à estrutura encefálica. Nesse aspecto subjetivo é necessário distinguir: (a) elementos extrínsecos, que são os móveis afetivos, ou motivações que impelem à ação; e (b) elementos intrínsecos, que constituem a esfera da atividade, objeto da presente aula.
A iniciativa para a ação é a disposição exteriorizada que melhor corresponde ao estado subjetivo desta esfera, a atividade; mas igualmente não se confunde com esta, pois envolve fatores extrínsecos, como o grau de amadurecimento da personalidade. Assim, em relação a um mesmo instinto que impulsiona o comportamento de um indivíduo, por exemplo, o de nutrição, a atividade explícita correspondente, variará enormemente em função do estado do desenvolvimento.
Exemplificando: a fome – sensação resultante de carência metabólica dos tecidos – mobiliza esse instinto e causa, nos primeiros momentos da vida, o pranto como expressão de angústia, logo, porém, a experiência leva a criança, nas mesmas circunstâncias, ao pranto intencional, não mais reflexo, mas como recurso para obter a alimentação. Ultrapassada a fase de passividade, em vez de chorar, a criança procura o alimento. No estágio adulto, não só o indivíduo procura o alimento, mas o prepara e o armazena, inclusive, utilizando no plano social, essa necessidade coletiva, como fonte de produção industrial e de comércio.
Todas as escolas psicológicas reconheceram a necessidade de isolar esse setor da personalidade: apenas criaram um conceito, há muito já superado, mas ainda em voga, de volição ou de atos voluntários, na acepção de atos conscientes. Bastam três exemplos, para demonstrar o quão ilusória é essa concepção: (a) a maioria dos gestos que integram os atos conscientes, andar, pegar objetos, nadar, executar música ao piano ou em instrumentos de corda, faz-se sem que o indivíduo tenha consciência dos movimentos; (b) na hipnose, a sugestão de que o paciente deva executar uma ação quando já estiver desperto, dizer determinada palavra ou determinado som (sugestão pós-hipnótica), não apenas a atividade se efetuará, como ainda o sujeito dará uma explicação lógica, afirmando-a como ato voluntário; (c) a estimulação elétrica durante uma intervenção no cérebro, de uma zona cortical motora correspondente à representação do braço, em um paciente não anestesiado, provocou movimentos de espreguiçar. Perguntando-se ao paciente o que ocorria, este imediatamente explicou que se espreguiçara porque estava com o braço cansado.
Segundo a orientação doutrinária que adotamos, a atividade constitui setor intermediário entre a afetividade, que motiva as ações e o trabalho intelectual e a inteligência que as orienta. Sem a participação dessa esfera da personalidade, a própria produção mental seria impossível, tanto quanto a ação. E assim, sofre a influência da estrutura afetiva, da singularidade afetiva de cada pessoa, isto é, das variações individuais, dentro da organização geral própria da espécie humana, da mesma forma como as funções intelectuais se diferenciam em cada indivíduo ou em cada situação.
Além dessas duas influências extrínsecas à atividade, o resultado do exercício desta, a ação explícita, varia em função da orientação intrínseca desse setor. Na realidade essa não consiste numa função única, mas em grupo ternário de funções. Há que se distinguir aí: (a) a firmeza, ou perseverança, que mantém o ato, a disposição para atuar ou o estado subjetivo; e a atividade propriamente, que oferece dois polos opostos: (b) a coragem, que estimula a ação, a atividade e o estado psíquico, e (c) a prudência, que a modera, a refreia ou a inibe. Assim as variações individuais no arranjo desse setor subjetivo, além da diversidade nas correlações de forças afetivas, variações extrínsecas à atividade, vão se refletir em conjunto na resultante exteriorizada como comportamento do indivíduo. Este traduz desse modo, o caráter de cada um. E como é a atividade o setor que confere ao indivíduo essa característica pessoal, chamou Comte, igualmente, de caráter a essa esfera psíquica.
