Instinto materno ou de posse1
(Lúcia Maria Salvia Coelho)
Este instinto já corresponde a um nível superior de diferenciação em relação aos dois instintos anteriores. Por estar ligado de modo apenas indireto com o instinto nutritivo, esta função apresenta maior dependência aos fatores do ambiente externo. Assim, a expressão do instinto de posse varia conforme o nível de amadurecimento do indivíduo e de acordo com as ligações que ele estabelece com o meio físico e social.
Este instinto pode ser definido em seu aspecto mais amplo como uma ligação afetiva intensa mantida pelo indivíduo em relação aos produtos que dele emanam, quer estes produtos sejam de natureza propriamente fisiológica, quer resultem de uma elaboração emocional.
A expressão mais evidente e afetivamente mais importante deste instinto é a que corresponde à ligação entre a mãe e o produto da concepção, especialmente intensa nas primeiras fases de desenvolvimento do recém-nascido. Este instinto acha-se especialmente desenvolvido entre os vertebrados e se traduz de modo especialmente complexo no ser humano.
Embora o instinto materno ou de posse se torne mais atuante durante a fase da gravidez e logo após o parto, não é exclusivo do sexo feminino, nem a sua ação fica limitada a este período em que os genitores interveem de modo mais direto na preservação da existência de um ser humano ainda indefeso e dependente. Como as demais funções, este instinto pode manifestar-se de modo diverso conforme a fase de amadurecimento do indivíduo e conforme o seu caráter.
Em relação à expressão do instinto de posse como “instinto materno”, verificamos que os etólogos estudam especificamente o comportamento a ele ligado, caracterizando-o como “cuidado à prole”. Eles observam as características específicas que assume este comportamento em cada espécie animal.
Max Scheler distingue no ser humano o comportamento resultante do instinto materno do sentimento a que ele chama “amor materno”. No livro “Essência e Forma da Simpatia”, este autor desenvolve algumas concepções sobre o sentimento que se aproximam daquela já estabelecida por Comte e Audiffrent. No caso da relação mãe-filho, Scheler observa tratar-se de uma ligação sui-generis pois que mesmo do ponto de vista somático o ser amado faz parte do organismo daquele que o ama.
Este já entra em ação desde a fase fetal ainda que em nível menos enérgico que o nutritivo e se manifestaria com maior intensidade no organismo materno após o parto. Observa ainda Scheler que o instinto materno e o instinto de conservação (nutritivo) já são nitidamente distintos mesmo antes do parto. Neste sentido o autor critica as teorias que defendem o ponto de vista de que o instinto materno seria apenas uma expansão do egoísmo porque mesmo como reação subjetiva a manifestação daqueles dois instintos é sentida de modo diverso pela mãe. Os “sacrifícios” da própria conservação da vida materna devido aos cuidados que a mãe pode dar à prole e para conservar a existência desta, já são descritos mesmo nos animais sub-humanos. Evidenciam-se assim, não apenas uma independência entre estes dois instintos, mas até mesmo a possibilidade de levarem a situações antagônicas – o que de resto é característico também aos demais instintos.
Audiffrent desenvolveu a teoria positivista da personalidade e fez a distinção entre os instintos básicos e individuais – que são mais enérgicos – e o instinto materno, de natureza mais dependente e complexa. O instinto materno ao lado das “necessidades de aperfeiçoamento”, já implica em um certo grau de participação da sociabilidade e da inteligência para poder ser expresso em um comportamento específico. Assim, o instinto materno ainda que originalmente individual e mais diretamente ligado às funções orgânicas do que o são os sentimentos, já em sua expressão inclui o caráter social e altruísta.
O instinto materno não se confunde com o amor materno. O instinto atua de modo mais intenso no comportamento feminino, após o parto e na época da amamentação, ou em geral na fase em que a criança é mais dependente dos cuidados maternos. Assim, a expressão instintiva do cuidado materno corresponde no plano biológico, a uma série de processos peculiares à proteção da prole segundo um ritmo orgânico variável em cada período da evolução do recém-nascido. Existe uma certa correspondência entre as modificações hormonais do organismo materno – como por exemplo, o intumescimento dos seios com leite e o ritmo de necessidade de alimentação da criança que se manifesta como fome. Tal processo biológico se acompanha de um nexo subjetivo emocional que se traduz como prazer da mãe em amamentar seu filho e do filho em ser amamentado.
