QUADROS CLÍNICOS LIGADOS AO ALCOOLISMO

QUADROS CLÍNICOS LIGADOS AO ALCOOLISMO1

O alcoolismo crônico implica, por um lado, em problemas de personalidade da qual decorre a dependência psicológica com o álcool e problemas de ordem fisiológica. Quando a dependência não decorre, primariamente, de fatores psicológicos não é lógico chamarmos esses casos de alcoolismo crônico. 

O alcoolismo crônico subentende, por um lado, a continuidade do uso do álcool e, por outro, a configuração da personalidade do indivíduo que está na raiz da dependência. 

Citamos casos de trabalhadores rurais, indivíduos desnutridos e mesmo moradores de cidades que ficam à margem da possibilidade de alimentação correta e pela carência energética principalmente, são levados a tomar álcool, como compensação para a falta de calorias. Dessa forma, extraem do álcool a caloria suficiente e, portanto, são vinculados a ele, por necessidade decorrente de fatores fisiológicos, o que os torna habituais no uso do álcool. Assim, não são alcoolistas crônicos no sentido psiquiátrico ou psicológico do termo. Fazemos, portanto, uma distinção entre a dependência fisiológica e a dependência psicológica.

A dependência fisiológica decorre fundamentalmente, em geral, desse aspecto de desnutrição e muitos quadros que foram descritos no início do século passado como devidos ao uso habitual de álcool foram verificados mais tarde que decorriam da avitaminose. Há, então, certos quadros clínicos que encontram no alcoolismo crônico que podem ser produzidos pela avitaminose também, mas não corresponde à parte psicológica aquilo que se encontra nos pacientes levados ao álcool por motivos fisiológicos. Portanto, esse aspecto da dependência fisiológica tem, por um lado essa característica. Mas podemos verificar além desse aspecto primariamente fisiológico no sentido de nutrição, no sentido visceral, outro aspecto também ligado com a fisiologia que já é de ordem psicológica. Assim temos a desnutrição como característica fundamental e aquilo que chamamos dipsomania, em geral, na psiquiatria. A dipsomania corresponde a uma necessidade fisiológica, mas das funções instintivas do indivíduo. Portanto, seria mais razoável colocarmos na fisiologia do que na psicologia, embora o fator seja psicológico também. Chamamos isto de Impulso Mórbido Periódico, de um modo mais geral. Kleist descreveu nos quadros clínicos aqueles que decorrem de período em que o indivíduo é sujeito a impulsos que não consegue dominar. Há vários tipos de impulsos – por exemplo o impulso de deambulação que surge periodicamente e o indivíduo tem necessidade de deambular e não sabe por quê. Não é que ele queira sair da casa ou que ele fuja, ou que saia em estado de inconsciência, em estado crepuscular, mas ele sai por um impulso deambulatório. Portanto, é um tipo de alteração que não tem nada a ver com o alcoolismo. Outros têm impulsos de alimentação, então têm períodos de nutrição excessiva, quer dizer, não é nutrição, é voracidade, é alimentação excessiva que produz também alterações graves fisiológicas. Mas também se trata de um impulso. Há ainda impulsos sexuais, por outro lado e, ainda impulso para beber. Então, nesse caso o Impulso Periódico toma o nome de Dipsomania, porque foi descrito na psiquiatria como um quadro clínico à parte, periódico.

Mas dizemos também que é filiado ao grupo de dependência fisiológica porque o indivíduo caracteristicamente não tem prazer na bebida, ele bebe continuamente, depois, de repente, ele deixa de beber, sem um motivo específico, sem nenhuma necessidade pessoal ou social, ele deixa o álcool por completo. Se indagarmos esse aspecto, no indivíduo que nos procura por alcoolismo, podemos ver que ele bebe periodicamente e depois deixa de beber, ele bebe quantidades excessivas. O exame genético vai mostrar que são pacientes ligados ao grupo da Epilepsia por um lado, e com as Psicoses Fásicas, por outro. Assim, os autores classificam geralmente esses casos como devidos às psicoses maníaco-depressivas. Bumke descreveu o temperamento que chamou “pícnico timopático” – quer dizer é uma perturbação afetiva que está ligada com a constituição somática pícnica, com o hábito pícnico, que leva o indivíduo a beber. É uma fusão de tendências das psicoses afetivas, por um lado, e das psicoses epileptoides ou epiléticos, por outro, – e dá esse quadro, dos Impulsos Mórbidos Periódicos. Logo, o alcoolismo que está rotulado como um alcoolista por ser dipsômano – cabe mais na rubrica de dependência fisiológica. Portanto uma primeira distinção a fazer é que pode ser alcoolista de duas maneiras diversas:

