PSICOSES MISTAS, PSICOSES ASSOCIADAS E ENXERTADAS1
As psicoses mistas não são aceitas por todos os autores, mas dentre aqueles que levam em conta esse aspecto há uma notável diferença no critério diagnóstico e que apresentam, de certa maneira, um aspecto contraditório entre si, pelo fato, em nossa opinião, de não se basearem na patogênese dos quadros clínicos.
Temos insistido muito nesse aspecto: quando o psiquiatra se orienta pela descrição dos quadros clínicos, está sujeito a uma grande margem de erro. Um mesmo diagnóstico, portanto, pode ser aplicado a quadros um pouco distintos entre si, gerando assim uma certa confusão na classificação psiquiátrica.
As psicoses mistas, entretanto, existem e se tomarmos um critério rigoroso podemos verificar os vários graus em que esses processos se apresentam.
Já mencionamos a concepção de fases mistas, como no caso da Psicose Maníaco-Depressiva, e das formas mistas, isto é, aqueles quadros em que se apresenta uma depressão e, em seguida, com intervalo ou não, uma excitação psíquica: portanto, Mania e Melancolia associando-se no decurso do mesmo paciente. São dois tipos reconhecidos desde o início da classificação de Kraepelin, e que foram bem estudados por todos os autores.
Há, portanto, na psicose maníaco-depressiva, essa possibilidade de se reunirem as duas fases no mesmo paciente, isto é, não são fases que se apresentam sucessivamente num mesmo paciente, mas que podem combinar-se. Daí surgiu a noção de fase mista.
A psicose mista foi reconhecida, primeiramente, como existente, no quadro da psicose maníaco-depressiva, abreviada como P.M.D. E nesse quadro, como dissemos anteriormente, há que se distinguir esses três aspectos: se é uma forma mista, se é um quadro misto, ou se é uma fase mista. Isso depende do período em que se apresenta essa mudança de um polo para outro, na manifestação clínica.
Ora, a psicose mista não se confunde nem com a fase mista nem com o quadro misto da P.M.D., mas muitos dos autores, especialmente Lange, admitem que a P.M.D. é que dá origem a todos os quadros caracterizados como psicose mista e, inclusive procuraram interpretar os quadros psicóticos benignos de Kleist, como sendo formas mistas, em que há uma participação genética de tendência para a P.M.D. e, uma tendência genética para outro quadro discordante, como por exemplo, a Esquizofrenia. Mas isto é um raciocínio em bases insatisfatórias, com dados incompletos: Lange cita Kleist, mas não conhece Kleist, entretanto, se opunha à terminologia de Kleist. Não aprofundou nenhum estudo de qualquer paciente, que pudesse mostrar que não estava em jogo a tendência genética demonstrada por Kleist, apenas se opunha a isso.
Os autores em geral começaram a pensar em psicose mista a partir dos trabalhos de Gaupp que descreveu quadros clínicos onde podia ser evidenciada uma psicose clássica, constitucional, e uma outra de tipo diferente, quase sempre em plano secundário, mas bem reconhecível no próprio quadro clínico do paciente. Gaupp criou o termo psicose mista em 1926 e publicou vários trabalhos nesse sentido. Dessa forma, os autores, em geral, reconheceram, que para além das formas conhecidas desde Kraepelin – as formas clássicas, e as formas mistas da P.M.D. -, era necessário levar em conta as psicoses mistas como outras entidades mórbidas constitucionais.
Realmente os autores se limitavam, quase todos, a evidenciar essa fusão de psicoses (psicose mista), em relação à P.M.D. e à epilepsia. De fato, são as duas condições mórbidas mais frequentes na população média e se há fusão de tendências genéticas, seria mais provável que ambas tendências se reúnam no mesmo paciente. Depois se pensou não apenas a P.M.D. com a Epilepsia, mas com a Esquizofrenia. Assim, aquelas concepções originárias de Kraepelin, Bleuler e demais, onde a Esquizofrenia se apresenta como um tipo de alteração oposta à P.M.D., deixou de subsistir: na verdade, sem haver oposição.
