Práticas grupais em saúde mental e saúde do trabalhador: a experiência com Grupos de Referência.

Práticas grupais em saúde mental e saúde do trabalhador:
a experiência com Grupos de Referência.

Francisco Drumond Marcondes de Moura1

“Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática”
Gramsci

Introdução

Por práticas grupais em saúde mental e saúde do trabalhador denomino aquelas desenvolvidas no âmbito da rede de atenção à saúde do trabalhador e à saúde mental, integrantes do SUS, que visam resgatar ou ressaltar a dimensão coletiva e social do sofrimento mental, incluindo aqui aqueles condicionados pelo trabalho. No mesmo sentido e forma, parto do pressuposto que estas práticas podem e devem se desenvolver também no âmbito das organizações de trabalhadores, sindicatos ou associações, assim como no âmbito de outras ações programáticas do SUS.

Neste breve ensaio, apresento os principais referenciais teóricos, metodológicos e técnicos do trabalho com Grupos, dirigido aos trabalhadores do SUS, particularmente, para aqueles inseridos nos Centros Estaduais ou Regionais de Referência em Saúde do Trabalhador (CRSTs), e com aqueles inseridos em interfaces estratégicas do campo da saúde mental e do campo da saúde do trabalhador:  nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPSs), nos Ambulatórios de Saúde Mental, nos Núcleos de Apoio á Saúde da Família (NASF) e nas equipes de saúde mental da Atenção Básica.

Na verdade, tenho a expectativa que este texto possa encorajá-los a incorporar a prática grupal no seu cotidiano de trabalho, mesmo considerando as condições adversas, de toda a ordem, com as quais se defrontam: eu conheço bem estas dificuldades. No entanto, os resultados proporcionados por esta prática são muito gratificantes: as pessoas mudam de lugar, refazem as suas vidas, elas bem reconhecerão o significado deste trabalho em suas vidas. E isto retroalimentará positivamente os trabalhadores a perseverarem neste caminho. 

Esta é uma atividade que dignifica e qualifica a atividade profissional e muito pertinente à missão maior do SUS que é a promoção da saúde da comunidade. Passo ao largo da discussão dos “grupos terapêuticos”. Estes correspondem a práticas de técnicos que, individualizam as causas, até à exasperação, do sofrimento psíquico das pessoas; apoiados, invariavelmente, em abordagens discutíveis. Sustento aqui, como Franco Basaglia, que a “liberdade é terapêutica”. Nesta direção, reúno uma bibliografia básica que contêm os múltiplos aspectos exigidos – abrangendo campos distintos do conhecimento -, para orientar a intervenção sobre este objeto multifacetado e interdisciplinar por excelência.

O processo grupal

O Grupo é um lugar onde um determinado número de pessoas considera, juntos, a realidade: de si mesmas, de seus núcleos familiares e da vida social como um todo. O Grupo é um lugar de compartilhamento e de construção da solidariedade. Um lugar de mobilização de relações sociais e, por isto, de fortalecimento da sociabilidade2. Um espaço onde seus integrantes se permitem explicitar sua angústia, sua loucura e seu sofrimento, e saírem dali inteiros. 

Este permite que se vejam de um outro lugar, um lugar coletivo, para além de si mesmos. Lugar que contém em si a possibilidade de uma resignificação das suas vidas e de suas histórias, a partir da compreensão da dimensão coletiva e dos condicionantes sociais e históricos que estão na raiz do sofrimento psíquico que os afligem. E, por esta razão, colocá-los em um movimento interno que tem o potencial de fazê-los desvencilhar dos seus trajes de vítimas e torná-los agentes transformadores: não apenas de si mesmos, mas também, potencialmente, das pessoas da sua rede de relações sociais. Esta é a compreensão e a aposta que faço do trabalho grupal, como de resto é a expectativa de todos aqueles que implementam atividades grupais, em uma perspectiva libertária, emancipatória, desmistificadora, desalienante e transformadora.  

Mas toda e qualquer atividade grupal encerra esta possibilidade? Quais referenciais teóricos e quais abordagens técnicas seriam mais apropriadas para nortear as nossas práticas grupais com este objetivo? É cabível esta proposta de trabalho grupal, aqui considerada, no âmbito de um projeto terapêutico de um determinado paciente, ou conjunto de pacientes? 

Na verdade, poucos autores fazem essas perguntas ou compreendem o processo grupal nesta perspectiva. Da mesma forma, na atualidade, são poucos os técnicos inseridos nos dispositivos da saúde mental e da saúde do trabalhador do SUS, que trabalham nesta perspectiva, apesar de atuarem em redes de atenção que foram concebidas e viabilizadas pela mobilização política de movimentos, cujos fundamentos ideológicos são marcadamente contra hegemônicos, desmedicalizantes e que estabelecem a prioridade de intervenção sobre os determinantes sociais do processo saúde/doença: o movimento da luta anti-manicomial e o movimento nacional de saúde do trabalhador, ambos, com fortes conexões com os sindicatos de trabalhadores e com outras organizações sociais.

Pelo contrário, podemos observar nas práticas vigentes uma tendência generalizada, de serem adotadas teorias e técnicas do trabalho grupal, de forma indiscriminada, como se todas correspondessem a um mesmo campo ideológico. 

Um bom exemplo disto é o referencial teórico/prático de Kurt Lewin. Não há dúvida sobre a importância do trabalho de Lewin nos anos 40, no contexto da II Guerra Mundial. Foi o mais significativo representante da psicomicrossociologia. Osvaldo Saidon (1983), em ¨Praticas Grupais¨, tem um capitulo dedicado ao trabalho de Kurt Lewin, onde se pode apreciar também uma analise critica bem sustentada desta abordagem: “se o conhecimento das leis que regem o pequeno grupo, permite ao psicossociologo instalar um clima de colaboração na empresa, escola ou grupo experimental de trabalho, porque estes métodos não poderiam ser utilizados para por fim à luta de classes, à guerra e ao racismo etc.? …..K.Lewin considerava seu trabalho coerente com este tipo de projeto, com base em um otimismo ingênuo que rapidamente se viu absolutamente injustificado. A extrapolação das observações sobre os pequenos grupos para a sociedade global acabou fazendo com que os psicossociologos funcionassem como agentes de defesa de instituições obsoletas, organizando artifícios para contornar os conflitos e a sublevação daqueles grupos que chegavam a questionar a organização social então vigente. Assim, um certo “ópio psicológico” veio, mais que a desvelar, a ocultar a verdadeira realidade social.”