  1. Por dependência fisiológica – essa dependência mantém sempre o indivíduo no uso do álcool e isto redunda numa perda das vilosidades da mucosa gástrica, o indivíduo não consegue assimilar os nutrientes da alimentação. Também há avitaminose, e isso o obriga ao uso do álcool, e se desencadeia um círculo vicioso. Mas, na realidade, não é uma tendência anormal da personalidade que leva a essa situação.
  2. Por dependência psicológica – esta sim, corresponde ao alcoolismo crônico. Mas temos que distinguir o paciente que é levado a essa dependência psicológica por fatores neuróticos ou por fatores de desvio da personalidade. São os tipos que cabem mais corretamente no campo da dependência do alcoolismo crônico. Lembramos que o indivíduo neurótico é levado ao uso do álcool por diversos motivos:
    1. para se autovalorizar, por necessidade de apoio, necessidade de apreço; compensa essa insuficiência que sente em si próprio. Portanto, não é psicogênico, mas reativo – e o álcool é uma maneira de compensar essa insuficiência, essa inferioridade. Aliás, isto criou um problema de ordem legal ou jurídica: pacientes que cometiam crimes alcoolizados. Eram indivíduos que queriam vingar-se e, frequentemente, por não terem disposição para o homicídio, por receio, tomavam álcool para adquirir a coragem e cometer o crime. Isso foi inicialmente considerado como atenuante, no código criminal pois era atenuante estar alcoolizado. Mas depois se compreendeu que isto não era atenuante, porque o indivíduo se alcooliza para cometer um crime, para cometer um ato para o qual ele não tinha coragem de cometer normalmente. Assim, nesta circunstância, o alcoolismo passou a ser agravante. Mas de qualquer maneira, o neurótico usa esse mesmo meio. Mas há o lado oposto também.
    2. o neurótico que se dedica ao uso do álcool para se sentir depreciado: o indivíduo que tem essa necessidade já é um caso psicogênico e não reativo. Tem necessidade de se sentir punido, de ser culpado, de ser menosprezado. Portanto, em vez de ser para obter apoio, como no caso anterior, ele faz isso para ser depreciado. Isso é corrente, o indivíduo, cada vez que bebe comete uma série de desatinos e tem certa consciência disso. E, quando não tem consciência, depois os outros contam o que se passou. Ele dá escândalo, espetáculo e, quando volta a si, sente-se mais depreciado e cada vez pior. Mas isso, por sua vez, o leva a tomar mais álcool.

Portanto, há dois polos opostos na reação neurótica, que levam à dependência do álcool. Aqui se trata realmente de um alcoolista crônico porque a dependência é psicológica. Não basta dizer que é alcoolista crônico. Temos que ver por que, qual o motivo que o levou a se tornar um alcoolista crônico. E, em caso de neurose, o tratamento adequado seria a psicoterapia.

Temos ainda o psicopata, indivíduo que tem uma personalidade psicopática, uma inferioridade que decorre de estrutura de personalidade e que leva também o indivíduo a tomar álcool. Aqui temos também dois polos, não opostos, mas dois mecanismos distintos:

  1. o psicopata perverso, antissocial, que se torna alcoolista como uma expressão de sua perversão da personalidade, não somente através do álcool, mas também através de atos antissociais diversos, de natureza socialmente grave. 
  2. o psicopata astênico – enquanto no caso anterior de psicopata perverso é a esfera afetiva que é o ponto principal da alteração da personalidade -, no caso do astênico é uma consequência de uma deficiência conativa, a incapacidade de tomar uma iniciativa. São pacientes que começam a tomar álcool e mantém anos a fio por não conseguirem mudar a situação por falta de iniciativa. E acontece que, às vezes, deixam momentaneamente ou, definitivamente, de tomar álcool. Chegamos a conhecer muitos casos dessa ordem: o indivíduo que tomava álcool por não conseguir desvencilhar-se dessa situação. Alguns deles fizeram tratamento por hipnose – além de terem toda liberdade, inclusive, de beberem, ficaram curados completamente. Aliás, esse foi um método muito usado na fase áurea da hipnose, no século passado. E hoje em dia, é realmente a hipnose um grande recurso, mas antes deve-se estudar a personalidade. Conhecemos muitos pacientes que deixaram de tomar álcool porque a sugestão hipnótica trouxe a eles aquele contingente que eles não tinham: a capacidade de reagir, de resistir ao álcool. Conheci um deles que ficou vinte anos sem tomar álcool nenhum. Depois foi para São Paulo em um meio social em que começou a beber. Mas nesse caso, o indivíduo precisa apenas de um estímulo para vencer essa astenia, para reagir à situação anterior. De qualquer maneira é também um paciente que está dependente do álcool por motivo psicológico.

