SISTEMAS CEREBRAIS NA PATOGÊNESE DAS PSICOSES ENDÓGENAS

SISTEMAS CEREBRAIS NA PATOGÊNESE DAS PSICOSES ENDÓGENAS¹
(Aníbal Silveira)²

Acreditamos que o psiquiatra, pela mesma razão que o especialista em técnicas projetivas, não pode progredir sem seguir uma teoria de personalidade. A teoria psicanalítica, a qual goza de preferência em quase toda a parte do Hemisfério Ocidental, pode explicar os dinamismos anormais nas neuroses e em outras condições semelhantes. Contudo, ela não se aplica às psicoses, pelo menos em sua grande maioria, e deixa de lado, em nosso entender, muitos aspectos psicológicos dos processos de desenvolvimento mental. A mesma restrição parece aplicar-se a outras poucas teorias de personalidade desenvolvidas mais recentemente. Se desejarmos uma teoria que possa abranger todas as condições mentais normais e anormais e tomar na devida conta suas relações com a fisiologia e a patologia do cérebro, temos que retroceder até 1850. Tal teoria foi estabelecida por um dos mais notáveis pensadores de todos os tempos, o filósofo francês Auguste Comte, o qual a expôs em 1851 (4). Ela foi, mais tarde, notavelmente elaborada pelo filósofo e médico George Audiffrent, em dois grandes volumes, “Du cerveau et de l’innervation”, 1869 (1) e “Des maladies du Cerveau”, 1874 (2). Não podemos entrar aqui em pormenores, naturalmente, sobre tal concepção da mente humana. Basta dizer que foi baseada “na apreciação sociológica do homem, na anatomia comparada do sistema nervoso, nas leis da Biologia, especialmente na Fisiologia, e verificada através do comportamento animal e da anatomia patológica do cérebro” [Audiffrent – (2)]. Além disso, esta doutrina descreveu minuciosamente, pela primeira vez, em 1850, o sono como função biológica do instinto de conservação individual, o que todo cientista agora admite, e, por outro lado, deu à teoria do sonho a mesma interpretação precisa que foi redescoberta por Freud, cerca de quarenta anos depois. Apenas uma citação: Comte, ao estabelece que os estímulos vegetativos e os impulsos instintivos predominam durante o sono, donde o significado do sonho, diz: “Tal é o princípio por força do qual a ciência do Homem (a Moral) será capaz de tornar sistemática a interpretação subjetiva dos sonhos a fim de regular seu curso através de impressões convenientes, cerebrais ou somáticas” (vol. 4, 240. Parênteses e grifos nossos) (4). Isso foi em 1854.

¹Trabalho apresentado em 6 de Juno de 1961, ao III. ° Congresso Mundial de Psiquiatria, ocorrido em Montreal, Canadá. Fez parte do Simpósio do Prof. Leonhard sobre Psicoses Endógenas Atípicas.

²Livre-Docente de Psiquiatria da Faculdade de Medicina e Professos de Psicopatologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo, Brasil.