Como compatibilizar o exercício de práticas contra hegemônicas – como acreditamos devam ser as de saúde mental e as de saúde do trabalhador -, com um marco referencial desses? Não há prática contra hegemônica sem teoria contra hegemônica. Pela importância que apresentam, as práticas coletivas em saúde mental e saúde do trabalhador, devem ser norteadas por abordagens compatíveis com a sua finalidade maior: romper com a psicologização e com a tendência à individualização dos problemas, de natureza social e coletiva, o que afligem as pessoas e os trabalhadores. O que está em causa é a busca de conceitos que visem transformar o trabalho grupal em uma prática capaz de enfrentar a realidade e não em promover uma adaptação resignada a ela.

Neste texto vamos delimitar a contribuição de dois autores, que se dedicaram a compreender e a aplicarem o trabalho grupal nesta perspectiva revolucionária, emancipatória e transformadora: Pichon-Rivière e Didier Anzieu.

O Grupo Operativo de Pichon-Rivière

Pichon denomina Grupo Operativo todo conjunto de pessoas ligadas entre si por constantes de tempo e espaço, e articuladas por sua mútua representação interna, que se propõe explícita ou implicitamente a uma tarefa que constitui sua finalidade. Sob esta tarefa manifesta há uma outra, subjacente, que visa a ruptura com formações psíquicas estereotipadas que bloqueiam a comunicação. Tem seu modelo natural no grupo familiar, configurando um processo onde são vivenciadas dinâmicas de coesão, em uma determinada estrutura funcional.  

 Segundo Baremblitt (1982), “este instrumento criado por Pichon, surge como encruzilhada entre a psicanálise e as teorias de comunicação em psicologia familiar e social e os estudos da sociologia americana sobre os pequenos grupos como os de Kurt Lewin e George Mead. Em seu desenvolvimento vai efetuando diversas articulações com o materialismo histórico, numa tentativa de transformar o grupo operativo num instrumento capaz de revelar os conteúdos ideológicos subjacentes às tarefas de todos os grupos”.

Bauleo (1977), importante discípulo de Pichon, assinala que o grupo operativo pode ser compreendido em dois planos: o da temática (estruturação da tarefa) e da dinâmica, relacionada à mobilização (grupal) afetiva que aquela instiga.

Um componente importante, na compreensão dos grupos, elaborado por Pichon, foi a sua Teoria do Vínculo, na qual propõe que a relação sujeito/objeto deve ser compreendida como uma espiral dialética, onde tanto sujeito como objeto se retroalimentam continuamente, como uma espiral dialética. Iisto constitui um aprendizado, que leva em consideração os pares dialéticos: à medida que se ensina, se aprende e à medida que conhece, se conhece.

Dessa forma, a função básica do grupo operativo é a de aprender a pensar, isto é, desenvolver a capacidade de resolver contradições dialéticas, significantes para o coletivo e não para o indivíduo. Essas contradições têm implicações com a tarefa proposta e sua superação visa uma mudança, uma transformação.

Do ponto de vista da estrutura, Pichon dialetiza as antinomias corpo/mente, individuo/sociedade e organismo/meio, compreendendo-as como um sistema dialético, em permanente interação. Isto implica no reconhecimento da noção de modificação mútua, a inter-relação intrasistemica (o mundo interno do sujeito) e intersistemica (relação do mundo interno do sujeito com o mundo externo).

E, finalmente, adota como postulado básico que todo transtorno mental é o resultado de uma leitura distorcida e empobrecida da realidade; uma perturbação do processo de aprendizado da realidade e uma deficiência na comunicação, processos que se realimentam continuamente.

Dinâmica do grupo operativo

O funcionamento do grupo operativo envolve fases, papéis, a construção do esquema conceitual, referencial e operativo (ECRO) e o desenvolvimento do próprio processo grupal, tomando como parâmetro o desenvolvimento da tarefa. Estes aspectos são inerentes a todos os grupos.

A fase de pré-tarefa caracteriza o ponto de partida de todo o processo grupal. Nesta fase, o grupo faz de conta que trabalha, executa uma serie de tarefas para passar o tempo, ocorrem movimentos que aparentam uma ação, mas que na realidade são realizados a fim de impedir qualquer situação de transformação. Esta fase gera uma insatisfação grupal constante e caracteriza uma fase de resistência à mudança. Na verdade, são os medos e as ansiedades básicas que paralisam o grupo. 

A abordagem direta e a elaboração das ansiedades abrem a possibilidade dos integrantes do grupo passar à tarefa. Aqui o processo grupal avança na percepção mais amplificada da realidade, onde cada integrante atua como sujeito ativo, construindo estratégias e táticas, intervindo de uma forma transformadora.

Nesta fase, cada um cada um dos integrantes constrói seu papel em relação aos outros. Este papel se “constrói baseado no grupo interno (representação que cada um tem dos membros) que vai constituindo “o outro “ generalizado do grupo (Saidon, 1982). 

Os quatro papéis principais que ocorrem no processo grupal são: portavoz, sabotador, bode expiatório e líder.

O portavoz é o depositário da ansiedade grupal, denunciando o acontecer grupal, as fantasias que o move, as ansiedades e necessidades da totalidade do grupo, não fala por si, mas por todos, expressando-se de diversas maneiras (palavras, atos , silêncios). Enuncia sempre uma situação que é um produto da dinâmica grupal. Este é um emergente qualificado para denunciar o que está impedindo a tarefa. 

O sabotador é o depositário das forças que se opõem à tarefa no interior do grupo, sendo o líder da resistência à mudança. O bode expiatório é o depositário de todas as dificuldades do grupo e culpado por cada um de seus fracassos. O líder é o depositário de aspectos positivos do grupo.