Se considerarmos assim, veremos que, em primeiro lugar, alcoolismo não é diagnóstico e seria um erro muito grave para o paciente se o rotularmos como alcoolista. Em segundo lugar, esse dado permite uma orientação terapêutica diversa. Nós perdemos tempo tratando o alcoolismo sem tratarmos a causa do alcoolismo. Pode-se reprimir, desse modo, o indivíduo reprime o uso do álcool conscientemente, mas não fez uma terapêutica adequada no caso que é desmontar esses problemas. O recurso, no caso, seria a psicoterapia, a hipnose e o psicodrama como mais superficial. Enfim, uma série de fatores que podem levar o indivíduo a tomar consciência do problema pelo qual se tornou alcoolista e resolver esse problema. 

Essa condição de ser uma dependência psicológica, deve ser o elemento divisório na classificação do alcoolismo: alcoolistas ocasionais que podem deixar de tomar álcool e aqueles que são alcoolistas sistemáticos (crônicos), por fatores de insuficiência de personalidade. De qualquer maneira, seja por um dinamismo ou por outro, que o indivíduo encontra o álcool, ele apresenta uma fase de intoxicação séria em seu quadro clínico: alguns são considerados como psicose, outros não. Ao mesmo tempo há uma série de reações compreensíveis que fazem parte da variação normal do comportamento e que são ligadas ao alcoolismo: o indivíduo torna-se expansivo, torna-se comunicativo, tem facilidade de entrar em contato com todos. Fica até agradável, começa a fazer brincadeiras, piadas que normalmente não faz.

Outros, pelo contrário, se sentem depreciados, ficam tristes, hiperemotivos, deprimidos, choram com facilidade, comovem-se facilmente. Popularmente, fala-se em indivíduos do vinho triste e do vinho alegre. Porque o álcool estimula a falta de domínio da situação, de autodomínio psicológico levando o indivíduo a exteriorizar facilmente a sua maneira de ser, do seu feitio de personalidade. A essa fase inicial não se pode chamar de psicose. Mas, na realidade, com o uso habitual do álcool temos uma série de fatores que não são exteriorizados facilmente e que decorrem do aspecto psicofisiológico ou patogênico, da ação patogênica do álcool.

Portanto, em indivíduos que tomam habitualmente o álcool temos uma sequência de alterações devidas à quantidade de álcool ingerida que pode ser descrita em uma série de fases:

  1. Fase de excitação psíquica – O sujeito libera uma série de reações que normalmente ele contém no contato interpessoal. Essa excitação psíquica leva, então, a dois aspectos: é uma excitação psíquica que decorre da facilitação da circulação cerebral, uma hiperemia cerebral. Essa excitação psíquica, em alcoolistas, é a mesma que aparece em quadros endógenos ou em quadros ocasionais. Assim, no século passado ainda foi descrita com muita precisão por Meynert, no que ele chamou de quadro de Mania e quadro de Depressão. Dois quadros opostos provocados por fatores tóxicos ou infecciosos. E procurou interpretar estudando anátomo-patologicamente esses casos como sendo decorrentes ou de anemia ou de hiperemia cerebral. Todos os psiquiatras do século passado eram evidentemente psicólogos e anatomistas também. Meynert, por exemplo, é célebre por ter estabelecido certas fibras e correlações corticais. Wernicke também foi grande anatomista e psiquiatra. Bianchi também era psiquiatra e anatomista. Flechsig além de psicólogo, psiquiatra era anatomista; von Economo também. 