Dentre os vários autores contemporâneos da psicologia, apenas McDougall acentua a distinção entre essa esfera e os atos por um lado e os sentimentos de outro. Para caracterizar essa esfera subjetiva criou o termo conação, do latim conatus, conseguido, efetuado. No livro “Forças Construtivas da Personalidade” (Aufbau Krafter Seele), 1937, o exprime claramente: “A cadeia de atividades que em sua totalidade volta a um fim chamaremos conação. Podemos dizer que qualquer de nossas forças impulsoras, uma vez despertada, determina um fechamento, uma iniciativa, uma tendência cuja atuação sentimos. A distinção entre força impulsora, por um lado, e uma tendência atuante, a iniciativa e conação, por outro, é análoga à distinção entre energia potencial e energia livre, respectivamente, na química e na física”. Existe pois plena concordância entre a concepção desse setor segundo Comte e a descrição feita por McDougall: por isso aqui utilizamos a denominação conação como variante da atividade na acepção de Comte. É necessário ressaltar, porém, que a de Comte é mais precisa e muito mais estruturada: não só identifica as forças ativas como grupo tríplice e perfeitamente delimitado, como estabelece as relações específicas, em sistema, de cada função conativa com as diferentes forças propulsoras e afetivas, como tem sido colocado em aulas anteriores.
Para que haja continuidade da ação e para que a atividade não se transforme em agitação incoerente, sem direção definida, é indispensável que as duas forças, coragem e prudência, estimulante e inibidora se desenvolvam sob o ascendente da perseverança, ou firmeza. Por sua vez, sem esse equilíbrio conativo não será viável o contato com a realidade exterior (dinamismo da atenção), do qual deriva a percepção.
Sem a percepção não haverá a formação da noção e do pensamento e, portanto, não será possível estabelecer o “juízo de realidade”. A elaboração intelectual depende da coragem e da prudência, para as fases dedutiva e indutiva respectivamente, do processo. Dessa maneira é a atividade, ou conação, o setor executivo da subordinação do indivíduo à realidade ambiente.
As correlações agora mencionadas fazem ver que a mediação da atividade no conjunto psíquico se exprime em três direções: (1) transformação de impulsos afetivos em atos; (2) efetivação do trabalho intelectual; (3) derivação da atividade explícita para o plano intelectual, seja em vigília (fantasia, contemplação), seja durante o sono (sonho).
Outra característica da atuação do setor da conação se prende às relações com a afetividade. Em primeiro lugar, essas relações não se fazem de maneira indiscriminada, mas específicas, embora todo o conjunto afetivo, especialmente sob o ascendente da sociabilidade, o altruísmo, estimule a atividade. Dessas correlações derivam a concepção de sistemas funcionais, cujo substrato são os sistemas neurofisiológicos cerebrais. A coragem está sob o ascendente mais direto do instinto nutritivo, da destruição e do orgulho; a prudência é influenciada preferencialmente pela bondade (e através desta pelo instinto materno), pela veneração, pela construção e através dela pelo instinto sexual); e finalmente, a perseverança, obedece principalmente à veneração, à construção e ao apego (e através desses dois últimos, respectivamente, ao instinto materno e ao sexual). Em segundo lugar, as correlações entre afetividade e atividade, não se manifestam nos dois sentidos, como é o caso dos outros setores o da inteligência com referência à atividade, isto é, não há ação recíproca.
E ainda, a conação ou atividade atua sobre a esfera afetiva de modo indireto, mediante a interferência da esfera intelectual. Vale dizer, que a atividade modifica as disposições afetivas através do dinamismo emocional, pois a emoção é aqui definida como reação afetiva ante a noção real ou idealizada de situações objetivas. A timidez, a atitude de fuga, a agressividade, as paixões modificam o estado afetivo no sentido da submissão, da defesa, da agressão, da mesma forma que o estado de pânico bloqueia a ação coordenada pela sideração afetiva.