A estrutura e a função do grupo se configuram de acordo com o tipo de liderança assumido pelo coordenador. A liderança pode ser assumida tanto pelo coordenador como pelos diferentes membros do grupo, sendo a análise e elucidação, em ambos os casos, necessárias para quebrar as estereotipias do funcionamento grupal.

Há quatro tipos de lideranças grupais. A liderança autocrática utiliza uma técnica diretiva e rígida e, com isto, favorece um estereótipo de dependência e de resistência à mudança. Uma característica marcante é a sua incapacidade de discriminação entre papel e pessoa, confundindo-se a si mesmo com grupo. Seu nível de urgência atua como fator de paralisação da tarefa.  

A liderança democrática estabelece um intercâmbio fluido entre coordenador-lider-grupo. Os integrantes do grupo compartilham de forma construtiva as idéias, reservando ao coordenador o papel de assinalar as dificuldades de seu funcionamento.

A coordenação laissez-faire delega ao grupo sua autoestruturação e assume só parcialmente a função de análise da situação e orientação da ação. 

A liderança demagógica tem como característica marcante a impostura: é impostor na medida que possui uma estrutura autocrática, mas assume uma aparência democrática.

É importante assinalar as ligações entre os papéis de bode expiatório e de líder:  um surge como preservação do outro, por meio de um processo de dissociação necessário ao grupo em sua tarefa de discriminação.

No processo grupal, as forças que se opõem à realização da tarefa, determinam o aparecimento de mecanismos de segregação. Para Saidon (1982) a segregação é o fantasma que ameaça constantemente o grupo, sendo uma tentativa fracassada de redistribuição da ansiedade, o que implica em dificuldades para enfrentar situações de mudanças.

A tarefa prioritária de um grupo é a elaboração de um esquema conceitual e referencial comum (ECRO), condição básica para o estabelecimento da comunicação, a qual se dará na medida em que as mensagens possam ser decodificadas por uma afinidade ou coincidência dos esquemas referenciais do emissor e do receptor. Aqui se aposta na idéia de interdisciplinaridade e na possibilidade de construção de um marco referencial teórico comum a partir da síntese da heterogeneidade de visão de mundo dos membros do grupo, o que corresponderá a uma maior homogeneidade na tarefa. Cada integrante leva ao grupo o seu esquema de referência. Este esquema de referência próprio de cada integrante do grupo confrontado com os esquemas conceituais referenciais dos outros membros do grupo, através de um movimento de espiral dialética, configurará um ECRO comum.

Um aspecto importante na avaliação de como um grupo realiza a tarefa é a análise inter-relacionada dos seus vetores. Pichon os representou na forma de um cone invertido. Estes vetores são: filiação, pertenência, pertinência, comunicação, aprendizagem, tele e cooperação. 

Na parte superior do cone invertido temos os conteúdos manifestos (o que é explícito) e na parte inferior encontramos as fantasias latentes grupais (não manifestas, implícitas, inconscientes). Pichon propõe que o movimento de espiral – que vai fazer explícito o que é implícito -, atua ante os medos básicos subjacentes, permitindo enfrentar o temor à mudança (Saidon, 1982). 

A filiação corresponde ao momento de conhecimento dos membros do grupo, ainda não há uma aproximação fixa com a tarefa; seriam aqueles que estão interessados pelo trabalho grupal, “seriam os torcedores e não os jogadores”.

A pertenência é o momento onde o grupo adquire maior integração o que permite elaborar uma estratégia, uma tática, uma técnica, e uma logística; os participantes já apresentam uma forte relação com a tarefa; medida por indicadores de presença, pontualidade e número de intervenções. 

A pertinência consiste na centralização do grupo em torno da tarefa prescrita, na realização da tarefa estratégia; “se mede pela quantidade de suor na camisa”, um grupo pertinente é aquele onde a sexualidade e a tarefa aparecem em um mesmo movimento. 

A cooperação manifesta-se no grupo pela capacidade de se colocar no lugar do outro, sendo através dela que se manifesta o caráter interdisciplinar do grupo e a inter-relação do que se define por horizontalidade (o aqui e agora na totalidade dos membros do grupo) e verticalidade (ligado à história pessoal de cada sujeito).

A comunicação é o canal pelo qual se expressam os transtornos e dificuldades do grupo para enfrentar a tarefa; tem uma analogia com o modelo de um transmissor e um receptor, um código e um canal; pode ser verbal ou pré-verbal e deve ser considerado o conteúdo, o “como” e o “quem” explicita a mensagem (quando esses elementos entram em contradição se produz o mal-entendido dentro do grupo).

A aprendizagem se produz por uma somatória de informações dos integrantes do grupo obtendo-se em um dado momento a transformação de quantidade em qualidade, representando uma mudança qualitativa no grupo, com ruptura de certos estereótipos de comunicação e obtenção de novos estilos, o que implica reestruturações e redistribuição dos papéis desempenhados pelos integrantes do grupo: toda alteração da comunicação se deve a uma dificuldade na aprendizagem e vice-versa.

A tele representa o clima grupal traduzido como transferência positiva ou negativa; traduz o clima afetivo no grupo em diferentes momentos, revelando o grau de empatia positiva ou negativa que se dá entre os membros do grupo. Assim, os afastamentos e as aproximações entre as pessoas de um grupo não têm a ver com as pessoas reais presentes, mas com a recordação de outras pessoas e outras situações que ela evoca. 

A avaliação dos vetores é sempre grupal, já que a avaliação individual só poderia ser explicada em função de toda a dinâmica grupal que os determinam. Uma hipótese prévia: o sentido do que ocorre “aqui e agora” no grupo tem relação direta com o conjunto de instituições de nossa sociedade, que são o seu suporte (Saidon, 1982).