A mãe, como a fêmea dos animais sub-humanos mais evoluídos, revela-se sensível a uma série de “sinais” expressos no comportamento do filho. Ela reage a estes sinais de modo quase inconsciente e seguramente pouco refletido. Um aspecto frequentemente observado no comportamento materno corresponde à sua sensibilidade em escutar os rumores, os mais tênues, produzidos pelo filho, mesmo quando adormecida profundamente; não dando atenção aos outros ruídos do ambiente mesmo que sejam bem mais intensos. Existe assim uma seletividade perceptual relativa aos sinais significativos desencadeadores do comportamento instintivo materno. A este nível do relacionamento interpessoal mãe-filho os processos nutritivos de ambos, o instinto de posse da mãe e o sentimento de apego especialmente manifesto na criança – provocam uma reação emocional profunda e essencial para a evolução do ajustamento individual à realidade social.
O prolongamento excessivo desta expressão instintiva a este nível de intensidade da fase post parto expressa-se no comportamento materno como uma atitude superprotetora que impede o filho de se tornar um ser progressivamente mais autônomo e seguro de si. O amor materno, ao contrário, corresponde a um sentimento social e se sobrepõe à expressão mais simples do instinto de posse. Ocorre assim uma modificação gradativa da atitude de proteção a um ser organicamente indefeso para a de sentimento mais complexo da mãe que orienta o filho na busca de sua própria identidade e liberdade.
“Entretanto o instinto de posse não encontra sua expressão apenas na situação de maternidade.” Seu significado mais amplo é o apego a objetos e os fatos, e ainda aos produtos que emanam do próprio organismo. Mesmo a noção da própria identidade subjetiva resulta em grande parte da ação conjugada deste estímulo instintivo.
Nas primeiras fases de desenvolvimento ontogenético o instinto de posse estimula o interesse da criança pelos próprios excretas. Considera-os como parte de seu organismo. Tal interesse coincide com a necessidade individual de dominar o ambiente e de afirmar-se diante dos demais. Os nexos emocionais e as fantasias primárias que poderão se originar deste processo de busca de conhecimento de si próprio e do ambiente imediato e que resulta da expressão predominante, mas não exclusiva do instinto de posse – foram estudados pela psicanálise. Freud denominou este período de desenvolvimento de “fase anal”, entretanto, ao contrário do que postula a teoria de Comte, considerou as reações da criança nesta fase, como expressão do instinto sexual. Freud não leva em conta o processo subjetivo associado ao instinto de posse, nem a participação indispensável das funções intelectuais no estabelecimento destes nexos primários.
Nesta fase da primeira infância, o instinto de posse se traduz ainda por uma grande carga de individualidade e acha-se, portanto, ligado a necessidades afetivas primárias e a processos intelectuais ainda imaturos. Mas desde então esta expressão instintiva já se associa ao apego e à necessidade de domínio resultando em uma expressão dinâmica da exploração do ambiente – por exemplo, traduzida no comportamento da criança em apanhar tudo o que encontra ou em colecionar objetos – e mesmo da curiosidade intelectual e da tendência em construir seus próprios objetos e concepções. Tais curiosidades e iniciativa não são de ordem basicamente sexual como pretendia Freud, mas antes refletem a participação harmônica das funções afetivas básicas e das primeiras expressões adequadas do processo intelectual.
Finalmente, o instinto de posse se traduz como o impulso afetivo básico responsável pela ligação do artista ou do cientista à sua própria obra – considerada como um produto de seu esforço de criação. Assim, a posse literária, a posse dos objetos materiais, o sentimento infantil de possuir os adultos ou de possuir os produtos de seu organismo – são expressões diversas do mesmo impulso afetivo básico que se torna mais nítido e diferenciado quando se manifesta como instinto materno. Esta diversidade de manifestações da mesma função subjetiva resulta da necessária participação, ou da interferência das demais funções psíquicas, de fatores culturais e da própria expressão das disposições genéticas.
- Apostila produzida na Faculdade de Medicina de Jundiaí, como complemento ao curso de Psicologia Médica, para o curso de Psicologia Médica para os médicos residentes em Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Jundiaí e para o Curso de Teoria da Personalidade para a Sociedade Rorschach de São Paulo. Composta em agosto de 1978. Já considerada em parte superada por sua autora que já reescreveu o tema sob novas perspectivas. No entanto, eu, Roberto Fazzani, digitalizei e formatei este grupo de apostilas pois considero-as úteis numa exposição inicial da Teoria Sociológica da Personalidade, por nós adotada. ↩︎