SENSAÇÃO E PERCEPÇÃO¹
Deixando à parte o setor conativo da personalidade, para o qual as correlações psicofisiológicas exigiriam maiores comentários para que se tornem compreensíveis, faremos algumas considerações sobre a outra zona de contato com o ambiente: as funções intelectuais e especificamente o trabalho sensorial.
É através dos sentidos que o intelecto se liga, em direção centrípeta, com a realidade exterior, no duplo mister de corrigir as concepções do mundo externo, e dessa maneira, contribuir para a sistematização das ciências.
Daí o número de categorias sensórias que os autores em geral fixam em cinco, pese ainda que a clínica e a pesquisa anatomopatológica já tenham demonstrado que o tato, em latu sensu, compreende quatro sentidos distintos.
Blainville, subdividiu o tato em três categorias desde 1829, desmembrando dele a musculação e a calorição. Comte, secundado por Audiffrent², desmembrou ainda do tato, a eletrição. São, portanto, oito as categorias e não cinco.
No quadro abaixo se apresenta a classificação dos sentidos, segundo a especificidade, elaborada por Agliberto Xavier³:
Em qualquer dessas categorias sensoriais, o trabalho fundamental se desdobra em três fases e pressupõe a existência de três tipos distintos de estrutura:
(1) órgão periférico, sobre o qual incide o estímulo, de onde resulta a impressão sensorial;
(2) elementos de condução, nervo sensorial ou sensitivo que transmite o estímulo;
(3) o núcleo cinzento sensorial, subcortical, que recebe o estímulo através dessas fibras nervosas, de onde a sensação propriamente dita.
Entretanto, para que o aparelho sensorial, atinja a finalidade que lhe é característica, essas fases preliminares não bastam. A sensação não se torna consciente sem que sobre ela incida o trabalho propriamente intelectual, isto é, sem que haja percepção. Isto implica em mais dois tempos, pelo menos, na extensão do trabalho, envolvendo dois tipos de estrutura:
(4) a transmissão da sensação, através das vias sensitivas intracerebrais, isto é, subcortico-corticais;
(5) as áreas do córtex frontal destinadas a essa função psíquica de observação. Assim, entre o estímulo periférico e a percepção teríamos os seguintes processos principais: impressão sensorial, imagem sensorial (sensação), imagem primária (percepção).
Na realidade o problema psicofisiológico se mostra muito mais complexo ainda, tanto pelo dinamismo quanto pelas estruturas envolvidas no processo.
Primeiramente, como fenômeno intelectual essencialmente ativo, a percepção depende do interesse, ou seja, da motivação afetiva que a determinou, pressupondo assim a participação prévia das esferas afetiva e conativa da personalidade. No plano anatômico, devemos recordar a concepção de Audiffrent, hoje plenamente sancionada pela anatomia cerebral: estabelece que de cada núcleo sensorial partem dois feixes de conexão, respectivamente, para a região intelectual do cérebro (córtex frontal) e para a região afetiva (córtex parietal, têmporo-parietal ou occipital ou mesmo cerebelar).
Discutir a identificação dos núcleos cinzentos em apreço, e pormenorizar outros aspectos pertinentes ao assunto, seria transpor os limites desta exposição. Procuramos, portanto, resumir essa interpretação dinâmica com o seguinte esquema:
Processos psicofisiológicos da percepção, no caso, visual – Esquema baseado no Princípio de Audiffrent
E. – estímulo; I. – impressão sensorial; S. – sensação; A. – reação afetiva, inconsciente, ante o estímulo; P. – percepção; em linhas de pontos-e-traços – vias de condução do núcleo sensorial ao córtex afetivo, no caso, tapete e fibras que vão à área 19; em pontilhado – ligação do núcleo com o córtex frontal, ainda não demonstrada anatomicamente; em linhas interrompidas – vias occipito-frontais.
Aqui está representado o sentido da visão por ser o mais característico da organização humana e, em consequência, aquele cujos dinamismos se acham mais bem conhecidos. Segundo essa concepção o fenômeno da percepção propriamente dito consiste na fusão, ao nível do córtex frontal, entre o influxo carreado diretamente pela vibração do núcleo subcortical e o influxo que este último ali faz chegar através do córtex posterior. Dessa série de processos decorrem outros aspectos que a imagem primária pode assumir:
- o da evocação, ou imagem mnêmica ou recordada, dinamismo no qual o estímulo inicial parte da região afetiva para a intelectual e daí para o núcleo subcortical correspondente;
- o da ilusão sensorial, em que a percepção é falseada afetivamente, porque a ressonância afetiva ou emocional sobrepuja o estímulo direto concomitante;
- o da alucinação – imagem alucinatória – quando anormalmente o estímulo afetivo faz vibrar o núcleo subcortical ao mesmo tempo em que ativa a região intelectual – donde o não reconhecimento quanto à subjetividade da imagem.
Nessa série de fenômenos psicofisiológicos, os dois extremos, percepção normal e alucinação, têm em comum, portanto, a fusão dos dois influxos sensoriais, direto e indireto; e apenas diferem no tocante à dinâmica – quanto à origem do estímulo que deu margem ao reconhecimento.
Ao que nos parece é a este aspecto distintivo que se refere Hughlings-Jackson, segundo a menção de Russell Brain, o qual lhe endossa a interpretação: “As percepções normais, para Jackson, “simbolizam” um mundo de objetos físicos. Percepções ilusórias ou alucinatórias diferem das normais, não na qualidade perceptual, mas no malogro (failure) do valor simbólico. Elas já não simbolizam de modo acurado, ou talvez de modo algum, os objetos físicos”.
Buscaino descreve claramente a participação de vias intracerebrais e, principalmente, a fusão entre imagens subjetivas e estímulos periféricos no fenômeno da percepção. Considera, entretanto, a retina como sede dessa convergência, o que não nos parece defensável: “Durante o fenômeno da visão consciente os estímulos que sobem da periferia suscitam mais ou menos nitidamente as recordações, pondo em atividade os agrupamentos celulares e as vias nos quais se concretiza a latência das imagens; e determinam, através dos mecanismos centroperiféricos, variações até na periferia retiniana. Portanto, no decorrer do fenômeno da percepção, a periferia retiniana recebe os estímulos do mundo externo e ao mesmo tempo os que provêm do mundo cerebral do indivíduo. A retina funciona, assim, quase como uma tela para aparelhos de projeção, numa de cujas faces se projetasse uma imagem enquanto outra se projeta na face oposta. O ‘coincidir’ de ambas as ‘imagens’ – a considerar-se não no sentido grosseiramente óptico no termo, mas no complexo de processos nervosos particulares – leva ao ‘reconhecimento’.