PSICOSES INFECCIOSAS EM GERAL. NEUROSSÍFILIS1.
A utilização do critério descritivo dificulta a distinção dos vários quadros psiquiátricos. Porque, qualquer que seja o quadro clínico, vamos encontrar muita coisa em comum e isso dificulta a divisão dos quadros quanto à etiologia, quanto ao desencadeamento, quanto à evolução, quanto à orientação prognóstica e terapêutica.
Todos esses critérios levariam o psiquiatra a classificar o mesmo quadro clínico em rubricas diferentes ou, então, vários quadros díspares entre si numa única classificação, por causa da etiologia ou por causa da configuração clínica ou fatores que entram em jogo, sejam exógenos ou endógenos. Isso, tem dificultado a compreensão da classificação psiquiátrica.
Importante salientar que a classificação psiquiátrica não tem a finalidade, apenas, de estabelecer quadros estanques. O que se procura compreender é um certo grupo de dinamismos mórbidos que implicam uma certa configuração clínica que, ao mesmo tempo, permita uma orientação terapêutica. Sem isto não adianta fazer uma classificação.
O que deve ser levado em conta são os dinamismos gerais dos quadros clínicos: a sua patogenia. Se usarmos o critério patogênico verificamos que é fundamental, de qualquer ângulo que se analise o problema, o fator genético. Todas as configurações clínicas são compreensíveis à luz da genética. Todas as etiologias que possam interferir num caso individual são também interpretáveis à luz da genética. Assim, o único elemento que nos parece estável, permanente e indispensável, em qualquer quadro clínico, é o da patogênese, considerado sob o aspecto do genoma.
Nesse sentido, procuramos fazer uma classificação (Quadro I) levando em conta dois fatores, quanto à participação genética no quadro clínico, quer no seu desencadeamento, quer na sua configuração.
No caso do quadro decorrer de uma fator exógeno consideramos mais indicado fazer uma classificação relacionável aos vários métodos de orientação terapêutica.
Quadro I – CLASSIFICAÇÃO PSIQUIÁTRICA BASEADA NA GENÉTICA HUMANA
- PSICOSE DE ORIGEM INFECCIOSA PREDOMINANTE
A origem infecciosa não exclui o componente genético que dá o colorido, a frequência do quadro clínico e a susceptibilidade aos vários fatores patológicos.
- Meningo-encefalite difusa sifilítica (P.G.)
- Neuro-sífilis em geral.
- Neuroaxite epidêmica ou encefalite epidêmica
- Psicose por doença infecciosa em geral.
- PSICOSE DE ORIGEM TÓXICA PREDOMINANTE
Que pode estar associada à infecção, tendo uma participação maior da carga genética do que no grupo anterior.
- Psicose por hetero-intoxicação acidental (por exemplo, profissional)
- Psicose por auto-intoxicação endócrina ou metabólica
- CONDIÇÕES ENDÓGENAS CONSTITUCIONAIS
Grupo considerado, classicamente, como constitucionais e mais caracterizado quanto à participação genética.
- Epilepsia
- Psicose Maniaco Depressiva
- Esquizofrenia
- Parafrenia
- Paranoia
- Oligofrenia propriamente dita (endógena)
- Psicose mista. Quadro associado ou enxertado.
- CONDIÇÕES ENDÓGENAS MARGINAIS (POR DISPOSIÇÃO GENÉTICA LATENTE)
Grupo com menor participação genética, embora seja evidente, constante e fundamental. O quadro clínico pode ter um colorido variável que se assemelha com as psicoses constitucionais e com o grupo infeccioso ou tóxico. Denominamos marginais porque não é a constituição do indivíduo que é o fundamental – de modo que se pudesse prever na fase pré-psicótica o tipo de psicose que apresentaria -, mas sim uma disposição latente que é genética e que confere o colorido, o desencadeamento e a evolução do quadro clínico.
- Psicose diatética (Kleist)
- Personalidade Psicopática
- Toxicofilia
- Neurose
- Psicose reativa. Quadro “psicógeno” em sentido estrito.
- Convulsões sintomáticas
- Delírio alucinatório crônico (Roxo)
- QUADROS DEFICITÁRIOS POR LESÕES FOCAIS OU ABIOTRÓFICAS DO CÉREBRO
Nesse Grupo há uma participação menor da parte genética, com um transtorno do comportamento habitual do indivíduo quando surge a psicose. Aqui ocorrem lesões cerebrais ou lesões abiotróficas do cérebro.