Mais recentemente, Meduna quando criou o método de tratamento provocando convulsões pelo cardiazol, partiu do pressuposto de que havia um antagonismo ou oposição, ou exclusão mútua, entre a esquizofrenia e a epilepsia. Daí a sua tentativa de determinar num paciente as convulsões: no seu modo de entender, epilepsia seria uma tendência contrária à esquizofrenia e dessa forma podendo contribuir para a sua remissão.
Mas apareceram casos, com frequência, na literatura, em que há associação entre esquizofrenia e epilepsia; não há, portanto, antagonismo também entre elas e se compreendermos que o elemento genético é o que prevalece em todos os quadros constitucionais, vemos que é muito possível, na mesma família, na mesma cepa, haver fusão de tendência genética para um quadro e para outro e daí podem manifestar-se num mesmo paciente. Na realidade, encontramos com muita frequência na literatura a descrição de “quadros mistos”, mas também aí temos que levar em conta o critério usado para diagnóstico.
Em nosso modo de ver, a psicose mista é um quadro clínico que depende da tendência genética relacionada com os três quadros constitucionais clássicos – a epilepsia, a P.M.D. e a esquizofrenia -, que se fundem, por tendência genética convergente na família, num mesmo paciente.
Em outras condições já não se pode chamar psicose mista. Seria a psicose associada, que é um outro aspecto, uma outra maneira de se apresentar o quadro clínico, fundindo dois tipos diferentes de psicoses. E há, ainda, a chamada psicose enxertada.
Assim, consideramos a psicose mista propriamente, as psicoses associadas (não necessariamente duas psicoses endógenas) e a psicose enxertada que é um termo pouco técnico, que corresponde ao que se conhece como enxerto: há um quadro permanente ao qual se apresenta, esporadicamente, um outro quadro que não é permanente, que é variável e remissível.
Portanto, só consideramos psicose mista, quando os dois tipos psicóticos evidenciados correspondem a quadros clássicos constitucionais, necessariamente endógenos, de base genética.
A psicose será enxertada se ocorrer um surto psicótico em um paciente com quadro permanente, como a epilepsia ou a oligofrenia, caracterizando, portanto, um quadro ocasional. É possível também que sejam duas formas adquiridas, formas não endógenas, então serão associadas simplesmente, e isto realmente ocorre, não é raro.
Devemos distinguir esses quadros das formas combinadas de Kleist. Por exemplo, temos na classificação de Kleist, as formas benignas que manifestam uma associação de polos entre si, em que o indivíduo apresenta um polo e, em seguida outro; uma acinesia acentuada num período, e depois um período de hipercinesia; ocorre uma sucessão de fases, o que corresponde mais ou menos o que se passa na P.M.D. Pode acontecer que o indivíduo tenha uma forma progressiva, as formas de esquizofrenia de Kleist, em que o processo se propaga depois para outro sistema: daí temos a psicose assistemática de Kleist. Assistemática, porque ocorre uma série de manifestações clínicas, que corresponde à participação de outros sistemas cerebrais, que não são aqueles que definiram o quadro clínico da doença. Esse é progressivo e assistemático porque apanha mais de um sistema cerebral ao mesmo tempo.
E há, ainda, as formas de psicose progressiva que Kleist chamou de extensivas, que atingem mais de uma esfera da personalidade: a esfera da afetividade, por exemplo, com reações afetivas intensas, depois passa para outra esfera, a esfera conativa, podendo dar um aspecto demencial se abrange também a esfera intelectual.
Essas psicoses são todas progressivas, mas não são psicoses mistas; aí o processo decorre do tipo de carga genética seguramente, mas é uma progressão do mesmo distúrbio inicial e não uma fusão de quadros clínicos distintos.