Meynert autopsiando pacientes que morreram em excitação psíquica e aqueles que morreram em estado de depressão, verificou que havia dois quadros opostos quanto à circulação cerebral – a hiperemia produzia excitação. Procurou explicar, patogenicamente, os quadros de excitação que aparecem nos quadros clínicos e os quadros de depressão como ligados à circulação cerebral. Na realidade, estudando o alcoolista neste aspecto podemos ver que realmente há razão para essa correlação.

A excitação psíquica resulta de uma hiperemia cerebral, mas essa fase de excitação psíquica no sistema cortical do cérebro já decorre de outros fatores.

  1. Fase de liberação cerebral – a excitação psíquica facilita a liberação cerebral, embora pelo aspecto fisiológico essa liberação da atividade cerebral seja básica em relação à cortical que se processa concomitantemente. Vemos que todo o sistema nervoso reage ao mesmo tempo. Mas enquanto o indivíduo não tem uma produção intelectual liberada, ele não dá vazão a esse aspecto de liberação cerebral, no sentido instintivo, da vazão só no sentido neurofisiológico. Temos dois aspectos: a ataxia cerebelar, que é muito característica do ébrio, tanto que isso tem um valor semiológico para descrever a “marcha ébria” em qualquer quadro clínico cerebelar. É característico da ataxia cerebelar: o indivíduo tem dismetria, incapacidade de agir e além disso apraxia como característica motora. 

Assim, a fusão dos dois aspectos: hiperemia cerebral cortical e a hiperemia cerebral com a ataxia que é característica e com apraxia motora, leva o quadro clínico a outras manifestações que não notamos no caso de intoxicação alcoólica que são: disartria, liberação instintiva: o indivíduo tem comportamento anormal e, além disso, ainda no caso cerebral, tem a apraxia, que é característica. Com essa fusão de distúrbios motores na área da expressão, da comunicação, ele fica com a voz pastosa, ele fala coisas inconsequentes, ele não articula corretamente. Tem uma série de distúrbios parecidos com o que ocorre na paralisia cerebral progressiva – nesta também há uma alteração geral em todo o sistema nervosa, que dá uma semelhança aparente fenomenológica entre o alcoolismo agudo nessa fase e o quadro de P.G.P -, a neurossífilis. 

Além desses fenômenos temos outra fase que é:

  1. Fase de liberação instintiva na qual o indivíduo se torna, conforme a reação, pornográfico etc. Assim, é um quadro que parece com a “Mória”: excitação psíquica com tendência à liberação instintiva, fazer pequenas perversidades, pilhérias maldosas, e mesmo liberação instintiva. A Mória é uma fusão de sintomas em que há elementos da base do cérebro, obrigatório, e da corticalidade também, o que dá o colorido de liberação instintiva. Notem que a excitação psíquica, por um lado, a liberação cerebelar, no plano motor e a liberação cerebelar de caráter instintivo, provocam fenômenos que estão fundidos habitualmente no sintoma clínico, mas que patogenicamente se pode acompanhar através da progressão da liberação e de excitação ao mesmo tempo.

Em sequência, temos outra fase em que a excitação, a instabilidade e a incapacidade de selecionar os estímulos (o indivíduo dá atenção a todos os estímulos que aparecem) levam à:

  1. Fase de confusão, que decorre de vários fatores. Há um estímulo subjetivo intenso, uma falta de subordinação dos estímulos internos, os indivíduos reagem indiferentemente, criam uma dificuldade em coordenar as ideias, do pensamento, levando a uma exteriorização de um quadro consequente da fusão patogênica dos vários modos de ação do álcool no sistema nervoso central. 

Além desse aspecto, temos ainda outra fase:

  1.  Fase de redução do rendimento mental. Quer o indivíduo inicie com excitação psíquica, euforia, agressividade, quer ele manifeste uma tendência depressiva, o resultado é sempre a lentidão muito grande do trabalho mental. Essa redução no rendimento mental é independente da confusão, pois são dois aspectos um pouco diversos. Na confusão temos uma falta de subordinação dos estímulos, equivalência das reações aos estímulos; enquanto nessa fase temos uma falta de reação aos estímulos. O indivíduo não reage aos estímulos, não consegue coordenar e manifesta uma tendência para isolar-se do mundo exterior porque não consegue reagir aos estímulos.