- Doença de Alzheimer, de Pick, arterioesclerose cerebral.
- Demência senil propriamente dita (Presbiofrenia)
- Lesões focais do cérebro, em geral.
- Deficiência mental por encefalopatia.
Desde o primeiro ao último grupo, temos participação do ambiente, mas ambiente aqui no caso, é entendido como ambiente físico em geral. O ambiente no Grupo V é o ambiente citológico: no entanto, de qualquer maneira, é ambiente em relação ao genoma. O esquema de Luxemburger (Figura II) distingue os elementos da disposição genética e do ambiente.
Figura I – Esquema de interdependência entre fatores ambienciais e genotípicos da personalidade segundo Luxemburger em estado hígido e em quadros mórbidos
Os da disposição genética corresponde à tendência geral latente no indivíduo e o ambiente corresponde ou ao meio externo ou ao meio celular que, também, em relação ao sistema nervoso, é externo.
Figura II2 – Como os diferentes quadros psiquiátricos referidos na Classificação apresentada no Quadro I acima, se comportam com relação aos fatores endógenos, aos componentes exógenos (ambientais e/ou somatógenos) e; quanto à reversibilidade dos quadros (espontânea ou terapêutica):
Legenda: Linha de cor vermelha – Fatores endógenos: 3, abertamente constitucionais; 2, latente, como predisposição; 1, demonstrável, mas não óbvios.
Linha de cor azul – Componentes exógenos, ambientais e/ou somatógenos: 3, necessários e determinados pelo cérebro, tóxicos ou estruturais; 2, indireto; 1, ocasional
Linha de cor preta – Reversibilidade, espontânea ou terapêutica: 4, permanente, imediata; 3, permanente, mas lenta; 2, parcial ou temporária; 1, duvidosa.
Curva (linha de cor vermelha) feita empiricamente, não com tratamento estatístico, embora baseada em mais de dois mil e cem casos. No grupo I (Psicoses de origem infecciosa predominante) há uma participação maior do ambiente e menor do genoma. No grupo III (Condições endógenas constitucionais) a participação genética atinge o máximo, especialmente, no grupo que corresponde à esquizofrenia, à parafrenia e à psicose maníaco depressiva. Depois há uma redução da tendência genética, mas ainda encontramos no grupo IV (Condições endógenas marginais), das psicoses latentes, uma participação grande do fator genético. E, finalmente, o componente genético no grupo V (Quadros deficitários por lesões focais ou abiotróficas do cérebro) é muito reduzido, com maior participação do ambiente citológico, com alteração celular, não necessariamente, abiotrófica. Se quisermos levar em conta o fator de remissão terapêutica (linha de cor preta), observamos que essa curva corre em sentido oposto da participação genética nos grupos I e II. É, ainda, de certa maneira, oposta na parte principal do grupo constitucional (III). No grupo IV acontece o contrário, ela concorda, praticamente, com a curva da tendência genética, porque aqui o fator genético se manifesta de forma diversa, isto é, com tendência para a remissão (a carga genética não leva para o estado progressivo de doença mental, mas, ao contrário, a tendência é benigna para a remissão). Denominamos o grupo IV de quadros endógenos marginais porque o quadro clínico tem semelhança com os quadros constitucionais, porque a esfera da personalidade atingida é a mesma. O último grupo, que trata de lesões cerebrais adquiridas ou de lesões abiotróficas, de base genética, não se pode esperar uma remissão. A participação do ambiente (outra curva, linha de cor azul) não vai, exatamente, em sentido contrário ao da tendência genética, mas ela apresenta um polo diverso, uma tendência diversa daquela que se expressa pelo genoma. Temos a participação grande do ambiente nas psicoses infecciosas e nas psicoses tóxicas, mas como ambiente celular.
Reiteramos a importância da distinção do quadro clínico, quanto a sua configuração, para uma classificação adequada em função da terapêutica e, se possível, no sentido preventivo que é o fundamental em Psiquiatria, embora, nem sempre, viável.
