Importância do diagnóstico orientado pela patogênese na pesquisa sobre a genética das psicoses endógenas.

IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO ORIENTADO PELA PATOGENESE NA PESQUISA GENÉTICA DAS PSICOSES ENDÓGENAS

Alexandre Valverde de Moura
Francisco Drumond de Moura
Paulo Palladini
Roberto Fasano Neto

Versão 1 (04/06/24): versão preliminar que na medida que for ampliada será substituída

Partimos do pressuposto que a patogênese de qualquer psicose endógena está vinculada, de forma indissolúvel, com a sua base genética.  Dessa forma, a utilização do critério patogenético para o diagnóstico e a caracterização da diversidade das psicoses endógenas constitui o melhor método para garantir a seleção de grupos mais homogêneos, do ponto de vista da sua base fisiogenética e, portanto, mais apropriada para a pesquisa da genética dos transtornos mentais.

  Os dois principais grupos de psicoses endógenas – grupo da esquizofrenia e grupo da psicose maníaco depressiva -, apresentam uma diversidade de formas que traduzem o comprometimento de sistemas cerebrais distintos. Assim, a utilização do critério descritivo para o diagnóstico, isto é, a delimitação de determinado conjunto de sintomas, como base para o diagnóstico, visando selecionar um determinado “grupo homogêneo de casos” pode conduzir a erro de avaliação, com o agrupamento de formas clínicas, com colorido clínico semelhante, mas muito diversas quanto à patogênese e, portanto, diversas na base genética.

No âmbito das psicoses endógenas, encontramos dois grupos bem definidos: as psicoses reversíveis e as psicoses progressivas. Este aspecto quanto à evolução traduz uma diluição da carga genética, isto é, a carga genética é mais acentuada nas psicoses progressivas. A diluição da carga genética nas psicoses reversíveis é tão acentuada que os surtos psicóticos delas decorrentes apresentam remissão completa em um período reduzido, de alguns dias, semanas ou, no limite, em meses. Nesses casos o meio ambiente, aqui incluído o meio social, exercem um papel significativo no seu desencadeamento. Isto levou Aníbal Silveira a denominá-las de Psicoses Diatéticas (diátese/tensão como fator patogênico).

No sentido mais amplo, tomando como ponto de partida, os quatro grupos clínicos fundamentais: a epilepsia, a psicose maníaco-depressiva, a esquizofrenia e a oligofrenia e levando em conta que a oligofrenia se trata de uma condição permanente, bem como a epilepsia, passou-se a compreender nos grupos psicóticos – psicose maníaco depressiva e esquizofrenia – três níveis de manifestação quanto à intensidade da carga genética, subentendida na heredopatologia: quadros característicos psicóticos, psicopatia correspondente e anormalidades de caráter ou traços anormais de caráter. O essencial é diferenciar um quadro clínico, que tem todos os elementos de perda de contato com a realidade exterior e outros que em lado oposto, apenas subentendem uma modificação do comportamento, circunscrito a certas áreas das relações interpessoais. Sabemos que em toda patologia, somática inclusive, existe a preponderância de elementos genéticos e, portanto, heredológicos, mas na psiquiatria esse ciclo heredológico tem um caráter muito mais preciso, porque se reporta a quatro grupos gerais de psicoses e de quadros mórbidos anormais e que prevê uma atenuação que é evidente no estudo clínico do paciente. 

Veremos que essa manifestação de psicose, que toma coloridos muito particulares, em geral correspondem a atingimentos das esferas da personalidade. Assim, verificamos que no grupo da epilepsia a esfera da atividade é atingida de preferência. No grupo da psicose maníaco depressiva, o distúrbio está centrado na esfera da afetividade e na esquizofrenia, temos várias manifestações, relacionadas com todas as esferas da personalidade, que se traduzem por falta de contato com a realidade exterior. Isto também explicaria o maior número de quadros clínicos na esquizofrenia do que em outros grupos clínicos. 

Na psicose maníaco depressiva temos uma grande série de alterações de conjunto da personalidade, no sentido da expansão, da depressão e estados intermediários. Na epilepsia temos apenas três variedades, aquelas chamadas mal maior ou grande mal, segundo Jackson; pequeno mal, com perda de consciência sem que seja necessária a presença de convulsões e tipos intermediários, que são as manifestações de um tipo ou outro combinado. Na esquizofrenia temos, segundo Kleist, vinte e seis variantes diversas, caracterizadas clinicamente, como formas esquizofrênicas. Essa diversidade de formas de esquizofrenia está relacionada com a carga genética, com a tendência e forma de reagir do indivíduo, que já está plenamente desenvolvido, abrangendo as várias esferas da personalidade.