Por outro lado, pode ocorrer psicoses benignas de dois tipos diversos, que se associam no paciente. Nesse caso, a psicose associada constitui uma forma mista, que corresponde à forma mista da P.M.D., ou, por exemplo, o indivíduo apresenta elementos da catatonia, digamos assim, e um quadro momentâneo de forma benigna. Quer dizer, a tendência latente se manifesta na vigência de um quadro progressivo que também obedece a uma tendência constitucional e concordante.
Outra questão que temos de considerar é a chamada psicose enxertada. Essa terminologia apareceu desde Kraepelin. No entanto, em 1921, ele apresenta casos em que o paciente tinha oligofrenia, deficiência mental endógena, e apresentou períodos que ele chamou de hebefrenia, era uma forma hebefrênica que ele chamou enxertada.
Depois que apareceu a terminologia de Bleuler que substituiu os termos hebefrenia, catatonia, ou demência precoce, por esquizofrenia, ficou mais fácil ainda os autores descreverem formas enxertadas. Então, um paciente que tem uma deficiência mental, ou por lesão cerebral, ou por oligofrenia (que são coisas distintas) podem, periodicamente, apresentar uma excitação psíquica intensa, uma reação de agressividade ou um quadro confusional, que decorre da própria doença, em si própria e não como um enxerto. De maneira que não podemos nesse caso considerar uma esquizofrenia enxertada, e a maioria dos autores descrevem a esquizofrenia enxertada. Quando lemos a observação clínica em que se baseia essa classificação, vemos que são episódios da própria doença, da própria condição mórbida do paciente e não um enxerto, não é uma psicose que aparece momentaneamente. Assim, descrevem os deficientes mentais eréticos, ou os deprimidos, os abúlicos, mas são manifestações que predominam em certa fase do quadro clínico, como constituinte do próprio quadro, e não como uma forma que se apresente momentaneamente enxertada no quadro permanente.
De qualquer forma, cumpre reforçar que há possibilidade de fusão de quadros clínicos e isto é mais frequente entre aquelas formas clínicas mais difundidas na população média. Assim, entre a epilepsia, a P.M.D. e a esquizofrenia, há uma certa correlação quanto à distribuição na população média. E sabemos que é muito mais frequente a epilepsia do que a P.M.D. e que as formas fásicas são ainda mais frequentes do que a esquizofrenia. De modo que, teoricamente, podemos inclusive supor que possa haver fusão das três tendências genéticas, dos três quadros constitucionais.
Na figura abaixo representamos em circulos as três tendências genéticas relacionadas com os três grupos constitucionais.
A e B – relativamente frequentes
C – relativamente rara
D – não satisfatoriamente demonstrada
Temos aqui a epilepsia com um círculo maior, porque é a que é mais difundida na população; o círculo da P.M.D. ou das doenças fásicas um pouco menor e o círculo da esquizofrenia, o menor de todos por ser a menos difundida na população geral.
Assim, há uma maior possibilidade de encontramos a associação da epilepsia e a psicose maníaco-depressiva (todos os autores reconhecem esse aspecto), mas há também a possibilidade de encontrarmos epilepsia e esquizofrenia, o que não é raro e às vezes se manifesta como tendência genética no paciente, quando no decorrer da insulinoterapia ou outro tratamento biológico ele apresenta convulsões.
Entre a psicose maníaco-depressiva e a esquizofrenia, há uma possibilidade de fusão maior do que entre a epilepsia e a esquizofrenia. Finalmente, existe uma possibilidade teórica de que as três formas estejam presentes em um mesmo paciente.
Em sintese, para considerar-se uma psicose mista é necessário, portanto, que se reconheça os sintomas característicos dos vários quadros que a constituem.
Outra questão, que não se lembra, é a de que pode haver fusão entre uma forma clássica progressiva de Kleist e uma forma benigna.
