Sobre o sofrimento psíquico de Auguste Comte: uma revisão
Alexandre Valverde Marcondes de Moura¹
Francisco Drumond Marcondes de Moura²
Para além de delimitar, de forma pioneira e inovadora, a noção do caráter coletivo e, portanto, social e histórico do processo de construção do conhecimento – “sem a qual não há verdade, nem ciência”³ -, Comte também adverte quanto ao seu tributo pessoal, quando assinala que o homem, a seu pesar, é fruto da sua época4. Como veremos mais adiante, essa reflexão retrata com muita pertinência as atribulações pelas quais Comte passou ao longo da sua vida, transcorrida no período de 1798 a 18575.
Sob o ponto de vista social e histórico, esse período coincide, exatamente, com as intensas e profundas transformações culturais, de caráter revolucionário, da sociedade francesa, iniciada em 1789 e, sucessivamente, desdobrada nas mobilizações sociais e operárias, de 1830 a 1850, culminando com o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851.
Importante ressaltar que esse processo histórico evolui, para além da vida de Comte, convergindo em 1871, para uma experiência revolucionária de gestão social: a Comuna de Paris. Como é amplamente reconhecido, o significado histórico de tais acontecimentos, repercutiram muito para além das fronteiras da França, sendo analisado de forma inovadora por Marx e Engels.6
Considerada a linha do tempo da sua vida, a produção intelectual de Comte abrange um período inicial de 1819 a 1828, com a publicação de um conjunto de seis textos reunidos sob a denominação de “Opúsculos de Filosofia Social”7. No período de 1830 a 1856 publicou as suas principais obras: os seis volumes do Curso de Filosofia Positiva (1830 a 1842), o Tratado Filosófico de Astronomia Popular, tendo como preâmbulo, o Discurso Preliminar sobre o Espírito Positivo (1844), os quatro volumes do Sistema de Política Positiva (1852) e a publicação do primeiro volume da Síntese Subjetiva – Sistema de Lógica Positiva (1856).8
1 Médico psiquiatria, membro fundador do CEPAS
2 Médico Psiquiatra, Presidente do CEPAS – Centro de Estudo e Pesquisa Aníbal Silveira.
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5 Isidore Auguste Marie François Xavier Comte, nasceu em Montpellier em 19 de janeiro de 1798 e morreu em Paris em 5 de setembro de 1857
6 “As Lutas de Classes em França – de 1848 a 1850 (1850)”, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852)” e “A Guerra Civil na França (1871)”.
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8 Quantificar toda a produção intelectual, comparar a sua produção com a de outros autores visando demonstrar a potência intelectual de Comte, ao mesmo tempo que demonstra a integridade do seu trabalho mental após o surto de 1826. Avaliar se na sua última obra, de 1856, “Síntese Subjetiva – Sistema de Lógica Positiva“ demonstra a preservação da qualidade da sua produção intelectual até o final da sua vida.
Nessa mesma linha do tempo da sua vida, o ano de 1826 demarca a sua primeira e mais grave “crise cerebral”9, que lhe acarretou a internação na Clínica de Esquirol10. Sucessivamente, o próprio Comte reconheceu outras três crises, de menor gravidade e sem a intercorrência de internação: em 1838, 1842 e 1845.11
O objetivo central dessa revisão é elucidar a patogênese desses agravos à saúde mental de Comte, partindo do entendimento do caráter multifatorial envolvido no desencadeamento e na configuração de qualquer quadro clínico que traduza um sofrimento psíquico grave: sua vinculação social (a pessoa imersa em um determinado contexto histórico e social), a história da sua vida, a história e dinâmica do seu núcleo familiar, as suas disposições genéticas e a sua inserção na vida institucional ou no mundo do trabalho12.