Finalmente, a fase final:

  1. A fase do coma, vamos dizer, mais patogenicamente: de falência da atividade que dá o coma como consequência. 

Vimos que, primeiramente, há uma fase de excitação psíquica, uma fase de incoordenação dos vários estímulos cerebrais, em seguida, a incapacidade de subordinação de um sistema a outros, e, finalmente, uma queda dos estímulos exteriores. Pudemos, por abstração, separar as várias fases, mas na realidade todas elas são quase simultâneas. Mas há um quadro que não segue toda essa seriação. É o quadro chamado de Embriaguez Patológica. Na embriaguez patológica temos a passagem da primeira fase – de excitação, quase diretamente para o estado final de coma. O indivíduo toma álcool em pequena quantidade e se desorganiza completamente e entra em estado de coma, isto é, ele passa por uma liberação motora em que funde o aspecto motor, confusão (terceira e quarta fase), dando como consequência o “Estado Crepuscular”. Nessa fase crepuscular o indivíduo poderá cometer atos antissociais, perigosos – porque nesse caso ele age como num estado crepuscular endógeno, quer dizer, é uma mudança rápida do comportamento, sem orientação intelectual, com excitação e com desligamento, sem noção do mundo exterior. Portanto, liberação motora muitas vezes coordenada, sem a noção do que se passa no momento e que precede a fase de coma. Quer dizer, há uma variação individual muito grande, quanto a esse aspecto, mas há indivíduos que têm essa tendência mesmo com certa facilidade, se desequilibram: se são submetidos habitualmente ao estímulo alcoólico, cometem atos antissociais, como se fosse parte do comportamento do indivíduo. 

Um autor, Nielsen, contou um fato interessante – que o filósofo J. Locke foi indicado pelo governo inglês para ser embaixador na Suécia, e ele se recusou dizendo que não suportaria a quantidade de álcool que usualmente se consome nas relações sociais nos países nórdicos. 

Isto seria um aspecto do quadro clínico da embriaguez habitual, enfim, da intoxicação alcoólica habitual, que tem uma variação muito grande de indivíduo para indivíduo – conforme o temperamento, conforme a carga genética – mas, ao mesmo tempo, tem esse aspecto de colocar em evidência aqueles sistemas cerebrais que são responsáveis, quando articulados, pelo comportamento humano normal. Mas, como dissemos, não são por si próprios uma psicose, mas são quadros que revelam uma desorganização. Já quando entram em estado crepuscular, neste caso já seria uma psicose, ou melhor, um aspecto psicótico, e quando em estado de coma já uma falência completa, e, portanto, não uma psicose.

O uso habitual do álcool frequentemente vem ligado a uma série de distúrbios que não são a embriaguez patológica por si mesmos. Nós temos, então: 