Projeto Genoma: os limites para a sua aplicação na pesquisa da Genética das Doenças Mentais

As primeiras discussões sobre o Projeto Genoma Humano (PGH) remontam à década de 1980. Nessa época foi criado na França o Centre d’Etude du Polymorsphisme Humaine (CEPH – Centro de Estudos do Polimorfismo Humano). O projeto foi lançado nos EUA quatro anos depois, patrocinado pelo NIH (National Institute of Health) e pelo DOE (Department of Energy). A proposta era mapear todo o patrimônio genético do homem.  Em seguida laboratórios da Europa, do Japão e da Austrália uniram-se ao projeto. Surgiu então um organismo de coordenação internacional chamado HUGO (Human Genome Organization), para sintonizar o trabalho e organizar o conhecimento adquirido em um banco de dados centralizado, o Genome Database. 

Segundo Jordan (1993) o verdadeiro objetivo inicial do PGH não era o sequenciamento, muito complexo, caro e trabalhoso, mas um mapeamento detalhado do genoma humano. No decorrer do processo os progressos tecnológicos foram tão grandes que propiciaram o sequenciamento mesmo antes do prazo previsto. 

Liderados por Luca Cavalli-Sforza um grupo de geneticistas lançou um projeto paralelo ao PGH, o Projeto da Diversidade do Genoma Humano (PDGH), que pretende estudar e preservar a herança genética de populações humanas. Seus objetivos relacionam-se a estudos sobre as origens humanas e movimento de populações pré-históricas, adaptação a doenças e antropologia forense. Esses geneticistas preocupam-se que o Genoma Humano que está sendo decifrado pelo PGH não corresponde ao genoma humano de todos os indivíduos, mas de uma parcela que está representada nas amostras. 

De fato, esse Genoma Humano não pertence a uma pessoa identificável, mas é proveniente de várias amostras utilizadas principalmente em laboratórios ocidentais. Os defensores do PDGH advogam a favor das diferenças entre grupos humanos e contra o reducionismo do genoma a um tipo único. 

Os objetivos do PGH em saúde envolvem a simplificação dos métodos de diagnóstico de doenças genéticas, otimização das terapêuticas para essas doenças e prevenção de doenças multifatoriais.

Para Zancan (1994) o mapeamento genético para detecção de doenças levanta ainda dúvidas sobre as suas consequências sociais, dada a distância que separa o diagnóstico das técnicas terapêuticas. É preciso lembrar que a análise genética não é infalível e seus dados são com frequência mal interpretados em virtude de uma tendência ideológica da qual os pesquisadores, participam mais ou menos inconscientemente: uma deriva que passa muito facilmente e depressa de uma observação centrada no estado de saúde atual de uma pessoa a um diagnóstico fundamentado exclusivamente na análise de seus genes (Jordan, 1995). 

Para Wilkie (1994) tamanha ênfase na constituição genética da humanidade pode nos levar a esquecer que a vida humana é mais do que a mera expressão de um programa genético escrito na química do DNA. 

Todo ser humano tem uma identidade genética própria e, segundo a Declaração da Unesco, o genoma humano é propriedade inalienável de toda a pessoa e por sua vez um componente fundamental de toda a humanidade. Dessa maneira ele deve ser respeitado e protegido como característica individual e específica pois todas as pessoas são iguais no que se refere a seus genes, afinal unicidade e diversidade são propriedades de grande valor da natureza humana (Clotet, 1995).

Jordan (1995) acredita que “tomamos um caminho perigoso: ao invés de julgar um indivíduo pelo que ele é hoje, vamos indagar sobre seu status de doente em potencial para tratá-lo como deficiente antes do tempo e sem ter a certeza de que se tornará”. Para ele isso significa definir a afecção pelo genótipo, pelo que está inscrito no DNA e não mais pelo fenótipo, pelo estado presente da pessoa.

Para Khoury (1999) uma rápida transição da descoberta do gene à integração na prática clínica pode resultar no desenvolvimento e oferecimento prematuro de testes genéticos. Estudos epidemiológicos são necessários para validação de testes genéticos, monitorização de seu uso pela população e determinação da segurança e efetividade dos testes em diferentes populações. Ele propõe a criação de uma nova disciplina, a Epidemiologia do Genoma Humano (HuGE), combinando dados de epidemiologia genética e epidemiologia molecular. 

De maneira semelhante Pena (1994) sugere a substituição de um paradigma tipológico por um paradigma populacional. No primeiro existem os alelos normais, ideais, perfeitos e os que não o são. Já no segundo a variabilidade é composta por mutantes subótimos e lida com ambientes diversos. O fenótipo, portanto, é dinâmico e emerge da interação do genótipo como um todo (milhares de genes) com o infinitamente complexo ambiente. 

É a mudança do paradigma monogênico de determinismo genético (atraente e perigoso em sua simplicidade) pelo paradigma interativo epigenético não determinista.