Essa distribuição mostra, primeiramente, os vários grupos de psicoses. Em primeiro lugar, temos aquelas mais características quanto ao fator ambiencial. Na meningo-encefalite difusa sifilítica há uma participação grande do ambiente. Na neurossífilis, em geral, também há uma grande participação do ambiente, no sentido de infecção luética. No grupo II, nas psicoses heterotoxicas ou autotoxicas, há uma participação maior da carga genética. O fator tóxico interfere de modo diverso, quer pela exposição relacionada ao processo de trabalho ou ocasional, quer por uma intoxicação de ordem metabólica, do próprio organismo. Por isso, distinguimos os casos que não são de intoxicação acidental, como é o caso do alcoolismo que pode representar uma tendência para superar dificuldades da personalidade. O alcoolista crônico não entra no grupo das psicoses heterotóxicas acidentais, vai entrar no grupo em que há uma tendência da personalidade: psicopatia, toxicofilia ou ainda na neurose. Portanto, o alcoolismo deve estar em um desses três grupos fundamentais do Grupo IV, dependendo do dinamismo, psicogênico ou psicológico, que leva ao quadro de intoxicação alcoólica crônica.
Devemos distinguir os fatores acidentais dos previsíveis, devido à constituição do indivíduo. O mesmo se passa em relação à epilepsia.
A epilepsia é uma condição mórbida endógena, não uma psicose, que pode ter um correlato neurofisiológico evidenciável – nem sempre tem -, mas que é, necessariamente, endógeno. Mas há convulsões que são apenas sintomáticas. Os autores, em geral, consideram as convulsões sintomáticas como epilepsia sintomática. Nesse caso, se perde o valor diagnóstico de epilepsia, se considerarmos que o indivíduo pode ter epilepsia adquirida. Os autores que estudam melhor a questão, já estão chegando à conclusão de que a epilepsia é sempre herdada. Mas, ainda, confundem convulsão com epilepsia, porque aplicam um critério descritivo considerando apenas uma parte do quadro clínico, como expressão do todo, que é muito mais complexo.
Em relação à oligofrenia temos a oligofrenia que é endógena e uma deficiência mental que decorre de uma lesão, uma encefalopatia não endógena. Nesse último caso, o indivíduo tem uma deficiência mental que é adquirida, mas não podemos falar em oligofrenia adquirida. O que há é uma deficiência mental. O resultado final pode ser o mesmo, mas a significação genética é muito diferente.
Da mesma maneira, temos o grupo das psicoses marginais de Kleist que chamamos de diatéticas, que podem ter muita semelhança com o grupo da epilepsia, da esquizofrenia, da parafrenia, da psicose maníaco depressiva, mas apresentam um decurso diferente e uma explicação genética diferente.
Sustentamos a opinião que tomando, como critério diagnóstico, a patogênese do quadro clínico no sentido de esfera da personalidade atingida e quanto aos dinamismos cérebro-patogênicos envolvidos, temos mais segurança para o diagnóstico e para o prognóstico. Isto possibilita ao psiquiatra estabelecer não apenas o diagnóstico, mas também o prognóstico, prevendo o decurso do quadro clínico.
Alguns autores já fazem a distinção entre convulsão sintomática e epilepsia, de oligofrenia com os vários quadros genéticos que dão alteração constitucional do indivíduo e, em consequência, uma alteração também, da capacidade mental. É o caso da Sindrome de Turner, de Klinenfelter e de outras alterações hormonais genéticas que podem dar como consequência uma deficiência mental.
No entanto, é importante acentuarmos que não é o fator genético que dá, como consequência, a deficiência mental, mas, tanto a alteração somática, autossômica ou gonadossômica como o quadro clínico, são dois correlatos do mesmo fator genético. Não é porque um indivíduo tem uma trissomia ou tem uma falta de disjunção dos cromossomos somáticos ou gonadais que ele vai ter doença mental, são duas expressões distintas do mesmo fator genético.
Essa tendência atual, em genética, de multiplicar os casos em que a alteração, autossômica ou somática dos cromossomos, vai dar um quadro mental é uma tendência que está agindo no sentido contrário da anterior, onde os quadros eram reunidos em si próprios, dando como resultado a distorção para a compreensão do quadro clínico.
No mongolismo, por exemplo, a alteração mongoloide é um caso particular de alteração oligofrênica, onde os cromossomas 15, 23 ou 21 estão alterados, não se dissociaram, daí é atribuído o quadro de mongolismo a este aspecto. Na realidade, se pesquisarmos com elementos mais aprofundados, não apenas o quadro clínico, mas as tendências genéticas e os traços de personalidade, vamos ver que esses traços são genéticos também. E vamos encontrar mais casos na família que, portanto, têm a mesma configuração autossômica, têm a mesma configuração genética que está implícita nesse processo. Não é, portanto, um acidente, não é uma embriopatogênese: a embriopatogênese é uma consequência da tendência genética.