  1. Alucinose – alteração no recebimento do estímulo do mundo exterior de tal forma que o indivíduo apresenta um comportamento semelhante ao do paciente alucinado. Não se chama habitualmente “alucinação” porque há nesse colorido ainda uma certa relação com a realidade. O indivíduo exterioriza o distúrbio perceptivo sem muita consciência de que aquilo é um distúrbio, mas com certa noção de que aquilo não deve ser real – daí o termo alucinose. Alucinose, no sentido de Kleist, seria um quadro clínico em que há alucinação ou distúrbios senso-perceptivos, digamos que são correlatos ao automatismo mental. Mas há, aqui o sintoma da alucinose e não o quadro clínico Alucinose. E o sintoma alucinose corresponde a uma percepção anormal, com certa noção da realidade, mas sem se desligar completamente do fenômeno real. Uma característica da alucinose como sintoma é que o indivíduo refere isso. Num ambulatório psiquiátrico o indivíduo refere isso, ele conta o que está sentindo, ao passo que o alucinado reage intensamente e não refere que está tendo alucinações. E o alucinótico, quer dizer, o que tem alucinose como sintoma, revela, comenta, acha graça, é quase como no automatismo mental, em que tem uma sensação de que o que passa é muito real, mas que não é o estímulo habitual, que vem normalmente pelas vias perceptivas, sensoriais comuns. A alucinose quase sempre no alcoolismo funde os estímulos senso-perceptivos com os estímulos visuais – o indivíduo sente que são bichos que entram na pele, que estão subindo por ele, são lagartixas, cobras ou aranhas e ele procura matar realmente, bate com o pé no chão. É uma sensação real em que revela sem dificuldade, e comenta e, às vezes, acha graça. Geralmente são alucinações móveis – os animais estão subindo, vem até ele ou partem dele. É uma perturbação sensoperceptiva muito intensa e visualizada, mas que ele tem uma noção de que não é muito real (zoopsia). É um sintoma que corresponde à utilização habitual do álcool em doses moderadas. 
  2. Quando há uma alteração mais profunda quando temos o quadro chamado delirium tremens. Essa é a única instância que usamos esse termo “delirium” pois utilizamos o termo delírio como concepção delirante. Os europeus usam delirium para distinguir os quadros de perturbação mental aguda – ligado com alucinações e com interpretações delirantes. Dessa forma, não se trata só de alucinações, é um passo a mais, é um desmantelo mais acentuado, que envolve toda a noção de interpretação. É o Delirium Tremens, é muito característico. Trata-se de um quadro dramático, que muitas vezes surge repentinamente. O indivíduo está tomando álcool há já muito tempo, e se porta bem, e quando passa de um certo limiar ele entra nesse quadro que já é alucinatório e não mais alucinótico, em geral de caráter persecutório, o indivíduo exterioriza isso ruidosamente, ele reage de modo totalmente descoordenado e com uma atividade onírica muito intensa, que não se confunde com o estado crepuscular, porque ele reage com a agitação grande das situações, mas como se estivesse elaborando corretamente os estímulos. A confusão decorre do fato dele não poder associar os estímulos subjetivos com os externos – acarreta um quadro confusional, com tensão emocional muito grande. Os autores descreviam dois tipos de delirium tremens: (a) por uso imoderado de álcool – irrompe repentinamente no quadro clínico e, (b) quando deixa de tomar o álcool repentinamente – suspensão abrupta do álcool. Como muitas vezes vem associados com um processo infeccioso – uma pneumonia ou gripe, o recurso que havia na época era dar a poção de Todd com álcool como veículo – quando associada à suspensão abrupta do álcool. Assim, admintrava-se álcool para compensar o delirium tremens. Outra maneira que se utilizava para cortar o delirium tremens era dar insulina. A insulina queima o álcool também, às vezes reduz o delírium tremens. No passado também podia ser administrado barbitúricos. Não como um fator de acalmia ou que fosse cortar a alucinação, mas porque vai agir na tendência epileptoide que se traduz no delirium tremens. Os estudos feitos há mais de vinte anos, nos EUA principalmente, mostram que o paciente com delirium tremens ou teve um passado convulsivo ou tem na família convulsivos. E, seria ainda maior a correlação se tomarmos anamnese do paciente, vendo outros aspectos além da presença ou não de convulsão, e que estão ligados à tendência epileptoide. Mas de qualquer maneira está bem claro hoje em dia que o delirium tremens, em grande parte, decorre da carga genética epileptoide. Portanto, o delirium tremens corresponde a um processo agudo em que há o fator confusional e há agitação que não chega a tomar um colorido crepuscular, mas que é uma liberação intensa motora.
  3. Outro tipo de distúrbio da elaboração que não esse quadro agudo e que também acontece como consequência do uso habitual do álcool, é o Delírio, no sentido de concepção delirante. Delírio, nesse caso, não delirium, mas uma concepção delirante. O indivíduo começa a interpretar de acordo com o quadro clínico que apresenta, isto é, que decorre da estrutura ou dinâmica da personalidade. Um indivíduo ou sente ciúme, ou é agressivo ou se sente perseguido, desconfiado, com ideias de referência. Enfim, uma série de concepções delirantes que decorrem da estrutura da personalidade e que são postas à tona pelo uso habitual do álcool. Esse fator delírio, é uma desorganização da personalidade mais restrita porque é interpretação da realidade segundo uma determinada tendência da personalidade do indivíduo. Quanto ao conteúdo temos: o delírio de ciúmes, o persecutório e o de grandeza. Que decorrem das áreas do cérebro que são atingidas de preferência no processo. Como nós interpretamos – toda interpretação delirante está ligada predominantemente com o problema afetivo e, geralmente parte alta do córtex parieto-occipital, em geral. Mas há autores que já comprovaram aproximadamente este problema. O delírio tem uma correlação com a estrutura de personalidade, mas tem outra correlação quando há alterações cerebrais, e que são localizadas de modo bem preciso. Um dos tipos de alteração que foram verificadas é a chamada paquimeningite (espessamento das meninges duras) que é muito característica. Os autores notaram que a paquimeningite ocorre de dois modos: (a) quando primariamente há espessamento das meninges, portanto, primariamente paquimeningite, espessamento da dura mater e (b) quando há uma organização hemorrágica, um hematoma, portanto. Há uma fragilidade vascular que pode ser constitucional, mas que é sempre motivada pela ingestão habitual do álcool. Dessa forma, há uma alteração das paredes vasculares que leva à hemorragia e, consequentemente, à organização de hematomas, com irritação local e, geralmente, uma meningoencefalite e não só uma paquimeningite, comparável àquela que aparece na neurossifilis (P.G.P.). O espessamento da meninge aparece com essa fase prévia de formação de hematoma e, inicialmente, um espessamento e colamento das paredes. Ou, como foi verificado por Morel: uma atrofia cortical ao nível das zonas occipital até parietal e para, como ele diz, em uma linha demarcatória bem precisa. Há, portanto, dois aspectos ligados à localização do processo: um que corresponde à meninge, o envoltório (paquimeningite) e outro que corresponde às células cerebrais, portanto, uma alteração direta, funcional, ligada com a estrutura do córtex cerebral (atrofia cortical). No primeiro caso há um espessamento da meninge, porteriormente ocorre o hematoma e depois uma aderência à superfície cortical (indiretamente, ligado à alteração cortical, isto é, extrinseca). Assim, se temos um quadro clínico bem característico e podemos filiar isso a um processo de alteração celular, podemos concluir que realmente o fenômeno manifesto como delírio é realmente uma alteração orgânica do cérebro, embora não se possa atribuir diretamente as concepções delirantes à perturbação do cérebro, porque isso depende de fatores da personalidade e de uma série de outros fatores. O conteúdo do delírio está ligado com as disposições da personalidade e o dinamismo com a porção cerebral atingida. Podemos recorrer na parte clínica ao pneumoencefalograma2  que pode revelar alterações: falta de preenchimento do sistema cortical ou atrofia, mas que nem sempre é atrofia, pode ser disgenesia e, para esclarecer isto, é preciso ver a parte clínica. Porque a atrofia cortical se revela no pneumoencefalograma, que é muito grosseiro: o que há é uma falta de resistência dos giros cerebrais com alargamento dos sulcos intergirais. Dessa forma, quando se fala em atrofia trata-se de um conceito de ordem histológica, enquanto aqui há uma condição mórbida ou alargamento do sulco, que mostra que é um processo local, sendo importante verificar se traduz um processo adquirido ou congênito, portanto, uma disgenesia. Essa série de reações que vimos, parte inicialmente de um agravamento sucessivo em relação a um tipo único, mas em cada paciente se apresenta de um modo diferente. 
  4. Outro aspecto, além do delírio, é a Confusão crônica – que decorre da alteração cerebral ligada a alterações orgânicas do cérebro: não é mais um fenômeno agudo que ocorre como consequência de uma intoxicação momentânea. Nesse caso já não se trata de uma incapacidade de elaborar o trabalho mental habitual, nesse caso se confunde muito com a esquizofrenia. Em um paciente, internado em um hospital como alcoolista, deve-se verificar se ele é um esquizofrênico que tomava álcool por ser esquizofrênico ou se apresenta uma alteração mental crônica, como chamava Regis. Esse autor, em vez de falar esquizofrenia, fala confusão mental crônica. Mais isso é um aspecto da esquizofrenia e encontramos também no alcoolismo esse aspecto. Pode ser uma alteração da capacidade de elaboração e de reagir aos estímulos externos de modo coordenado, por incapacidade mental consequente a lesão cerebral, que atinge realmente a zona frontal. Mas vimos que há uma correlação entre os sintomas psíquicos, subjetivos e os sistemas cerebrais, vemos que não há contradição entre um aspecto e outro, quer dizer, um aspecto pode decorrer do outro. Assim, os sistemas cerebrais da zona parieto-occipital estimulam a parte frontal alta que corresponde a esse aspecto da elaboração. Portanto, se há uma alteração dessa regência, pode haver secundariamente uma perturbação funcional da zona frontal por consequência de falta de estímulo e falta de trabalho, ou progresso do processo. 
  5. Finalmente, o quadro mais grave é o Quadro demencial, chamado Demência Alcoólica. Demência é mais que confusão, é incapacidade total de reagir aos estímulos. O que é difícil estabelecer, e que exige um critério diagnóstico rigoroso é se esses casos demenciais de álcool são porque, de início, o indivíduo tinha tendência genética com alteração dos sistemas cerebrais, como no caso das lipidoses3, ou se é uma demência consequente ao álcool. Ou, se o álcool apenas serviu como fator que colocou à prova a resistência desses sistemas cerebrais. Os autores não tiveram a oportunidade de fazer uma anamnese rigorosa no sentido de ver a carga genética. Esses quadros demenciais foram observados desde o início da Psiquiatria como consequência de perturbações várias: uma demência paralítica, demência orgânica, demência resultante de uma perturbação aguda, de psicoses infecciosas, chamada demência secundária. Isto acarretou uma confusão de vários quadros. Dessa forma, muitos dementes que são considerados como consequência do alcoolismo são pacientes que tinham a doença de Pick ou demência senil e começaram a tomar álcool que atuou apenas como fator desencadeante. O alcoolista pode chegar a essa fase demencial sem depender do alcoolismo em si mesmo, ou isso pode ser uma consequência progressiva da falência dos sistemas cerebrais, cada vez mais grave. Importa ver o que está por trás do fenômeno do alcoolismo crônico: portanto, precisamos fazer o estudo patogênico, pesquisar a causa e não o epifenômeno que seria o alcoolismo. 