Finalmente, cumpre assinalar a distinção de funções entre o coordenador e o observador de grupo. O coordenador deve restringir a sua intervenção à sinalização das dificuldades que impedem ao grupo enfrentar a tarefa. Não está ali para responder às questões, mas para ajudar o grupo a formular aquelas que permitirão o enfrentamento dos medos e ansiedades básicas. O seu papel prescrito, portanto, é o de ajudar os membros do grupo a pensarem (dialeticamente). O seu instrumento de trabalho corresponde às sinalizações de situações manifestas e a interpretação da causalidade subjacente. 

O observador é um sujeito não participante. Opera como uma tela de projeção por sua característica de permanecer silencioso. No entanto, deve estar atento ao processo grupal, recolhendo material expresso, não verbal e verbalmente. Este material deve ser relatado em um Formulário de observação de atividade grupal, que se mostra em Anexo.

O processo grupal segundo Didier Anzieu

Para Anzieu (1977) em qualquer situação grupal – grupos de formação, grupos terapêuticos ou grupos sociais -, os processos inconscientes específicos são os mesmos, sendo que o aparato psíquico grupal está dotado das mesmas instâncias que o individual, mas não dos mesmos princípios de funcionamento. 

A partir do referencial da psicanálise “enuncia o grupo como uma realização imaginária do desejo, e caracteriza o grupo, do ponto de vista da dinamica psíquica, um sonho. Esta situação grupal às vezes é vivida como fonte de angústia, pois o grupo, como o sonho, como o sintoma é, em cada um de seus episódios, a associação de um desejo e de uma defesa” (Salzman, 1982).

Anzieu chama a atenção que na sociedade, o grupo é o lugar do perigo; o lugar da transgressão “autorizada”; a dimensão privilegiada para o exercício das perversões. Todo grupo tem seus símbolos e seus mitos. É um lugar de intercâmbio entre inconscientes que conduzem a construções fantasmáticas (fugazes ou estáveis, paralisantes ou estimulantes). E neste sentido, o grupo lida com as mesmas pulsões que o sonho: libidinais e agressivas. Assim, na situação grupal, a pluralidade de indivíduos evoca em cada membro a diversidade de pulsões libidinais e agressivas. Dessa forma, a pulsão de um grupo será muito mais presente e relevante, pois não é mais a pulsão de um só. 

Como Pichon, Anzieu considera que uma das maiores dificuldades de todos os grupos é pensar sua ação tendo em conta os segmentos da realidade nos quais estão inseridos e sobre os quais tratam de atuar. Em sua forma de pensar, atuar e perceber a realidade, estão infiltrados pelo fantasmas individuais prevalecentes que emanam de alguns de seus membros e desenvolvem nos outros efeitos de contágio e resistência.

Na minha opinião, uma contribuição genial de Anzieu, para a teoria sobre grupos, foi o seu entendimento do grupo como objeto transicional. Este conceito é tomado de Winnicott (1951) que o vincula com fenômenos autoeroticos da criança. Com o passar dos anos o objeto transicional se estende para todo o território intermediário entre a realidade psíquica interna e o mundo externo. 

O objeto transicional deixa lugar para o processo de aquisição de capacidade para aceitar diferenças e semelhanças: “creio que pode-se usar uma expressão que designa a raiz do simbolismo do tempo. Ela descreve a viagem da criança desde o subjetivo puro até a objetividade, o objeto transicional é essa viagem para a experiência” (Winnicott). 

Os fenômenos transicionais representam as primeiras etapas do uso da ilusão, sem as quais não tem sentido a idéia de uma relação com um objeto que os outros percebem como externo a esse ser. Esse aspecto de ilusão é intrínseco aos seres humanos e sujeito algum o resolve em definitivo por si mesmo. A tarefa de aceitação da realidade nunca fica terminada; ser humano algum está livre da tensão de vincular a realidade interna à externa e ao alívio desta tensão provocado por uma zona intermediária de experiência” (Winnicott, 1951). 

Anzieu fundamenta o seu conceito de ilusão grupal na formulação do objeto transicional de Winnicott: “na ilusão grupal os participantes se dão um objeto transicional comum: o grupo. Este dá ao individuo algo que continua sendo importante no resto do seu desenvolvimento: a presença de uma campo neutro entre a realidade externa e a interna, que é o campo da ilusão” (Salzman, 1982).

A ilusão grupal é um “sentir-se bem juntos”. É uma fase inevitável de todo o grupo. A ilusão grupal responde a um desejo de segurança, representa uma defesa contra a angústia paranóide comum, substituindo o ego ideal de cada um pelo ego ideal comum, instaurando um narcisismo grupal. Por isto, esta ilusão grupal social “permite ao seres humanos, submergindo-se na vida em grupo, encontrar nela seu poder criador, às vezes compartilhar uma ilusão encantadora ou destruidora” (Anzieu, 1977).

Anzieu chama a atenção para a existência de organizadores propriamente psíquicos no indivíduo, nos grupos e na sociedade. A vida coletiva resulta de uma multiplicidade de fatores, de organizadores, cada um em seu domínio e com suas leis próprias: organizadores demográficos, geográficos, políticos, históricos, econômicos, psicológicos (Salzman, 1982).

Uma das metas principais do trabalho grupal é a reconhecimento dos organizadores psíquicos, “admitindo o pluralismo de determinações em jogo na vida social. Este trabalho deve estar a serviço da identidade, integridade e liberdade dos indivíduos” (Anzieu).

Por outro lado, o social (todo) se mediatiza no individuo (parte), isto é, toda a conduta individual deve ser compreendida a partir da análise das determinações da totalidade social que a constituiu: sociedade global/modo de produção. O trabalho grupal pode estar a serviço desta compreensão e, assim, “poder despertar possibilidades adormecidas, fazer viver experiências, ativar o intercâmbio profundo entre os homens. Homens asfixiados, inseridos na luta de classes, cercados pela fome. Sentindo-se mal em seus corpos. Em meio a contradições, desacordos na família, nos grupos e nas instituições” (Salzman, 1982). 

A experiência com o Grupo de Referência

Será necessário definir o que compreendo por Grupo de Referência porque esta denominação não está presente nos textos sobre grupos: na verdade, se trata de uma invenção, construída a partir de experiências com grupos, que desenvolvi, no âmbito do SUS, desde 19863.