Tivemos um paciente que tinha uma psicose mista, no caso era uma Alucinose Aguda que se apresentou num paciente esquizofrênico: aqui temos a fusão de uma forma clássica e de uma forma benigna.
Tivemos um paciente também que teve duas formas associadas, em que apresentou uma tendência para a P.M.D, apresentou um quadro de alcoolismo do tipo dipsomania e depois teve um quadro confusional intenso e foi internado nesse quadro confusional. Depois, verificamos que havia uma série de tendências que estavam presentes no quadro dele: uma forma maníaco-depressiva com períodos de exaltação do humor e depressão, e um quadro delirante, ligado com um aspecto confusional. Aqui vemos a possibilidade de fundir-se um quadro desses clássicos, com outros associados.
Um outro paciente, um esquizofrênico catatônico em tratamento pelo cardiazol e teve uma remissão que consideramos parcial, depois de algum tempo ele voltou para o hospital, mas com um quadro agudo de confusão mental, portanto, com dois tipos de sintomas presentes no quadro clínico.
Em outro caso, o paciente tinha uma esquizofrenia confusional e apresentou um quadro confusional decorrente de um distúrbio autotóxico tireoidiano; esse paciente tinha vozes imperativas, mas só na vigência do quadro agudo e depois que passou a fase aguda ele continuou como esquizofrênico, com um quadro de carência de iniciativa, principalmente, e não remitiu com o cardiazol, naquela ocasião. Tinha um quadro clínico agudo que foi verificado pela bioquímica inclusive.
Uma outra paciente apresentou um quadro neurológico, com confusão mental acentuada, com ideias inteiramente incoordenadas, com uma dificuldade grande de expressão e um quadro cerebelar. Pensamos num processo de hipertensão intracraniana; após a remissão do quadro confusional agudo, continuou com sintomas cerebelares e com alterações também da expressão, com disartria e com alterações neurológicas da visão. Foi feito o liquor que revelou um tipo de paralisia geral. O quadro clínico era bem característico de um processo expansivo do ângulo ponto cerebelar. Pensamos que houvesse uma goma, apesar do líquor ser positivo, porque a goma não dá essa alteração liquórica desse tipo. A paciente veio a falecer depois. Tinha o quadro clássico da paralisia geral e apresentava também um aneurisma de ângulo ponto cerebelar, que não era goma e sim um processo neurológico, não adquirido. Como vemos, há realmente a possibilidade de vários quadros se confundirem.
O paciente a seguir apresentava uma forma de esquizofrenia, embotamento incoerente, mas apresentava períodos de alucinose aguda: tinha automatismo mental, que descrevia muito bem. Ele escrevia dezenas de cartas e no envelope ele punha sempre isto: “seja entre pessoas conhecidas, sendo médicos ou advogados, quem tem não sabe o que tem, quem rouba entrega para alguém (de próprias mãos)”. Quanto a esse segundo trecho, habitualmente, ele dizia: “quem perde não sabe o que tem e quem acha entrega para alguém”. Nisso ele insistia muito e, isso, é consequência de automatismo mental, que ele tinha na fase aguda, mas isso ele escrevia várias vezes, há uma certa perseveração, uma tendência muito acentuada para repetir o mesmo elemento, uma estereotipia. Ainda estava internado no Juquery, quando escreveu uma carta datada de 15/11/1944.