A Síndrome de Korsakoff está incluída nesse problema em relação à confusão por um lado, e o estímulo para explicar isto seria o elemento de fabulação e que, no alcoolismo, pode ser um fator meramente dinâmico e com o tratamento do alcoolismo pode desaparecer. O quadro de Korsakoff que foi descrito mesmo é o de avitaminose do complexo B, acarreta a polioencefalite superior hemorrágica que Wernicke descreveu, que atinge o tronco cerebral, o tálamo, enfim, as estruturas entre o diencéfalo e o mesencéfalo – alterações locais com pequenas hemorragias, e ocasiona o quadro de desligamento do mundo exterior, confusão e elaboração delirante no sentido mais fabulatório – é mais fabulação que delírio, é para preencher lacunas de memória – mas não são fabulações fixadas e sim momentâneas. Assim, a alteração da memória decorre do comprometimento da atenção ao mundo exterior. O indivíduo não registra nada, tem estímulos para produzir alguma coisa, uma certa euforia e apresentam alterações senso-perceptivas, que são fundamentais. Esse quadro aparece em várias condições mórbidas e não só no alcoolismo, nas avitaminoses do complexo B etc., portanto, não sabemos até que ponto está ligado com o alcoolismo ou com a sua consequência que seria a falta de metabolização das vitaminas do complexo B.