A minha experiência com grupos, de forma mais sistemática, se iniciou no Ambulatório de Saúde Mental da Vila Brasilância (1986/87), do qual fui o primeiro coordenador. Este Ambulatório acabou por se transformar em um laboratório, por ter uma equipe composta por técnicos que traziam em sua bagagem o referencial da experiência da psiquiatria democrática italiana4 e por técnicos recém-contratados, para a implementação da rede extra-hospitalar em saúde mental, em uma perspectiva de reorientação do modelo hospitalocêntrico, medicalizante, excludente e discriminatório então vigente, no Estado de São Paulo. 

Nesta época eu já operava na interface saúde mental/saúde do trabalhador, de forma que a experiência com grupos na Vila Brasilandia, foi focalizada na organização do que denominei de Grupos de Trabalhadores. A linha de trabalho adotada, era a da não utilização de categorias clínicas (por serem estigmatizadoras), para denominar as atividades grupais realizadas: foi uma opção ideológica que ressaltava, acima de tudo, o fato de que estávamos lidando com indivíduos, e não com psicóticos, neuróticos, alcoolistas, epilépticos5. Por isto que ao invés de Grupos de Psicóticos, Grupos de Neuróticos, Grupos de Alcoolistas, utilizei a categoria Grupos de Trabalhadores. Porque trabalhadores? Pela compreensão do trabalho como elemento estruturante na vida das pessoas, pelo seu significado na construção da sociabilidade e de uma certa forma de estar no mundo. Se era relativamente comum encontrar ali pessoas que nunca tiveram acesso ao mundo do trabalho (por terem sido consideradas improdutivas), mesmo no Grupo de Trabalhadores, teriam a possibilidade de elaborarem, por um lado, a determinação social por detrás da sua exclusão do trabalho e, por outro, visualizar o lado oculto e doentio do mundo do trabalho real (e não o idealizado): todos ali estavam desfiliados dele e os egressos do mundo do trabalho, via de regra, haviam tido as suas crises psíquicas, contraditoriamente, como decorrentes ou agravadas pelo trabalho.

 A partir de 19886, esta minha experiência com grupos teve continuidade em uma outra Unidade de Saúde, onde organizei um Programa de Saúde Mental do Trabalhador. Os grupos de trabalhadores da Vila Brasilândia foram transferidos para esta nova Unidade. Neste processo de transferência, estes grupos assumiram uma nova denominação: Grupos de Referência. 

O que é o Grupo de Referência?

Na fase inicial do trabalho, a composição dos grupos de trabalhadores era mista, com uma equivalência de homens e mulheres. Este aspecto vai ser mantido, ao longo de toda a experiência, com todos os grupos. Com o transcorrer do processo grupal, ficou claro que as pessoas que nunca haviam trabalhado (via de regra, pessoas com maiores dificuldades psíquicas) acabavam por prejudicar o “sub-grupo” dos egressos do mundo do trabalho. Assim, os Grupos de Trabalhadores passaram a corresponder a grupos homogêneos, de trabalhadores egressos do mundo do trabalho.

Também verifiquei que eram muito distintas as vivências dos trabalhadores do setor industrial com os trabalhadores de serviços ou do setor informal. Desta forma, um dos Grupos de Trabalhadores foi formado unicamente por trabalhadores do setor industrial. Este Grupo em particular, foi o que mais avançou no seu processo interno de transformação. O Grupo de Trabalhadores do setor informal, autônomos em sua maioria, vendedores ambulantes, pequenos comerciantes, feirantes – apresentaram uma dinâmica muito diversa, com uma forte tendência à individualização, este grupo enfrentou muita dificuldade em se constituir como coletivo. Isto me fez lembrar da concepção de consciência de Marx7: “os homens são o que produzem e o como produzem”.

Na proposta inicial do trabalho com Grupos de Trabalhadores havia uma tarefa explícita básica: a elaboração coletiva de como continuar a vida dali para frente, diante da exclusão consumada e irreversível do mundo do trabalho, que pressupunha a elaboração das vivências no mundo do trabalho, o resgate das expectativas iniciais (ilusórias), o processo de desilusão e o desfecho da saída dele, por demissão ou afastamento para tratamento da sua doença.

Os encontros eram quinzenais e foi estabelecido um número máximo de 17 participantes em cada grupo (Pichon preconiza o máximo de 22 integrantes por grupo).

 Com o passar do tempo, verifiquei que aquele espaço grupal passou a ser utilizado para a elaboração das dificuldades encontradas na experiência cotidiana do “viver a vida”, estendendo o processo de elaboração para aspectos de toda a ordem, relacionados aos organizadores políticos, ideológicos, institucionais, conjunturais, econômicos e psicológicos. Dessa forma, esse momento grupal, esse espaço coletivo de reflexão passou a ser uma referência na vida destes trabalhadores, permitindo-lhes vivenciar uma experiência instigadora e questionadora dos seus referenciais atuais, desencadeando por meio de um “processo de confrontação interna” a construção de uma atitude re-significadora diante da realidade que o cerca, criando a possibilidade do afloramento de novos referenciais, ideológicos, políticos, sociais e humanitários, que lhes abrirá a perspectiva de re-significar as suas próprias vidas (Marcondes/1992).

Experiência de integração da terapia comunitária com a prática do Grupo de Referência: o “Grupo Qualidade de Vida”

A experiência do Grupo Qualidade de Vida (maio/2007 a março/2008) surgiu como uma resposta à demanda de saúde mental da população referenciada na UBSF Conquista I (aproximadamente, 100.000 pessoas), que utilizavam neuro fármacos ou apresentavam um quadro de sofrimento psíquico significativo, incluindo crises psicóticas. Naquele contexto, não existia nenhem CAPS implantado na região de Sáo Mateus, na Zona Leste do município de São Paulo: dessa forma, havia uma total ausência de dispositivos de cuidado psicossocial, mesmo para os indivíduos em surto psicótico ou com risco importante de suicídio.  Esta experiência denominada de Grupo Qualidade de Vida (Grupo QV) articulou a teoria e a prática do trabalho grupal proposto pela Terapia Comunitária, com a abordagem grupal concebida por Pichón Rivière e Didier Anzieu (Baremblitt, 1982), além do subsídio trazido por Moffat (1984), na utilização da prática grupal no acompanhamento de pessoas em crise psicótica.