O processo de análise dos seus sucessivos agravos vai levar em consideração, rigorosamente, a própria avaliação de Comte, tomando como ponto de partida o seu entendimento sobre a crise de 1826, explicitado muitos anos após, que ele sintetizou, de forma precisa, em poucas palavras: “uma combinação fatal de grandes dores morais com violento excesso de trabalho”13
E ainda: “eu constatei, irrefutavelmente, no ano seguinte, que esse terrível episódio não havia em nada alterado a perfeita continuidade do meu desenvolvimento mental, ao cumprir até o fim a elaboração oral assim interrompida três anos antes14, e que em seguida fez nascer o tratado15 que eu termino hoje.”16
9 Assim, muitos anos depois, plenamente recuperado, Comte denominou a sua crise psicótica aguda de 1826.
10 Alienista, discípulo de Pinel e um dos patronos da Psiquiatria Francesa.
11 Comte, A.,”Correspondance générale et confessions”,t.III, 1845-1846.
12 Consoante a formulação de Robert Castel, “As metamorfoses da questão social”.
13 Comte, A., “Préface Personelle”, Cours, Tome Sixième et Dernier, 1842
14 Para esclarecer essa colocação: “A longa duração da elaboração que eu completo hoje poderia primeiro ser imputada à suspensão forçada que ela enfrentou, logo após a publicação do primeiro volume, como resultado da crise industrial causada pela memorável agitação política de 1830. Assim, forçado a procurar um novo editor, tive que interromper, por cerca de quatro anos, uma composição que, de acordo com a minha natureza e hábitos, só poderia ser escrita visando uma impressão imediata”. Préface.
15 Referência ao “Cours de Philosophie Positive”, iniciada em 1830 e concluída em 1842.
16 Comte, A., “Préface Personelle”, Cours, Tome Sixième et Dernier, 1842
Essa caracterização de Comte, associada ao caráter reversível do seu transtorno mental – que pôde ser observado na evolução favorável do seu agravo à saúde mental -, traduzido pela recuperação integral da sua capacidade psíquica, aponta para uma hipótese diagnóstica de um quadro psicótico transitório, de caráter auto tóxico, cuja análise mais aprofundada será conduzida mais à frente.
Naturalmente, dentre outros aspectos, será necessário verificar os dados e as anotações do prontuário de Comte, do período em que esteve internado na clínica particular de Esquirol.
Crítica ao empirismo e à desumanização da prática psiquiátrica e manicomial17
Após recuperar plenamente a sua capacidade crítica, Comte faz uma análise demolidora sobre as práticas do “cuidado psiquiátrico” a que foi submetido e às práticas da instituição manicomial que, como veremos, tais críticas permanecem atualíssimas.
No início de abril de 1826, logo no início das aulas que ministrava para um grupo de operários18, Comte apresentou uma crise que comprometeu o seu juízo de realidade, por ele atribuída – como já referido -, ao “concurso de grandes penas morais com violentos excessos de trabalho. Prudentemente entregue a seu curso espontâneo, essa crise teria, sem dúvida, logo estabelecido o seu curso normal, como a evolução o mostrou claramente… [mas houve uma desastrosa intervenção de uma medicação empírica no estabelecimento particular do respeitado Esquirol, onde o mais absurdo tratamento me conduziu rapidamente a uma alienação muito caracterizada”.19
Após oito meses de internação20 foi retirado da Clínica de Esquirol: “se sua esposa não o tivesse retirado, ele certamente teria morrido ali, não da doença das meninges, para a qual ele havia sido internado, mas do tratamento, [já que ele certamente havia saído mais doente do que havia entrado”21. Após isto, “recupera em poucas semanas a sua organização mental, triunfando, sobretudo, sobre os remédios”.22
A crítica de Comte não se limita ao desempenho das intervenções “terapêuticas”. Com a mesma força, dispara uma crítica demolidora da instituição manicomial, demarcando, inclusive, a ausência de crítica de Broussais23 sobre essa questão. Comte observa que êle não conhece a real situação dos manicômios: “se os tivesse estudado por si mesmo, teria se convencido de que, apesar das promessas de seus dirigentes, toda a parte intelectual e emocional do tratamento lá se encontram abandonados por eles à ação arbitrária de agentes subordinados e rudes, cuja conduta quase sempre agrava a doença que deveriam ajudar a curar”24. Essa crítica de Comte à instituição psiquiátrica é muito similar àquela proposta, na atualidade, pela abordagem desinstitucionalizante25, expressão vigorosa de uma psiquiatria comprometida com uma atitude humanista radical na atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico.