“Espero que seja tomado providências pelas autoridades. Eu desde abril acho-me no hospital, no qual nesse tempo roubaram as minhas economias e minha propriedade, ao qual faltam com respeito de minha mulher e família. Nesse dia cheguei a ver eles dentro do terreno do Hospital, com o transmissor radiográfico. Zombaram de minha pessoa e disseram que seria vítima, assim como tenho sido. Também falaram Tiago dos Santos e Sra. do Sr. Adão Sabino (que é outro paciente internado) e muitas outras vítimas. E falavam também no Dr. Zeferino do Amaral, que ele não sabia quem era, então era um nome que ele dizia que tinha ouvido mas que não sabia quem era, mas falavam no cérebro dele”. “Com o transmissor radiográfico, tirado ou roubado da Light e com isso eles também em horas vagas no escritório da Light, às ocultas atacam os detidos, na delegacia. Com o transmissor gráfico, no escritório, eles costumam gravar cheques, cadernetas das caixas econômicas, fichas, escrituras das propriedades e até documentos de autoridades. São clientes das repartições públicas e particulares, do próprio governo. Nesse dia eu cheguei a adotar o transmissor radiográfico no terreiro. Encontrou várias escrituras nas quais a escritura de Joaquim Domingos (era irmão dele), Adão Sabino e ao qual não conheço, Dr. Zeferino do Amaral. Do monsenhor Nicolau Constantino, de muitas pessoas por ele registrado. Isto por abuso deles, eu cheguei a ver, a qual me convidaram e me falaram que eu fosse falar para quem eu quisesse. Com o transmissor eles atacam a distância de quilômetros, dinheiro ir bastante em seus poderes, o qual falaram que era fácil de obter, de retirar. Fazer até papel para desquite. Tudo feito com transmissor gráfico e assinatura de Juiz de Direito. Eu cheguei a conhecer Nelson Pontes (é outro paciente internado), Gregório Pontes, a qual falaram que os companheiros eram Joaquim Rodrigues Pontes e filho, (então dizia dos pacientes internados lá, em que tinham participados dessa ação, que sofriam a ação).”
“Foram queixa e são testemunhas daquelas pessoas. Transmissor radiográfico, estudei esse proverbio raro facilitar, trair, falar e gravar. Travessar zuar, caligrafar. Transmitir, roubar, copiar. Transpassar zombar e bravejar. Transportar zombar e roubar e mostrar” (e assinou depois). Já escrevi muitos, tenho certeza de que tem o contato com autoridades e controlam o telefone centrais como eles convém. Tudo peguei por eles” (quer dizer, tudo foi transmissão pelo automatismo mental). Isso foi feito em novembro de 1944, em dezembro ele escreveu uma outra carta numa folha de anotação da enfermagem, em que ele anotou lá “Hospital de Juqueri, dezembro de 1944” mas as queixas são quase as mesmas, há os mesmos elementos, havendo uma constância do quadro. Ele tem aquela preocupação de entregar em mãos próprias, para evitar que sumisse no correio.
Esse paciente teve uma remissão completa desse quadro, ele reconhecia que aquilo era um distúrbio, mas continuava com o distúrbio incoerente e progressivo. De modo que notem que há dois aspectos bem claros no paciente: uma forma que é constante, que é progressiva, e outra com surtos alucinatórios: uma forma progressiva e uma forma benigna de Kleist.
Um outro paciente tinha as três formas reunidas:
O leitor, lendo com atenção essas notas e a “Relíquia”, de Eça de Queiroz, ficará sendo um circo. Isso era um volante, que ele andou distribuindo no trem em Franco da Rocha.
Esse paciente tinha isso, apresentando uma certa desagregação, notem uma excitação psíquica, essas associações de palavras e sílabas, um ar meio misterioso. Alguns meses depois foi internado. Tinha períodos com essa verbigeração intensa, fazia trocadilhos, com uma excitação psíquica muito grande, com fugas de palavras como na mania. Depois tinha uma fase em que entrava em depressão, mas não cedia completamente. Nesse período, mostrava uma certa desagregação, quase uma salada de palavras sem nexo, uma com as outras, e com sentido simbólico misterioso. Não apresentava nenhum distúrbio do tipo automatismo mental, mas tinha uma perseveração muito intensa e havia referência na sua anamnese de um quadro clínico com crises de ausência, convulsões na primeira infância, e tinha uma viscosidade muito acentuada. Era minucioso, fez autógrafos que dava quase que um livro, cada passo descrevia autógrafos consecutivos, mas nesses autógrafos havia uma certa perseveração, uma manutenção quase do mesmo tema variando apenas a maneira como ele apresentava os dados, associava as palavras e as sílabas, e havia períodos acentuados de agressividade intensa. Esse paciente seria tomado por alguns autores como tendo psicose epiléptica porque realmente ele tinha um quadro psicótico com desagregação intensa, com agressividade intensa.