Nielsen verificou vários casos de não alcoolistas, mas com avitaminose, pertencentes a zonas rurais, pouco alimentados – e que apresentaram esse tipo de alteração demonstrada patologicamente pela necropsia. No alcoolismo o quadro é dinâmico e não estrutural.

  1. Texto organizado pelo Dr. Roberto Fasano Neto, em 2003, a partir de aula de Aníbal Silveira, proferida em 20/04/1971, em Campinas, sem referência de quem a compilou, sendo revisto, em 31/10/22, por integrantes da Comissão de Revisão do CEPAS: Flávio Vivacqua, Francisco Drumond de Moura, Paulo Palladini e Roberto Fasano. ↩︎
  2. Atualmente não se utiliza mais a Pneumoencefalografia já que dispomos de outros exames de imagens muito mais eficientes e precisos, tais como a Tomografia Computadorizada do Crânio ou a Ressonância Magnética do Encéfalo. (Nota dos revisores) ↩︎
  3. As lipidoses são desordens orgânicas no metabolismo dos lípides (gorduras) que resultam em quadros nocivos à saúde pois determinadas gorduras são acumuladas em certas partes do corpo. As pessoas com esses transtornos geralmente não conseguem sintetizar enzimas suficientes para metabolizar os lipídios ou estas enzimas que não funcionam corretamente. Ao longo do tempo, este acúmulo excessivo de gordura pode causar danos permanentes a certos tecidos celulares, em especial ao cérebro, sistema nervoso periférico, fígado, baço e medula óssea. A incidência destas doenças é rara bem como sua prevalência que é estimada em 1 caso para cada 4.000 pacientes. O tratamento varia de acordo com a causa e o tipo de lipidose. ↩︎