Outro aspecto que devemos considerar é que, à primeira vista, parece haver um número muito pequeno de quadros clínicos, apenas vinte e quatro. Mas, esses quadros clínicos incluem, também, condições não psicóticas, como é o caso das formas marginais ou como é o caso de algumas formas constitucionais. Na verdade, incluem uma série de quadros clínicos que se põe na mesma classificação porque tem a mesma implicação. Assim, pela nossa orientação consideramos que existem cinco tipos de Personalidade Psicopática. Os autores, em geral, admitem de dez a catorze. No grupo da esquizofrenia, temos 26 quadros clínicos (Kleist). Na epilepsia, temos uma grande gama de manifestações clínicas que são todas epilepsia, em sentido geral. As psicoses autotóxicas e heterotóxicas também têm uma configuração diversa de paciente para paciente. Portanto, essa classificação que propomos não significa que limitamos em vinte e quatro, os diversos quadros clínicos.
Vemos, agora, os vários casos que constituem o grupo III em nossa classificação e, depois, o grupo das marginais que são do grupo IV e as ocasionais que são dos grupos I e V.
Temos os quadros característicos ou os outros que não são diatéticos, mas também decorrem de uma tendência genética para a doença. Quanto aos quadros que são adquiridos, têm muita coisa em comum: isso decorre da esfera da personalidade atingida no processo.
Pela descrição clínica, um paciente que têm alterações do humor – que caracteriza as formas chamadas cíclicas ou Psicose maníaco-depressiva -, pode também corresponder a uma série de quadros clínicos marginais, ligados com essa tendência genética e, portanto, que também se exprimem pela depressão, angústia, com queixas contínuas somáticas: apenas pelo aspecto descritivo se confundem, mas não pela significação genética.
Ou uma psicose ocasional, uma paralisia geral agitada ou depressiva que se confunde com a mania, com a excitação psíquica ou com a depressão, entretanto, é um quadro muito diverso, que deve ser tratado de um modo muito específico.
Apresentamos, seguir, o Quadro II – Esboço de Classificação patogênica em parte segundo Kleist.
No início do século A sífilis cerebral era muito frequente e dos anos 40 para cá está desaparecendo, mas é possível que, novamente, reapareça porque já não se pensa mais nesse problema, não se pensa mais “sifiliticamente” como dizia Miguel Couto, é preciso que estejamos alerta para esse aspecto. Um paciente tem uma depressão, trata-se com eletrochoque ou com qualquer outra coisa, daí seis meses é um paralítico geral irrecuperável.
Dividimos, consoante com alguns aspectos segundo Kleist, no âmbito dos quadros clínicos ligados com a esfera afetiva: as formas relacionadas com distúrbios do humor, com desordens da vida instintiva, com desordens da individualidade e as desordens da sociabilidade, que constituem alterações características que dão um colorido comum aos vários grupos de psicoses, sem levar em conta a participação genética.
Os quadros que correspondem às desordens da conação são de vários tipos: os constitucionais, representado pelo grupo das psicoses progressivas que é o da esquizofrenia, bem como pelo grupo da epilepsia; os marginais, representado pelos quadros acidentais (convulsões sintomáticas, por exemplo), e os quadros relacionados com a perda da iniciativa, não por astenia, mas adquirida por doença.
Finalmente, no caso de comprometimento da esfera da inteligência, temos 3 grupos: aqueles em que a vigília é que está alterada, aqueles em que há alteração da elaboração mental e aqueles em que a expressão é que fica alterada, principalmente.
Assim, do ponto de vista da patogenese, temos em cada quadro constitucional uma configuração diferente, porque a esfera que dá a expressão clínica e o sistema cerebral envolvido, são diferentes.
Por exemplo, no caso do grupo das hebefrenias, há formas que correspondem a desordens da sociabilidade e outras que correspondem a desordens da vigília. Todas apresentam alterações, fundamentalmente, afetivas, mas de um modo diferente em decorrência da participação de sistemas psíquicos distintos na patogênese. Devemos considerar o aspecto genético, quanto à esfera e quanto ao sistema cerebral atingido.
PSICOSES DE ORIGEM INFECCIOSA PREDOMINANTE
Colocamos a paralisia geral, em primeiro lugar nesse grupo, porque é a que está mais definida. Em segundo lugar, em uma escala descendente da participação do ambiente e ascendente com relação ao genoma, temos a neurossífilis que é um pouco diferente da paralisia geral, que tem mais um colorido neurológico.
Em terceiro lugar pusemos a encefalite, que apresenta um colorido distinto na fase aguda e na fase crônica, ou quando consideramos a época que ela incide, se na idade adulta ou na criança.