Ele tinha quase constantemente: perseveração, minuciosidade, prolixidade, tendência agressiva, em certa maneira, um caráter irônico, além de uma periódica fase de associação de ideias rápidas. Periodicamente, tinha mesmo uma excitação tão grande que chegava à fuga de ideias e uma prolixidade intensa, prolixidade que mantinha constantemente. Havia depressão que se alternava com a excitação, e às vezes, independentemente desse aspecto, tinha períodos de agressividade. Era um indivíduo muito inteligente, tinha concluído o curso ginasial e escrevia até bem, os autógrafos dele são interessantes por esse aspecto.
Notem, então, que nesse caso podia ser verificado cada grupo de sintomas como filiado a um tipo especial, genético: a epilepsia, essa forma de esquizofrenia e a P. M. D. Em dois pacientes tivemos bem claramente essa concomitância de ciclos heredológicos diversos.
Um outro paciente foi internado com uma psicose aguda, estava numa fase confusional em regressão, era de hábito pícnico e vimos depois pela anamnese aquela tendência para a P.M.D., a forma timopática de Bumke. Entrou em estado confusional, com certa depressão, desorientado quanto ao lugar e ao tempo, dizia que estava trabalhando no campo de aviação em São Paulo, quando foi levado para lá e que havia adoecido fazia três meses. Ele referiu ao psiquiatra que o examinou no exame de entrada, alucinações auditivas e visuais – o psiquiatra anotou alucinações auditivas e, segundo refere, visuais também, quer dizer, houve um fenômeno tóxico ao que parece. Sentia-se “perturbado da cabeça” e com grande “confusão do pensamento” atualmente admitindo ter melhorado. Isso foi em setembro de 1943. Não havia nenhuma alteração nos reflexos pupilares, mas tomado assim de rotina. O exame somático foi o interno quem fez a observação; tinha tremores, de compleição robusta, ângulo de Xarpi maior do que 90°, portanto, hábito picnico, com ligeiro tremor nas mãos. Com ferimentos nos supercílios que ele atribuiu a quedas. Posteriormente, o oftalmologista verificou uma alteração no reflexo consensual e convergência, o que sugere uma sequela de encefalite.
Esse paciente não entrou em estado agudo e depois ele referia bem o quadro clínico; estava deprimido no hospital e justificava isto, por ter consciência da própria situação de internado, mas podemos verificar que o surto depressivo, se instalara antes do episódio que determinou a internação. O estudo clínico do caso esclarecia bem tratar-se de um quadro clínico com heredologia mista, que reage com surtos de dipsomania ante as tendências constitucionais, associando ainda episódios heterotóxicos, dos quais os dois últimos se mostraram acentuados a ponto de exigirem internação. Ele foi internado num hospital, depois esteve lá no Juqueri. Achava-se ainda obnubilado ao entrar, porém, reconheceu o ambiente e dava informes relativos a si próprio, informes esses que foram confirmados ultimamente. Revelava a incidência de alucinações auditivas temáticas, já então em declínio quando foi internado. No surto antecedente havia também ocorrido alucinações auditivas terrificantes e alucinações visuais oníricas. Como fator patoplástico dos dois surtos recentes foi comprovada uma alteração de funções hepaticas. Para explicar o desvio do comportamento