Em todas essas abordagens há o mesmo pressuposto básico de que existem forças transformadoras no processo grupal, que são capazes de mudar a visão de mundo dos seus indivíduos. Parte-se da compreensão de que na atualidade existe uma tendência de individualizar as causas do sofrimento psíquico que, na verdade, traduzem a interação com as atribulações da dinâmica da vida social, aqui incluído o mundo do trabalho.

Nesse sentido, o grupo é uma proposta do exercício de um espaço de liberdade, onde pode se dar a desconstrução desta tendência social de individualização, para uma de coletivização (Castel, 1998). Os fios invisíveis das relações grupais são responsáveis por todas as dinâmicas que vão acontecer dentro dele, mas ele deve ocorrer como um espaço onde as pessoas possam sentir que “vale tudo”: no entanto são estabelecidas regras próprias que funcionam à medida que se cria o grupo, do contrário seria impossível que ele existisse.    

Não se trata de um encontro que se faz ao léu, tampouco um espaço de reclamações e de lamúrias, mas de um encontro cujo principal objetivo é a elaboração do processo do viver a vida. Essa é a tarefa explícita e central do grupo.

O papel assumido pelos integrantes do grupo é o de construir alternativas partindo daquilo que são capazes de fazer, sem a vestimenta de máscaras sociais que os impede de serem como realmente são. Trata-se de uma construção coletiva que traduz os potenciais individuais existentes, que muitas vezes podem estar adormecidos ou reprimidos por uma “sociabilidade” que banaliza e desumaniza o humano: daí poder representar um papel de desconstrução coletiva dos estigmas (Goffman, 1980) que estão impregnados em suas vidas.

Assim conduzido e compreendido, o processo grupal contribui para a elaboração e um movimento interno no sentido da transformação da realidade, capaz de ter uma visão crítica sobre ela, entender como se organiza a sociedade, assumindo um pressuposto da recuperação da autoconfiança e da autoestima. 

Inicialmente o trabalho grupal pode significar o mesmo que entrar numa floresta escura, onde a medida que se vai construindo o grupo como referência, esta vai sendo iluminada por uma lanterna que irradia uma visão mais clara do mundo e de si mesmo nesse mundo.

O Grupo QV se fez por si só, se sustentou por si mesmo, se fez objeto de si mesmo: constituiu uma referência na vida de seus integrantes. Foi terapêutico na acepção basagliana, onde a “liberdade é terapêutica” (Basaglia, 1985). 

Como sabemos ada teoria do processo grupal, um grupo sempre deve possuir uma tarefa, que representa a necessidade emergente do coletivo grupal. Porém não é o coordenador que estabelece as regras de um grupo e sim o próprio grupo. Ser coordenador representa explorar a floresta escura com seu embasamento teórico e suas percepções. Seu papel é o de induzir o grupo à tarefa, embora a tarefa necessariamente emerja do grupo. Aqui reside a principal distinção entre as abordagens grupais de Pichón e Anzieu, que denomino de Grupo de Referência, com a da Terapia Comunitária. 

Na Terapia Comunitária, o tema de cada encontro é escolhido dentre um conjunto de temas levantados pelos seus integrantes: o grupo define o “mote”, o foco de cada encontro, que traduz a angústia predominante do grupo naquele momento. 

No Grupo QV o foco é orientado pela interpretação das intervenções do grupo, compreendendo-as como manifestação das angústias conscientes ou inconscientes dos seus participantes. O papel do coordenador será identificar dentre os participantes aqueles que, naquele encontro, operam como porta voz do grupo.

Potencial do Grupo Qualidade de Vida

          A experiência do Grupo QV, inicialmente, era dirigida para pessoas em sofrimento psíquico que procuravam o PSF visando trocar as suas receitas de psicofármacos. Algumas dessas pessoas consumiam a mesma medicação há muitos anos, a maioria, por meses. Além de não haver uma avaliação ou acompanhamento desses pacientes, o único tratamento proposto consistia no uso continuado desses medicamentos. Naturalmente, o conjunto dessas pessoas já apresentavam um certo grau de dependência do medicamento que era, particularmente, acentuada no caso dos benzodiazepínicos (diazepan, clonazepan, lorazepan e bromazepam).  

         A proposta do Grupo QV consistiu em organizar um processo de acompanhamento com uma dupla finalidade: verificar a adequação da conduta medicamentosa atual e oferecer uma alternativa de tratamento não medicamentoso. 

        Por outro lado, a demanda de “casos novos”, isto é, de pessoas vinculadas ao território de abrangência da UBSF Conquista I, com quadros de transtorno mental agudo – quadros paranóides, reagudização de quadros crônicos, pessoas com risco de suicídio, quadros confusionais, dentre outros -, que não conseguiam acesso imediato ao tratamento psiquiátrico, em decorrência da exigüidade dos serviços de referência especializada no cuidado psicossocial da região -, foram incorporadas neste trabalho: por representar, de fato, a única possibilidade imediata de atenção psicossocial disponível.

          Apesar das situações “difíceis” que os participantes do Grupo QV vivenciaram – manifestações de sintomas dissociativos e disruptivos de pessoas em surto psicótico agudo -, o fato é que essas pessoas com graves quadros dissociativos, encontraram no Grupo QV  um espaço de continência e de acolhimento, que desempenhou um papel terapêutico decisivo na recuperação do juízo de realidade e da autoestima. Tais resultados, verificados nessa experiência do Grupo QV, o habilitram como uma alternativa a ser considerada na formatação de um programa de atenção à saúde mental na região.