Outro grupo é o da psicose infecciosa em geral. Assim, quando o indivíduo tem uma psicose chamada psicose infecciosa, que às vezes é rotulada como psicose puerperal, por exemplo, e que são passíveis de remissão, vemos que, realmente, houve uma participação infecciosa, mas esta desencadeou o componente genético que estava em latência.
Há, portanto, nessa sequência uma participação crescente do aspecto genético e decrescente do fator ambiencial.
Tanto nas psicoses infecciosas, em geral, como na paralisia geral, vemos uma grande participação dos traços de personalidade, naquele sentido que chamamos de sexto grau de atenuação da carga genética, é o modo de ser do indivíduo, a configuração que ele apresenta na sua disposição subjetiva, que dá o colorido principal ao quadro. Não só na irrupção, mas na própria expressão do quadro clínico.
Nas psicoses infecciosas decorrentes, em grande parte, da intensidade da infecção, temos o chamado delírio onírico, mas o delírio onírico é uma característica, porque traz consigo um grande componente genético e é o que determina a fixação pós-onírica também. O indivíduo pode ter uma psicose infecciosa com um onirismo muito grande, isso vai repercutir na forma de recuperação do indivíduo, porque ele pode se lembrar de modo vago sobre o que aconteceu, mas pode ocorrer um aspecto muito definido, que é a fixação daquele delírio onírico. Ele remite daquele quadro completamente, mas não remite dessas ideias oníricas, que ele reconhece como delirante, mas se mantém apesar disto: há uma crença nessa realidade, porque para ele foi tão intensa que se fixou. Essa fixação não é uma lesão, mas uma intensificação da tendência genética do indivíduo para fixar as coisas. Ao que parece, para aqueles que apresentam maior carga da linhagem epileptoide, porque nem todo paciente que tem delírio onírico o fixa por ocasião do quadro clínico.
Por isto, às vezes, fica difícil verificar se o indivíduo está fabulando ou se, realmente, ele está mantendo aquilo que sente como real. Por exemplo, um paciente que afirma que sua perna foi cortada, e depois cresceu, não fica claro se realmente ele fixou que sua perna, realmente foi cortada ou se é uma fabulação.
Em todos esses casos é importante realizar uma série de exames complementares para assegurarmos se o quadro é infeccioso. O fato de um quadro ter sido desencadeado por uma infecção, não quer dizer que seja uma infecção que tenha atingido o sistema nervoso. Pode não haver nenhuma lesão cerebral, nem sequer uma disfunção celular duradoura. Não é necessário que haja uma lesão no cérebro para que se produza uma psicose infecciosa. Algumas vezes o quadro clínico ultrapassa a fase do processo infeccioso, o indivíduo já está recuperado do mesmo, a análise bioquímica já está normalizada e, no entanto, pode ter alterações graves na capacidade de orientação e na sensopercepção. Passou o quadro clínico somático, mas se mantém a tendência para reagir anormalmente.
Casos de Psicoses Infecciosas
- Paciente n.° 1705 – teve um quadro que, classicamente, se chama “confusão mental astênica”. Ele teve uma gripe que desencadeou o quadro clínico e foi levado a uma clínica no departamento de imigração e, depois, ao Juqueri onde remitiu rapidamente. Notem a fisionomia dele, um ar absorto, uma fisionomia um pouco apagada, não é um indivíduo desligado da realidade; está, apenas, absorto, não compreende o que se passa.
- Paciente n.° 2132 – tinha uma psicose tipo alucinatória, os dois tinham uma psicose infecciosa e os dois com quadros diferentes. No anterior, predominava a astenia, a imobilidade e, neste, a alucinação produtiva. Notem que estava, inclusive, ouvindo vozes, portanto, uma confusão mental alucinatória. Esse paciente tinha gripe, ficou em casa acamado e, depois, de modo repentino, apareceu esse quadro clínico. Depois, com a restauração do equilíbrio hidro-eletrolítico se recuperou rapidamente. A etiologia e o modo como apareceu, se antes da gripe, por exemplo, se durante a gripe ou se após, é indiferente, não serve de base. Esse quadro, os autores, em geral, a partir de Meynert chamam de “amência”, termo criado por Meynert, amência porque o indivíduo tem pouca noção das coisas, fica confuso, desorientado, com perda da capacidade mental. Kleist, também aceita, de certa maneira, esta denominação de amência porque é um colorido geral do quadro clínico. Temos a confusão mental nesse caso e que, muitas vezes, se confunde com a confusão mental que Kleist mostrou como decorrente de fatores endógenos. Nesse caso, a bioquímica não revela nada para que se pense em quadro infeccioso, mas como aparece de repente e, depois, volta espontaneamente ao normal, os autores pensam: “bom, é uma psicose infecciosa”. E, ainda, se aparece durante o ciclo puerperal, falam em psicose puerperal, mas, na realidade não tem nada a ver com isto. É um quadro clínico autóctone que aparece por disposição genética e que, apenas, por coincidência apareceu nessa fase. Na época em que não havia assepsia suficiente, era possível que ocorresse por fator meningial e que levava à infecção do sistema nervoso, provocando uma meningo-encefalite adesiva: nesse caso o paciente teria uma permanente perturbação porque aqui está ligada com uma lesão cerebral e não apenas com fator momentâneo.