De acordo com essa teoria, a mente humana consiste em três esferas interdependentes – Afetividade, Atividade e Inteligência – o que agora é indiscutível, mas naquele tempo não era aceito por todos. Embora trabalhando tão estreitamente juntas que não podemos separar uma da outra no estado normal, elas mantêm uma hierarquia, de modo que a primeira é básica e a última referida a mais dependente. Além disso, a afetiva influencia as outras duas diretamente e é realimentada pela intelectual, mas não pela ativa ou conativa; a atividade serve de mediadora entre os estímulos afetivos que se dirigem à inteligência e também recebe a regência dela. Por outro lado, cada esfera divide-se em várias funções distintas – 18 ao todo. Comte denominava-as pela terminologia usual, evitando criar termos novos e se limitando deliberadamente a redefinir as velhas denominações para adaptá-las aos novos conceitos. Na esfera afetiva há dois níveis diferentes, um dirigido para as necessidades pessoais ou impulsos instintivos propriamente, e o outro objetivando a adaptação social; dos primeiros impulsos, um grupo de três provê a conservação: 1) do próprio ser – nutritivo, e 2) da espécie: o sexual, e o 3) materno ou de posse; dois outros grupos, cada um com dois impulsos são relacionados: 1) ao aperfeiçoamento do indivíduo, a saber, o destrutivo e o construtivo, e 2) à ambição – de domínio ou orgulho e de aprovação ou vaidade. Os sentimentos sociais ou altruísmo foram denominados: apego, veneração e bondade, termos os quais são auto descritivos. Três funções distintas: firmeza, coragem e prudência compõem a atividade – termo geral que corresponde exatamente ao de Conação, especificado por McDougall (18); tais disposições conativas refletem-se na ação explícita, do mesmo modo que no trabalho intelectual. Este último domínio corresponde a três diferentes níveis de contacto com o mundo exterior – ou também com o interior: contemplação ou observação seja concreta ou abstrata, de que resultam noções; meditação, dedutiva e indutiva, que representa o pensamento ativo propriamente dito; e a comunicação que provê não apenas a expressão do estado interno, mas também os “sinais” que tornam possíveis as construções abstratas. As ligações entre as três esferas da personalidade mencionadas não são indiscriminadas. Muito pelo contrário, as diferentes funções mantêm relações seletivas, de modo que os impulsos de uma, vão somente para algumas outras, pelo menos de modo direto. Assim, como foi apontado por Comte e especialmente por Audiffrent (1 e 2), elas resultam em sistemas psíquicos. Um esboço esquemático desses sistemas encontra-se no Quadro I, para encurtar esta digressão. 

Um dos pontos mais importantes e notáveis da teoria da personalidade de Comte é que cada função individual representa o funcionamento de um órgão distinto, de modo que as várias inter-relações funcionais têm como substrato a grande número de vias. Guiando-se pelo método subjetivo, isto é, procedendo do todo para as partes cujo significado só pode ser compreendido segundo as funções que cada parte deve preencher – Comte localizou os órgãos dos instintos sexual e nutritivo no córtex cerebelar, e todos os outros no córtex cerebral: assim, para as primeiras duas mais poderosas motivações instintivas, as vias de condução são as fibras trans hemisféricas: as vias paleocerebelar e paleocerebral, neocerebelar e neocerebral, as quais se espalham por todo o córtex cerebral, passando através das ligações subcorticais.

Comte afirma, especificamente, que somente o número, as posições relativas e as relações mútuas de tais órgãos poderiam ser determinados pelo método subjetivo, pois as áreas verdadeiras e as configurações precisas dependiam de pesquisas anátomo-clínicas objetivas. Contudo, os métodos arquitetônicos e, mais recentemente, as pesquisas neurofisiológicas, vieram confirmar os pontos de vista do filósofo. Devemos acentuar, a este respeito, que todas as funções mentais – ou subjetivas, segundo Comte, resultam de órgãos localizados no córtex, mas estes se relacionam mutuamente por meio de vias córtico-corticais, transcalosas e trans-hemisféricas, que incluem nos sistemas, precisamente, estruturas sub-corticais. Quanto às conexões cortico-corticais, quer intra-hemisféricas quer transcalosas, o grande número de pesquisas em neuronografia – por exemplo, as da escola de Dusser de Barenne (3, 17) entre muitas outras – evidenciam o arranjo organizacional das áreas; e, conforme se vê na figura 1, tomada de Fulton (7), as áreas occipital, frontal e temporal são interligadas por vias específicas. Essas fibras occípito-frontais, representam, de acordo com o “princípio de Audiffrent” conforme o chamamos (22), o nível cortical implicado na visão. O processo de percepção dos estímulos visuais – como caso particular de percepção em qualquer domínio sensorial – requer, em primeiro lugar, sua transmissão ao núcleo subcortical onde são transformados em “sensação” (Fig.2, s); depois, a partir daí, em duas direções, para os córtices afetivos e intelectuais ao mesmo tempo; e, finalmente, a condução do impulso do córtex afetivo através do córtex conativo em direção ao órgão intelectual da observação abstrata (P para percepção, na figura 2). 

Diagrama, Esquemático

Descrição gerada automaticamente

Outra bela demonstração do sistema trans-hemisférico – previsto com exatidão por Comte e Audiffrent – temos nas pesquisas recentes sobre a formação reticular: tanto a inibição quanto a facilitação, comutadas ao nível reticular, são indicadas no conhecido esquema de Magoun (16) mostrado na figura 3. De outro lado, o fluxo do processo inibitório através do córtex medial e da convexidade segue uma via definida, estudada por McCulloch e o grupo de Dusser de Barenne (3, 17), o que tentamos representar na figura 4 (23).