A coordenação e as lideranças do processo grupal

Já colocamos anteriormente que o papel do coordenador é o de induzir o grupo à tarefa, embora a tarefa necessariamente emerja do grupo. Assume a tarefa com uma atitude não passiva, e sim como protagonista ativo que tira o grupo de seu bloqueio, sendo capaz de perceber o que pode estar travando o grupo. O coordenador deve estar respaldado por uma visão crítica da realidade, conhecendo os meios pelos quais operam a sociedade, bem como com as máscaras sociais por ela exigida. Deve ter a capacidade de compreender a organização desta sociedade.

O papel das lideranças emergentes dentro do processo grupal é de grande importância, já que as lideranças são uma forma de cooperação grupal. O líder chama o grupo para a ação, para a realidade. Pode-se facilmente percebê-lo pela quantidade de vezes que realiza intervenções pertinentes ao seu grupo. Pode também funcionar como auxiliar da coordenação. Um grupo pode ter várias lideranças ressaltando, inclusive, a existência de lideranças negativas, atuando contra o próprio grupo.

Geralmente um líder do grupo, assume seu papel em todos os encontros grupais, no entanto é importante ressaltar que um líder possa ser líder apenas uma única vez. Em síntese, a principal contribuição da liderança consiste em mostrar para os demais integrantes do grupo como a tarefa pode ser executada. 

Um líder “permanente” pode ocasionalmente, em um dos encontros não se manifestar. O coordenador deve perceber, bem como todo grupo, que aquela figura, nada silenciosa, está nesse momento silenciosa, assumindo um papel diferente do habitual. Aqui cumpre ressaltar que um “líder silencioso” pode estar pedindo ajuda, é importante que o grupo atente para esse fato: a hipótese de depressão deve ser afastada.

O transcorrer do processo grupal

O número de intervenções ocorridas dentro de um encontro grupal deve ser muito bem descrito pelo observador, pois qualquer intervenção retrata como o grupo funciona, e como está a dinâmica da interação entre os integrantes do grupo. Através das intervenções é que se pode reconhecer o papel que cada integrante assume no grupo. A quantidade de falas deve ser anotada, assim como atender ao celular, sono, leituras paralelas, cochichos, saídas para beber água. Deve-se observar, por exemplo, que muitas intervenções atrapalham o grupo, à medida que tiram a atenção, ou até mesmo o foco da tarefa. 

O coordenador deve estar atento também para tais questões, pois muitas vezes deverá colocar o fato para o grupo, para evitar tal dinâmica. Pode também acontecer do próprio coordenador realizar intervenções que desestruturam o grupo, tal como, pedir para que desliguem seus celulares, enquanto ele mesmo interrompe o grupo e assim o faz. Chegar atrasado aos encontros e não se manifestar dando uma explicação que mostre ao grupo a sua pertenência pode gerar certa desestruturação grupal. Pois o grupo tem o coordenador como alguém que cuida do grupo. Ele pode então sentir que o seu grupo não é prioridade para o coordenador.

O silêncio é um fato que sempre ocorre dentro de um grupo. Acontece geralmente depois de alguma colocação realizada por um integrante. Deve-se atentar para a fala que precede o silêncio. Pois este pode retratar uma dificuldade grave apontada pelo grupo, onde ninguém tem a resposta. O silêncio não deve ser encarado como negativo, já que ele pode ser o tempo que o grupo necessita naquele momento para elaborar e dar uma resposta concreta sobre a sua realidade. 

O coordenador, consciente da ansiedade do grupo, evita o silêncio, faz um corte temendo que ele seja negativo. O coordenador perspicaz escuta o silêncio grupal, de onde muitas vezes, emergem as lideranças, que irrompem o medo e a permanência do silêncio. Esse pode ser um momento de tamanha ansiedade para os integrantes, capaz de fazer com que uma figura silenciosa, que nunca intervém, realize uma intervenção pertinente à colaboração grupal.  

O Peso dos Ausentes

A ausência dentro de um grupo pode gerar a ansiedade de se estar diante de uma ameaça à desintegração do grupo. Observa-se, ao contrário do que se pensa, uma grande cooperação grupal, quando a ausência é em número maior de participantes, onde o clima será de acolhimento aos presentes. A resposta do grupo poderá ser a dupla jornada, terão que trabalhar por dois, ficando mais unidos, coesos.

O papel de sabotador transforma-se numa questão de sobrevivência grupal, tendo em vista que um sabotador, no meio de um grande número de ausentes, poderia significar a morte do grupo. 

Diante dos espaços vazios, ou das cadeiras vazias, o grupo pode viver o temor da própria morte, gerando um sentimento de culpa. Podendo, no entanto, haver maior comprometimento com as responsabilidades, com as tarefas, onde a sensação permanente é a de acolher-se para se fortalecer. O coordenador do grupo deve atentar para uma atitude que para compensar o vazio grupal faz intervenções ansiosas, impedindo com isto o grupo de elaborar a ausência. 

É fato que a ausência pode ser fator de reestruturação para o grupo, pois com maior cooperação o grupo produzirá mais, poderá partirá para a tarefa mais rapidamente.

Temas Grupais

O tema a ser trabalhado pelo grupo em seus encontros surgirá espontaneamente. O coordenador não deve implantar um tema para ser discutido, mas deve indicar o caminho, ou dar uma direção para que ele surja. Se este for um pressuposto estabelecido rigidamente se transformará numa espécie de enquadre, na qual nada poderá acontecer fora dele. Dessa forma, não se deve estabelecer isto como pressuposto.  O tema poderá surgir como sendo a tarefa a ser cumprida pelo grupo: ou pode representar na forma de pré-tarefa assumida pelo grupo. 

O trabalho grupal no âmbito da saúde do trabalhador

O trabalho grupal, no âmbito de um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CRST), pode representar múltiplas funções: constituir um grupo focal para a elucidação de aspectos da organização e do processo de trabalho aos quais grupos homogêneos de trabalhadores estejam submetidos; para a elaboração de vivências ou situações que promoveram uma “dano afetivo” significativo; para restabelecer a dimensão coletiva da patogênese que está na raiz dos seus agravos à saúde física e mental, superando a tendência à individualização e o problema da vitimização;  como possibilidade de reprodução dessa cultura grupal, no âmbito de sua região de abrangência, para os operadores dos demais dispositivos do SUS, particularmente para o PACS/PSF e para os dispositivos do sistema CAPS. 