17 No período da vida de Comte, os psiquiatras eram denominados de alienistas.
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19 Comte, A., “Préface Personelle”, Cours
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21 Citado por Braunstein, referente a uma carta de Charles Robin a Littré.
22 Citado por Braunstein: Foi o que ele repetiu ao longo de toda sua vida, como testemunha Charles Robin numa carta a Littré: “M. Comte, que gostava de me falar de medicina, em particular de medicina mental, nunca deixou de perseguir com o seu sarcasmo o tratamento da loucura por duchas e outros meios análogos: ao expor sua maneira de ver de uma forma verdadeiramente humorística, e ao nos ver rir, passou a se citar como exemplo, e a nos contar de maneira formal e clara da maneira mais séria e serena…”,Comte, A., referência
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24 Poderíamos observar aqui que se trata apenas de um retorno à origem do tratamento moral, se aceitarmos a ideia de François Bing e Jacques Postel que este foi aprimorado conjuntamente por Pinel e o “surveillant” Pussin; BING, François, POSTEL, Jacques, «Philippe Pinel et les “concierges” », in ROUDINESCO, Élisabeth et al., Penser la folie. Essais sur Michel Foucault, Paris, Galilée, 1992.
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Com relação à prática psiquiátrica, no Cours, Comte observa que, ainda mais do que outros médicos, os psiquiatras “estão quase sempre, ainda menos que a maioria dos outros, intelectualmente, ou mesmo moralmente, à altura de sua importante missão”26. Eles estão “geralmente mais ocupados em controlar rudemente seus pacientes do que em analisar criteriosamente os fenômenos”27. Na mesma direção, no Système de Politique, ele deplora o “empirismo desastroso, que demasiadas vezes entrega o mais difícil dos serviços médicos às mentes e corações menos dignos28“.
Lamenta que “o estudo das doenças cerebrais, sejam mentais, sejam sobretudo morais, esta parte transcendente da arte médica […] se encontre habitualmente abandonada às mentes medíocres unidas aos corações mais vulgares29“.
As insuficiências teóricas dos psiquiatras devem-se principalmente ao fato de não disporem do princípio de Broussais: na ausência desse princípio, suas monografias são “acumulações ininteligíveis de pretensas maravilhas, que afastam qualquer ideia de uma conexão positiva com o estado normal”. Além disso, eles não souberam como determinar de antemão o que é esse “verdadeiro estado normal30“.
26 COMTE, A., Cours de philosophie positive, t. I, p. 877.
27 Ibid.
28 COMTE, A., Système de politique positive, t. I, op. cit., p. 733.
29 Ibid., t. I, p. 567-568.
30 COMTE, A., Cours de philosophie positive, t. I, p. 877.
As suas insuficiências “morais” devem-se ao fato de que não sabem compreender a importância do “moral” na vida humana: cometem o erro de acreditar que o homem pode ser reduzido ao “físico”. Essa crítica vale, aliás, para toda a classe médica, que ignora, para usar a expressão de Cabanis, “as relações entre o físico e o moral do homem”. Isso é o que Comte observa em uma passagem famosa: “Médicos que estudam apenas o animal em nós, e não o humano, degeneram em veterinários ou ainda pior: nossos chamados médicos são realmente apenas veterinários, mas mais mal educados do que estes estão agora, pelo menos na França e, portanto, em geral tão pouco capazes de curar tanto animais quanto homens31“.