Esta interligação de estruturas corticais e subcorticais, imperativa em toda operação mental, explica a assim chamada interpretação holística do funcionamento mental, mas, ao mesmo tempo, a invalida, em nossa opinião. A unicidade é apenas aparente, pois que, no estado normal, todas as funções estão intimamente relacionadas entre si. Contudo, sob condições patológica, a participação de cada uma pode ser posta em evidência na resultante final da anormalidade. Na verdade, esta concepção de sistemas cerebrais como substrato de sistemas psíquicos pode ser útil – às vezes, de máximo valor, como acontece, por exemplo, no caso da análise psicopatológica profunda feita por Kleist (10, 12). Devemos ter em mente esses dinamismos, nos quais as funções mais dependentes, as da esfera intelectual, são regidas por aquelas das esferas conativa e afetiva. Isto, por sua vez, traduzido em termos neuro-fisológicos, significaria regência do lobo frontal, a partir das outras regiões da convexidade. Aplicando este raciocínio no estudo dos quadros clínicos dos pacientes com distúrbios psíquicos relacionados direta ou indiretamente a lesões cerebrais, nós e alguns colaboradores fomos capazes de encontrar alguns sintomas do lobo frontal resultantes de processos distantes. 

O quadro II, deduzido de um grupo de 40 pacientes (26), ulteriormente aumentado para 100 (25), apresenta uma versão revista dos dados correspondentes, nos quais baseamos a leucotomia seletiva (21). Contudo, não é somente no domínio das lesões cerebrais que tais concepções podem ser aplicadas. Kleist usou essa maneira de raciocínio para as psicoses endógenas, mostrando que a análise dos sistemas cerebrais, sistemas funcionais, pode ser levada a um refinamento que deixa muito longe os dados oriundos das lesões locais.

Muito antes de publicar o marco miliário da patologia cerebral, a “Gehirnpathologie” (10), ele tinha instituído a concepção dos sistemas psíquicos em princípio diretor da classificação da esquizofrenia (8), assunto ao qual retornou em um dos últimos trabalhos (11). Esta mesma apreciação frutuosa e na mesma direção, embora independentemente das pesquisas de Kleist, encontramos na notável monografia de Leonhard sobre esquizofrênicos residuais (13). Foi também esse o princípio que nos guiou em nossa seleção de esquizofrênicos crônicos para tratamento pela insulina ou pelo choque de cardiazol (20).

Combinando a concepção de sistemas cerebrais com aquela da cérebro-patogênese, com a qual está intimamente ligada, Kleist (8, 10, 12), por um lado, e Leonhard por outro (13, 15) lançaram nova luz sobre o grupo das psicoses endógenas. Isso, não ocorreu ao acaso, cremos, porém como resultado de usar um modo de raciocínio e um instrumento subjetivo que foram compensadores nas mãos de Wernicke, e que caíram em descrédito devido à complexidade e ao penoso trabalho que exigem como retaguarda. Resumindo, esta linha divisória é como Leonhard acentua, “o espírito de Wernicke e Kleist” (15). Esse conjunto de exigências clínicas não é de molde a atrair o psiquiatra em geral, mas não há outra alternativa, acreditamos, para atingir a realidade clínica e a precisão no diagnóstico; em outras palavras, a segurança para o paciente e a estabilidade na orientação psiquiátrica. Isto implica em abandonar a posição puramente descritiva ou fenomenológica tão comum na psiquiatria de hoje, e ir em busca dos dinamismos patogênicos. 

³Nesse ponto da reprodução que eu possuía, havia anotado em letras manuscritas: “revisto” (provável anotação do próprio A. Silveira, que teria revisto este aspecto) (nota de Roberto Fasano Neto)

Quadro II – Sintomas do lobo frontal provocados por focos distantes

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Fig. 1 – Conexões córtico-corticais, particularmente entre as áreas 8 e 18. (Tirado de Fulton, por cortesia do autor e W. W. Norton & Norton Inc. Nova York.