Vários autores alertam para o de uma eugenia mais sutil, promovida pelo PGH ao fornecer instrumentos para testes (Shattuck, 1998; Annas). Alguns participantes do projeto, como James Watson acreditam que há um “potencial extraordinário para o melhoramento humano”. A questão do melhoramento e da eugenia refere-se basicamente ao quanto se confere à genética na responsabilidade por condições multifatoriais. Assim mistura-se a identificação e tratamento de doenças genéticas com as outras causas de doença (álcool, drogas, pobreza…), considerando-as todas de origem genética e divulgando a esperança de que um dia encontremos uma “solução genética” para estas condições de saúde. 

Supondo que realmente existam genes da inteligência, genes responsáveis por comportamento antissocial, genes alcoólatras e drogados, genes neuróticos, genes de infidelidade. A questão é, como coloca Ztaz (1994), o que se pode fazer com esse conhecimento? Clotet (1995) alerta para o fato de que não se deve utilizar estratégias genéticas para solução de problemas sociais, reconhecendo um risco potencial para o surgimento de um movimento eugênico baseado no conhecimento do genoma.

Ao mesmo tempo não devemos atribuir ao PGH mais importância do que ele realmente pode ter. Tome-se por exemplo a anemia falciforme, uma das doenças genéticas mais conhecidas e a primeira a ter seu gene identificado. Chama a atenção o atraso das pesquisas e a pouca participação da genética na melhoria da condição de saúde dos pacientes e o PGH não vai mudar essa situação a curto prazo pois o conhecimento de um gene não é uma garantia de avanço terapêutica. 

Em 1991 o Congresso americano iniciou o exame de um projeto de lei dedicado à preservação das informações concernentes ao genoma humano (Human Genome Privacy Act). 

No ano seguinte a 44ª Assembleia da Associação Médica Mundial reunida na Espanha lançou a Declaração de Marbella, em que se declarou contra o patenteamento do genoma humano, solicitando garantias contra discriminação e diretrizes básicas para prevenir a estigmatização de populações em risco para doenças genéticas. Neste mesmo ano, James Watson pediu demissão do seu cargo de diretor do PGH por ser contra o patenteamento de genes.

A questão do patenteamento só foi resolvida em 1995 quando o HUGO publicou uma declaração condenando o patenteamento de sequências sem função conhecida, mas favorável ao patenteamento da descoberta das funções biológicas de novos genes ou suas aplicações. O argumento utilizado foi de que o custo do projeto é muito elevado e sua realização seria impossível sem o concurso de empresas privadas, as quais estão interessadas em obter exclusividade sobre suas descobertas.

Essa atitude faz com que pesquisadores tenham que assinar contratos com empresas comprometendo-se a não divulgar seus resultados. Nesse caso a pesquisa científica deixa de ser objeto de discussão entre cientistas para tornar-se uma propriedade industrial, como ocorreu recentemente com o gene da asma. Um grupo de pesquisadores anunciou na revista Science a localização de uma região candidata para o gene da asma, porém não deu absolutamente nenhum detalhe a respeito da sua descoberta por motivos contratuais. Esses foram inclusive o motivo que os levou a divulgar a descoberta do locus candidato pois há uma exigência legal de comunicar aos acionistas da empresa que uma descoberta recente pode ter um possível impacto sobre a valorização das suas ações!

A preocupação com o patenteamento é tanta que motivou uma declaração da UNESCO em que é reafirmado que o genoma humano é propriedade inalienável da pessoa e patrimônio comum da humanidade.

Segundo este mesmo documento o nosso DNA nos pertence, temos a propriedade e a posse, mas desconhecemos o seu significado. Provavelmente o conhecimento completo dos 3,5 bilhões pares de bases do genoma humano não seja o fim, mas sim o início desse processo de compreensão. 

Que novas perspectivas sobre os seres humanos trará o sequenciamento dos pares de bases do genoma humano? 

A função mais importante do projeto talvez seja a de transcender a si mesmo e nos ensinar que os genes e a genética não são a base fundamental da vida humana. 

O PGH pode redefinir o nosso sentido de nosso próprio valor moral e descobrir um meio de afirmar, em face de todos os detalhes técnicos da genética, que a vida humana é maior do que o DNA de que brotou e que os seres humanos conservam um valor moral que transcende a sequência de 3,5 bilhões de bases contidas no genoma humano (Wilkie, 1994).

Em julho de 2000 foi anunciado que os pesquisadores do Projeto Genoma Humano haviam sequenciado a quase totalidade do genoma humano. No entanto, houve uma compreensão inadequada do que estava sendo divulgado: muitos jornais e revistas afirmaram que o genoma humano estava desvendado. A população ficou com a informação de que toda esta etapa estava vencida, quando sequer foi iniciada a totalidade de identificação de genes humanos em todos os cromossomos. 

O volume de interpretações corresponde ao de um texto de 800 volumes semelhantes ao de uma Bíblia, só que não se sabe em que idioma está escrito.

Referências bibliográficas

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