- Paciente n.° 2335 – com delírio onírico, com sensação de bem-estar, euforia, não se preocupa com a situação. É a forma acinética eufórica. Também, apareceu com uma gripe.
- Paciente n.° 1659 – delírio onírico hipercinético, com agitação muito grande, roupa desalinhada, atividade onírica e alucinatória inclusive. Esse foi um caso que apareceu depois de uma pneumonia – quadro metapneumônico.
Na amência, o que caracteriza o quadro é a deficiência no contato intelectual com o ambiente. No estupor, não é só o contato intelectual, também o indivíduo fica desligado do ambiente.
Isto é importante na evolução para verificarmos que, no quadro de amência, há sempre uma possibilidade de o indivíduo reconstituir, embora vagamente, aquilo que se passou com ele. No estupor, o indivíduo não consegue reconstituir, há ruptura do contato com o meio ambiente, está quase que imóvel, fica voltado para o lado subjetivo, mas, sem nenhuma produção intelectual, como no caso da amência, em que ele procura dizer as coisas, mas se torna confuso. E, na regressão da moléstia deixa uma lacuna mnemônica.
Assim, quando o paciente fala que teve um quadro clínico, que sabe que esteve doente, mas não sabe o que fez nesse período, é quase como se fosse um quadro crepuscular ou um estado segundo. Nesse caso, verificando que é uma infecção que desencadeou o quadro clínico, vemos que isto está ligado com a falta de contato com o meio ambiente e essa ruptura do contato é que dá essa amnésia completa. Portanto, trata-se de estupor enquanto, na amência, a amnésia é relativa.
Outra forma que chama nossa atenção é o chamado delírio onírico: o indivíduo tem uma produção mental muito grande, mas é como se estivesse sonhando, daí o nome. Às vezes, o paciente refere que tem um tipo de alucinação cinematográfica, acompanha as coisas e, quase sempre, sente euforia. Assim, o delírio onírico tem o nome da configuração do quadro clínico – é só descritivo, portanto.
Temos o estupor com agitação ou com depressão, com acinesia. São duas formas distintas, embora o indivíduo esteja em estado estuporoso, não consegue ligar-se com nada, mas, ou agita-se no próprio leito, rola, se bate ou, em outros casos, aparece como depressão. Acontece, então, mais ou menos como na forma da chamada amência.
Temos na amência, no estupor, no quadro onírico e no delírio agudo – assim chamado porque irrompe repentinamente – temos sempre dois aspectos: excitação e depressão. E, além disso, sempre aparece a confusão mental. Na amência temos, então, duas formas: 1. Alucinatória e 2. Atônita ou Astênica. No primeiro caso, se refere ao aspecto motor e no segundo, à incapacidade e perplexidade. Mas, é questão, apenas de descrição do quadro clínico.
No delírio agudo de Marchand o fundamental é uma hipercinesia; e outra forma, com astenia global, em que o indivíduo fica incapaz de se movimentar.
Portanto, de qualquer maneira que se considere a confusão mental, que se exprime pela incapacidade de contato com o mundo exterior, momentâneamente, quer dizer, um desligamento variável e sempre com a participação fundamental da afetividade, com elementos que traduzem, também, a participação da conação.
É essa combinação de fatores, dos sistemas cerebrais envolvidos que dão o colorido particular ao quadro clínico. Todos têm como condição comum, a remissão integral e, raramente, há uma sequela lesional ou um atingimento do cérebro, pois, em geral o cérebro não é atingido diretamente: o que ocorre em relação ao cérebro é um edema celular.