a hipótese mais provável é a de encefalite na infância, evidenciada pelo exame neurooftalmológico que fora solicitado na ocasião. Atuando em indivíduo constitucionalmente do tipo pícnico ou timopático de Bumke, tal ocorrência infecciosa remota seria responsável pelo transtorno instintivo geral, essa tendência periódica para beber a qual tudo seria orientado pelo feitio endógeno da personalidade. Há referência de irmãos que tem o mesmo tipo somático e tendência para depressão e exaltação afetiva, tipo P.M.D., portanto. Havia hipótese de distireoidismo porque havia uma alteração discreta no metabolismo basal, havia tremores falangeanos e a taquicardia também, mas isso seria um aspecto coadjuvante de origem autotóxica. O paciente apresentou remissão completa do quadro e pudemos então reconstituir. Ele disse que desta vez foi internado porque trabalhava no aeroporto na faxina e foi para a pista e começou a dar sinal aos aviões. Isso criou uma confusão tremenda e imediatamente ele foi apanhado, mas ele achava que podia fazer isso, que competia a ele, que ele não devia trabalhar como faxineiro, mas sim na parte mais importante que é a pista, governando os aviões. Foi internado em um outro hospital, antes de ir para o Juquery. Naquela ocasião obtivemos a ficha do outro hospital, e como ele era alcoolista foi feito o tratamento por álcool endovenoso, tendência para modificar o comportamento para ter a euforia a sensação do álcool sem ingerir álcool. A administração do álcool endovenoso era em dose decrescente, solução a 33% em soro glicosado; foram feitas seis injeções espaçadas, no final dizia que um mês depois “o tratamento decorreu sem novidades, exceto a esclerose das veias no local das injeções, do mesmo modo que para outros pacientes. Diz que as injeções lhe foram muito proveitosas dando um bem-estar geral e que no momento em que eram aplicadas tinha a mesma sensação de que quando bebia, porém, sem ter a menor sensação de embriaguez. Viu diversos casos de alcoolismo no pavilhão, e inteirou-se bem deles, e isso servira como exemplo do futuro que lhe esperava se continuasse a beber. Era, entretanto, uma dipsomania, tinha outros sintomas tóxicos, tinha uma encefalite de infância, que foi verificado depois pelo exame neurooftalmológico e de maneira que havia uma série de circunstâncias que foram deixadas de parte porque o fator essencial no momento era o alcoolismo. Então nesse caso, vemos primeiramente, uma tendência genética para o grupo da psicose maníaco-depressiva, forma fásica; e uma constituição que determinou distúrbios periódicos, que seria a dipsomania. A dipsomania seria, segundo Kleist, uma forma benigna associada com a encefalite epidêmica; depois uma forma confusional autotóxica ou heterotóxica ocasional, com um quadro de confusão mental, associado com este quadro clínico. Portanto, havia uma tendência genética vinculada à psicose maníaco-depressiva, tinha a dipsomania, e tinha um quadro decorrente da encefalite, além de um quadro confusional agudo. Portanto, apresentava uma sucessão de psicoses (psicose associada): eram dois tipos de psicose que não dependiam, necessariamente, da carga genética. Esse caso, portanto, não era uma psicose mista. A psicose Mista subentende que as duas são de ordem genética.