Os agentes de saúde do PACS/PSF desempenham uma atividade estratégica e decisiva para a ampliação da cobertura, eficácia e humanização da atenção e promoção da saúde da população do nosso país. Estes trabalhadores da saúde interagem com o cotidiano da vida das pessoas que habitam o território de abrangência da unidade a que estão vinculados. Entram em relação, em decorrência desta sua forma peculiar de trabalho, com a dimensão real e humana da vida destas pessoas: com a forma como estas produzem e reproduzem as suas condições materiais de existência. Interagem com as suas dificuldades, com as suas demandas, com as suas esperanças e com o seu sofrimento. Dessa forma, conseguem, em primeira instância, apreender situações de desgaste físico e mental dos trabalhadores em geral, podendo identificar situações de risco iminente oujá consumado à saúde e encaminhar esses trabalhadores para os CRSTs.

Por outro lado, como já foi explicitado, o trabalho dos ACS/PSF os coloca não apenas em relação profissional com a realidade do seu território, mas sobretudo em relação pessoal com os seus habitantes. Por essa razão necessitam de um espaço grupal específico para a elaboração destas vivências cotidianas, que os expõem a uma acentuada carga psíquica de trabalho. O processo grupal assim desenvolvido, por meio de reuniões quinzenais e, sob supervisão permanente, lhes permitirá aprofundarem a capacidade de “pensar dialeticamente” o seu ambiente e contexto do trabalho, nos seus múltiplos pares dialéticos: o individual/coletivo; o institucional/comunitário; o profissional/social. 

Nesse espaço de reflexão grupal, os agentes de saúde podem assumir uma dupla função de mudança: da sua própria realidade interna enquanto grupo de trabalhadores e como agente de mudança da realidade encontrada no seu território, participando, em conjunto com as forças vivas no interior daquela comunidade, do processo de transformação e humanização da realidade encontrada. Nesse sentido, essa estratégia pode desempenhar um papel muito significativo na reprodução da cultura da saúde do trabalhador no âmbito do seu território de atuação.

Referências bibliográficas:

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  2. ARENDT, H. A condição humana. São Paulo: EDUSP, 1981.
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  4. BASAGLIA, F. A instituição negada. São Paulo, Graal, 1985.
  5. CASTEL, R.. As metamorfoses da questão social. Petrópolis, Vozes, 1998.
  6. GOFFMAN, E. Estigma. Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada.  Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980.
  7. LAPASSADE, G. Grupos, organizações e instituições. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983.
  8. LEWIN, K. Problemas de dinâmica de grupo. São Paulo, Cultrix, 1970.
  9. MARCUSE, H. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
  10. MARX, K. A ideologia alemã. Lisboa, Presença/Martins Fontes, 1979. 
  11. MARX, K. Manuscritos econômicos y filosóficos. Madrid, Alianza Editorial, 1985.
  12. MOFFAT, A. Psicoterapia do Oprimido, São Paulo, Cortez, 1984.
  13. PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. 1983.
  14. SAIDON, O. (org.) Práticas Grupais. Rio de Janeiro, Campus, 1983.
  1. Médico psiquiatra, com atuação em vários dispositivos do sistema CAPS, no período de 1992 (Santos) até 2023 (Limeira). Atuou também em dispositivos da atenção primária em saúde nas regiões do Butantã/Zona Oeste e de São Mateus/Zona Leste, do município de São Paulo. Também atuou no âmbito dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CRTS/RENAST/SUS) ↩︎
  2. Para Marx, sociabilidade é o conjunto das relações sociais (Teses contra Feurbach). Para Comte, sociabilidade é o conjunto das funções psíquicas afetivas mais nobres, os sentimentos (apego, veneração e bondade), que condicionam o comportamento altruístico do homem, a sua forma superior de sentir, pensar e agir sobre o mundo (Système de Politique Positive, 1852). Esta teoria foi sistematizada por Aníbal Silveira que a redenominou de Teoria Sociológica da Personalidade  (1977), que adoto desde o início da minha prática clínica. ↩︎
  3. Participei em 1986 de um grupo formado por técnicos, em sua maior parte vinculada ao SUS, que se propuseram a estudar as bases teóricas e técnicas das práticas grupais.  Este grupo contou com a coordenação e orientação de Di Loreto. Devo a esta orientação a opção por um caminho que foi se revelando, ao longo dos anos, como muito construtivo e gratificante. ↩︎
  4. Um conjunto de técnicos em saúde mental brasileiros conheceram a experiência desenvolvida em Trieste/Itália, alguns destes, Roberto Tykanori, Issa Mercadante e Jonas Melman fizerem parte desta equipe. ↩︎
  5.  O fato de adotarmos categorias não clínicas nas práticas coletivas, na prática da intervenção individual, sobre os sintomas e os agravos à saúde mental das pessoas, éramos, por outro lado, particularmente rigorosos, na utilização damelhor abordagem teórica e técnica para o desvendamento dos fatores patogênicos, no sentido mais ampliado, isto é, incorporando nesta análise desde a  base fisiogenética até aos fatores sociais e da história de vida dos indivíduos. ↩︎
  6. CSI Edgard Mantoanelli, na Freguesia do Ó, o Programa de Saúde Mental do Trabalhador funcionava, diariamente, das 12 às 20 horas (para permitir o acesso de trabalhadores em atividade). Este trabalho contou com a participação de vários sindicatos de trabalhadores, que encaminhavam trabalhadores, com transtornos mentais de suas bases, para esta referência. Este trabalho foi encerrado em 1989, quando assumi a Coordenação Municipal do Programa de Saúde do Trabalhador, da cidade de São Paulo, no contexto da gestão democrático-popular (1989/1992). ↩︎
  7. A consciência é a “linguagem da vida real”. ↩︎