Isto permite ver como se origina o quadro clínico e que elementos temos para o diagnóstico clínico. Vemos que o que há, primeiramente, é uma inflamação do envoltório do cérebro, devido à intensidade de circulação, particularmente, na meningite, onde às vezes pode ocorrer uma ruptura da chamada barreira hematoencefálica. Nesse caso, há possibilidade de penetração das toxinas no sistema nervoso. Quando ocorre realmente uma infecção, temos uma lesão cerebral e, nesse caso, uma sequela permanente. Na maioria dos casos, fica nessa fase de inibição celular: o fator fundamental é o equilíbrio eletrolítico acarretando um delírio agudo. Esses quadros todos foram descritos por Meynert como amência, mas, todos tiveram uma classificação geral feita por Boenhoeffer, que chamou “reação exógena” (1911/1923). O característico de todos esses quadros é uma infecção, um quadro exterior ao paciente e que desencadeia o quadro clínico. Esse termo foi cunhado para se fazer uma distinção com a esquizofrenia, acentuando o seu caráter como um quadro decorrente de uma reação a um fator exógeno, ambiencial.
Muito anos depois, no início da década de 30, Marchand, Toulouse e Courtois estudaram uma série de pacientes que tinham o quadro de delírio agudo. Estudando alguns casos que chegaram a óbito – porque esses casos podem levar à morte, por colapso metabólico -, verificaram que os indivíduos, com delírio agudo que morreram, tinham uma lesão cerebral característica, que correspondia a invasão da glia e neurorragia ou, clinicamente, apresentavam hiperazotemia.
Denominaram isso de encefalite psicótica aguda (porque ocorria um quadro psicótico, ao contrário da encefalite epidêmica), caracterizada por acentuada retenção de catabólitos azotados. Particularmente, Marchand a denominou de “encefalite psicótica azotêmica”. Inclusive, atribuía essa azotemia à participação do cérebro nesse desarranjo metabólico.
Em São Paulo, em conjunto com Dr. João Batista dos Reis verificamos que a questão é muito mais complexa. De fato, havia participação do ambiente, mas além das modificações citológicas do liquor, havia variação das frações proteicas, bem como alteração celular. O fundamental nesses casos agudos é reidratar os pacientes e monitorar os dados da análise bioquímica, verificar as frações proteínicas e a contagem específica de células.
ESQUEMA DE SCHALTEMBRAND3 (1969)
Considerada o processo da embriogênese do sistema nervoso, com foco no processo metabólico e nutricional e o carreamento dos seus respectivos catabólitos, é reconhecido o papel fundamental do intricado sistema que torna possível a circulação liquórica.
Até a alguns anos atrás, se supunha que havia uma permeabilidade direta do sistema vascular até o sistema nervoso. Mas, no parênquima nervoso não há qualquer penetração do líquor. Portanto, não é possível qualquer medicação atingir, diretamente, o sistema nervoso central: isto ocorre através da vascularização, isto é, há uma circulação, por osmolaridade, do endotélio para o sistema celular.
No processo inflamatório ocorre uma modificação nessa barreira hematoliquórica, dessa forma o sangue pode penetrar no sistema nervosa: este aspecto é levado em conta pela terapêutica. Se algumas sulfas, por exemplo, podem ser dissolvidas em óleo que apresentam uma tensão osmótica comparável à das células, temos possibilidade desse agente terapêutico entrar em contato com o sistema nervoso.
Se há uma lesão parenquimatosa, temos que modificar a barreira ou, então, introduzir o medicamento diretamente no sistema nervoso através do líquor. No caso da paralisia geral isso foi conseguido através da malaria, que produzia uma reação geral na meninge, uma inflamação que alterava a barreira hemoliquórica. Dessa forma, os medicamentos podiam atingir o sistema nervoso.
Ressaltamos, no entanto, que proceder uma introdução direta chamada intratecal, pode provocar uma necrose grave, mortal.
Esquema
Outra questão, é que se fizermos uma verificação da alteração celular muito distante do cérebro, como na punção lombar, podemos não ter um resultado preciso. Portanto, no caso de alteração psicótica temos que fazer uma punção occipital. Além disso, a dosagem proteica tem uma taxa muito maior quanto mais baixo for o nível em que extrairmos o liquor: intraventricularmente, há uma pequena quantidade de proteínas, no occipital há uma quantidade maior, no lombar muito maior ainda.
[apresenta outro esquema]
Um estudo de pacientes, com quadros clínicos de encefalite psicótica de Marchand, realizada em 1938, em conjunto com Dr. Reis, avaliou a composição das frações proteicas e os vários elementos que revelam a participação direta do espaço intracelular e pericelular no processo, cujos resultados apresentamos no Quadro mais adiante.