31 COMTE, A., Système de politique positive, t. II, p. 436.
A questão da relação do cérebro com o psiquismo em Comte
É muito provável que, em larga medida, a vivência da crise psicótica por Comte, acentuada pelo contato, por ela imposta, com uma insuspeitada e notável insuficiência da capacidade de diagnóstico e de intervenção terapêutica de um dos mais prestigiados serviços de cuidado às pessoas portadoras de transtornos mentais da França32, esteja na raiz, não apenas da sua aguda crítica à instituição psiquiátrica, mas sobretudo, na formulação do que então consistiria uma psiquiatria mais pertinente e, naturalmente, mais humanizada.
Comte estabeleceu, de uma forma muito assertiva e clara, em que direção deveria seguir uma psiquiatria “regenerada”33, que pudesse empreender, com suficiente dignidade e discernimento, o exercício do seu pretendido trabalho terapêutico.
Assim, delimitou o lugar da psiquiatria no campo do “estudo positivo das funções intelectuais e morais ou cerebrais”34, situando-a na junção entre a biologia e a sociologia. A sua vinculação com a biologia decorrente do imperativo de implicar estudo do cérebro, mas só pode ser verdadeiramente constituída depois da instituição da sociologia, já que as doenças mentais são sempre doenças sociais35.
Para Comte, a psiquiatria é a “parte transcendente da arte médica” que conhece o mais diretamente a subordinação da biologia à sociologia, do homem à Humanidade36.
É preciso, segundo Comte, acabar com a “separação” entre a alma, confiada à religião, e o corpo, objeto da medicina, bem como com a ideia absurda de um homem isolado: a maioria das doenças têm uma origem social e estão localizadas previamente no cérebro. Os verdadeiros médicos, e em primeiro lugar os psiquiatras, serão médicos “sintéticos”, sob três pontos de vista. Devem compreender que o homem é um todo, que ele é impossível de desagregar [..]também precisam entender a “conexão íntima” entre a alma (ou seja, para Comte, o cérebro37) e o corpo.
Os psiquiatras também tendem a subestimar o papel das faculdades afetivas, do “coração”, e a ver nas doenças mentais apenas distúrbios das faculdades racionais. Sobre esses diversos pontos, a crítica dos psiquiatras se junta à desses médicos materialistas, desses “biólogos puros”, que reduzem o superior ao inferior, o moral ao físico, e que não compreendem a unidade da alma e do corpo, isto é, do cérebro e do corpo38.
32 Maison de Esquirol, em Charenton
33 Como salienta Pickering, regenerada era um sinônimo da revelucionaria, no contexto da revolução francêsa.
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36 COMTE, A., Système de politique positive, t. I, op. cit., p. 567.
37 Auguste Comte passa os últimos anos da sua vida estabelecendo um « tableau cérébral », que ele nomeia também «classification positive des dix-huit fonctions intérieures du cerveau ou tableau systématique de l’âme » (Système de politique positive, t. I, op. cit., p. 726). Deste ponto de vista, a alma não é apenas « reduzida » ao cérebro, o cérebro beneficia de um bom número dos atributos da alma tradicional, inclusive a Imortalidade.
38 Ibid, p 386
A interação existe não apenas no sentido que vai do físico para o moral, mas também no sentido inverso, do moral para o físico. Finalmente, os médicos serão sintéticos se tomarem consciência da “necessária irracionalidade das concepções relativas ao homem individual”39. O homem nunca está sozinho, e a maioria das doenças tem uma origem social: “Devemos agora descartar a concepção do homem isolado como uma abstração tão viciosa na medicina quanto na política.40“
39 COMTE, A., Système de politique positive, t. I, op. cit., p. 567.
40 Lettre à Audiffrent du 21 décembre 1854, Correspondance générale et confessions, t. VII, 1853- 1854, Paris, EHESS-Vrin, 1987, p. 284.