Um outro paciente, internado no Juqueri, parecia ser do tipo atlético, mas era leptossômico pela verificação, segundo Viola. Apresentou uma forma simples cuja descrição seria essa: “Esquizofrenia, variedade catatônica – hipocinética; tipo somático longilíneo e início dos distúrbios um ano antes do tratamento. Remissão completa com o método de von Meduna. Reinternação dois meses depois da intercorrência. Esse paciente foi anotado aqui com os pacientes que estavam com remissão parcial. Na parte clínica, apresentava precária orientação quanto ao mundo objetivo, ao tempo, falseada a noção do próprio mundo subjetivo, alucinações auditivas com cochichamento, elaboração intelectual sem espontaneidade, aparentemente morosa e fracionária quando provocada, contradições grosseiras de tipo alógico, embotamento em geral quanto aos meios de expressão; tendência a perseveração de atitude e de posição; total deficiência de iniciativa; aparente embotamento afetivo, líquor sem alterações. Diagnóstico: esquizofrenia forma catatônica, variante hipocinética. Os tratamentos de rotina em nada modificaram o quadro do paciente. O tratamento naquela ocasião era injeção de proteínas intramuscular, proteína de mel, proteína do leite, ou na veia, consistia no método piretogênico, enfim. O tratamento de rotina de nada modificou o quadro do paciente, o qual, começou a ser submetido a tratamento convulsivante. Logo após o inicio do tratamento denotou interesse pelas próprias condições, evoluindo rapidamente para a remissão integral, em novembro de 1937. Conservou-se em plena remissão integral até a data da alta, em dezembro de 1937. Em 21 de janeiro do ano seguinte contraiu infecção febril de aparência gripal; no dia seguinte irromperam alucinações auditivas intensas e polimorfas e agitação psicomotora brutal. Com esse quadro reentrou para o Hospital em 5 de fevereiro de 1938. Denotava ao exame direto, ideias delirantes absurdas, externadas com uma logorreia incoercível e incessante; o conjunto de sintomas concordava com os dados da anamnese objetiva e fazia pensar em encefalite psicótica de Marchand, aguda. Procedido o exame de líquor revelou estas alterações discretas, porém características da psicose, uma pleiocitose, aumento de Beinjoim coloidal. Cinco dias depois da internação o paciente começou a retornar ao estado normal de forma que no findar da quinzena estava em plena remissão.
Na segunda observação psiquiátrica anotamos: orientação alopsíquica integral, tem precisão nos informes referentes à própria personalidade, o que retifica os dados anotados como primeira internação; nega distúrbios perceptivos atuais, refere-os como pregressos, tendo irrompido subitamente cerca de dezesseis dias antes da internação. Assumiam caráter de vozes temáticas, algumas injurias, outras apenas irônicas. Alega reconhecer o atual surto mórbido e que se achava febril quando irrompeu o surto. Elaboração intelectual aparentemente sem distúrbios intrínsecos, expressão sem anormalidades, difícil de avaliar no momento atual a capacidade de empreendimento, porque está recentemente no hospital, todavia o paciente pedia para sair, alegando que se achava de novo inteiramente normalizado, no estado habitual. Aparentemente conservada a afetividade. Alterações do líquor discretas. O diagnóstico, então, foi esse: episódio psicótico agudo em paciente esquizofrênico. Ficou uma dúvida se apresentou uma remissão completa ou não. De qualquer forma, houve nesse período uma psicose enxertada, um quadro ocasional que irrompeu na vigência da psicose esquizofrênica.
Observem que há várias possibilidades nesse terreno da chamada psicose mista. Pode haver realmente uma psicose mista onde há fusão de dois quadros genéticos e pode haver uma psicose enxertada, em que o enxerto seria no paciente esquizofrênico. Pode haver psicoses que se associam apenas entre si e que não são mistas, são quadros progressivos e sistemáticos, e que envolvem outras áreas cerebrais no processo patológico; então seria uma evolução do quadro, uma progressão e não um enxerto ou uma fusão de quadros clínicos.
Também podemos ver que é possível que apareçam, com mais frequência, casos de fusão de psicoses benignas com outros tipos diversos. A questão é tomarmos o critério patogênico, porque pela descrição, vamos considerar como sendo alucinose um quadro que não é alucinose, pode ser uma reação intempestiva indicada por vozes imperativas: não é uma agressividade do indivíduo, mas uma reação diante de um estímulo patológico.
- Texto organizado por Roberto Fasano Neto, em 2003, a partir de aula de Aníbal Silveira proferida em 12/08/71, em Campinas, sem referência de quem a compilou, sendo revista, em 13/12/22, por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flávio Vivacqua, Francisco Drumond de Marcondes de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano Neto. ↩︎