Como já tínhamos verificado antes, em relação aos quadros com alteração vascular do cérebro e alterações infecciosas, é que as frações de proteínas aumentam, grandemente, nos processos vasculares. A globulina gama está ligada com o fator infeccioso no sistema nervoso, ao passo que a globulina alfa e a beta estão ligadas com o problema vascular. Dessa forma, pela comparação do resultado no sangue do paciente com o seu líquor, já seria possível saber se o processo é infeccioso, inflamatório do sistema nervoso, crônico ou agudo.
Outro aspecto, é a contagem globular para ver se há ou não a pleocitose. Isto dá, uma ideia sobre a relação entre o aumento de globulinas e o aumento de células, para a qual há uma correlação positiva no caso da neurossífilis e dos tumores cerebrais. Nos processos inflamatórios, ao contrário, há uma dissociação, temos a possibilidade de não haver um aumento do número de células.
Verificamos que esse grupo de pacientes que estudamos (eram 36) nós retiramos uma parte do quadro que é a seguinte: trabalho apresentado em 1945, sobre Psicose Infecciosas.
CASOS DE ENCEFALITE PSICÓTICA INFECCIOSA AGUDA – 19 DOENTES (1939)
(N.° do caso – idade – forma clínica – duração da doença – aspecto psiquiátrico, evolução, líquor)
FORMAS DE PARALISIA GERAL UTILIZANDO O CRITÉRIO PATOGENÉTICO
Verificação, apenas empírica, embora feita com mais de mil pacientes, mas sem tratamento estatístico
ESQUEMA DE SPIEGEL E SOMMER – 1937 – CONDUÇÃO RETINIANA CORTICÍPETA E REFLEXO PUPILAR À LUZ
[ este esquema não constava da apostila]
Um aspecto que explica o quadro clínico na PG, um aspecto localizatório. Se um paciente tiver uma alteração que abrange, digamos um nervo óptico ele vai ter uma cegueira completa do lado direito, mas se fizermos o reflexo pupilar do lado direito não conseguimos qualquer reação, mas do lado esquerdo reage normalmente. – Temos, então, a anisocoria – Porque a parte da retina da esquerda recebe estímulo do lado direito e as duas vias são duplas. Se houver uma interrupção na condição retiniana até o córtex, então, há a abolição reflexa deste estímulo, mas como a parte esquerda do nervo retiniano está conservada, então, chega até a parte do núcleo geniculado externo, as vias que ligam… (ver esquema)
[há mais um esquema que não constava na apostila]
Na parte cortical o que caracteriza a PF é o elemento da expressão. Um paciente com PG tem facies inexpressiva, perda completa da expressão motora. Uma anartria ou disartria – que é alteração da linguagem por alteração na ligação com a parte inferior correspondente à parte motora. Temos a perda da abstração – alógica – porque não consegue relacionar o aspecto da expressão com o aspecto de ligação real com o ambiente, com a abstração. A alteração da elaboração não é local, mas sim extrínseca, isto é, uma consequência da alteração posterior dinâmica. Então, o paciente que é medicado em tempo tem ideia delirante de grandeza, eufórica, mas quando remite retoma a normalidade completa e não há uma lesão local que determina a alteração delirante. Pode haver se o processo progride, então, a lesão é cerebral e o indivíduo é levado à demenciação.
Se tomarmos como ponto de referência a descrição do quadro clínico, vemos que em casos de P.G isso poderá ser grave, porque depois de 6 meses não recuperação possível.
- Texto organizado por Roberto Fasano, em 2003, sem referência a data, local ou a quem o compilou. Revisto em 03/10/22 por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flavio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano. ↩︎
- Figura adaptada e traduzida do inglês por Roberto Fasano (apenas modificada quanto à apresentação gráfica) a partir de tabela retirada da comunicação: “Human Genetics as an approach to the classification of mental diseases”, apresentada por Aníbal Silveira no Congresso Internacional de Psiquiatria, ocorrido em Paris, em 1950. ↩︎
- Georges Schaltenbrand (26 de novembro de 1897 – 24 de outubro de 1979) foi um neurologista alemão conhecido por seu trabalho na organização e diagnóstico do sistema motor, na fisiologia e patologia do líquido cefalorraquidiano e na esclerose múltipla. Ele foi co-autor de um influente livro e atlas sobre estereotaxia e também publicou alguns experimentos antiéticos realizados na Alemanha nazista. ↩︎