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Fig. 2 – Processos psicológicos da percepção, aqui exemplificados pelo sentido visual. E, estímulo; I, impressão; S, sensação; A, reação afetiva inconsciente ao estímulo conduzido; P, percepção; linha de ponto e traço, via que une o núcleo sensorial e o córtex afetivo, radiações ópticas mais fibras até a área 19; linha pontilhada, conexão com o córtex frontal, ainda não demonstrada anatomicamente; linha interrompida, vias occípito-frontais. As vias intercerebrais consubstanciam o que nós chamamos “princípio de Audiffrent” (Cortesia de Hermann & Cie., Editores, Paris).

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Fig. 3 – Inibição e facilitação da atividade cortical, através das vias cerebelo-reticular e córtico-reticular. (Tirado de Magoun, por cortesia do autor e Charles C. Thomas. Springfield, Illinois).

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Fig. 4 – Representação esquemática da superfície medial do cérebro do Chimpanzé, mostrando sistemas cerebrais em termos de atividade inibitória, ligando áreas do cíngulo e da convexidade, em experiências neurongráficas (Cortesia do Arquivo Neuro-Psiquiátrico, São Paulo)

Foi o mérito de Kleist ter aprofundado a análise psicopatológica de modo a separar os vários quadros clínicos em um grupo central com decurso e desfecho precisos, de um lado, e do outro lado, muitas outras entidades que aparentemente pertenciam a ele, mas na verdade obedeciam a processos completamente diferente. Ele pode, assim, desemaranhar a verdadeira catatonia, a verdadeira hebefrenia e os processos paranoides que levam à decadência, todos os quais conduziam a um fim catastrófico, de quadros clínicos benignos, os quais eram colocados, forçadamente, naqueles grupos devido a um critério demasiadamente frouxo. Do mesmo modo, as psicoses de curso benigno foram divididas em grupos principais, de quadros constitucionais, e grupos geneticamente ligados a eles, mas que derivavam de disposição mantida em estado latente: estas últimas caracterizadas por ele, provisoriamente, como “psicoses degenerativas” (9). 

Esta mesma linha de pesquisas permitiu a Leonhard fazer uma distinção fundamental dentro do grupo das esquizofrenias: com quadros definidos e fundamento genético – as formas típicas, ulteriormente rebatizadas como “sistemáticas” – e outras multiformes e geneticamente distintas das primeiras: “atípicas” ou “não sistemáticas” (13, 15). É importante notar que Kleist chamou os primeiros grupos – em base ligeiramente diferentes – formas “simples” ou “combinadas”, e as segundas, formas “extensivas”: no primeiro caso, o processo, se confina a um ou mais sistemas dentro da mesma esfera; no segundo caso, invade outra esfera. Embora consideremos as esferas e os sistemas da personalidade acima mencionados de modo algo diferente (24), a patogênese das esquizofrenias – na acepção de Kleist, da mesma maneira que na de Leonhard – pode ser interpretada de modo concordante com esse ponto de vista, como tentamos sintetizar no Quadro III. 

Posteriormente, o A. reformulou a classificação aqui apresentada, considerando o Delírio Circunscrito como relacionado ao sistema afetivo, enquanto a Psicose Progressiva de Influência, devido a participação muito frequente da síndrome de automatismo mental motora, foi realocada para o sistema conativo (Nota de Roberto Fasano Neto)

Não podemos comentar aqui a patogênese proposta no Quadro III, pois isso nos levaria muito longe, em relação ao limite de tempo de que dispomos. Contudo, algumas observações são necessárias. Uma delas, é que várias formas reunidas na mesma chave sob a coluna Quadros Clínicos têm a mesma patogênese no que diz respeito à esfera de personalidade, mas se manifestam em expressão clínica através de sistemas diferentes, dentro de cada esfera: coluna da direita. De outro lado, diferenças essenciais entre formas sistemáticas e não sistemáticas, na acepção de Leonhard: surgem do fato de que, nas primeiras, somente uma esfera é a sede dos distúrbios originários, enquanto duas ou mais esferas são atingidas ao mesmo tempo nas não sistemáticas. Cremos que estas suposições podem ser apoiadas pelas próprias descrições dadas independentemente por Kleist (8,11) e por Leonhard (15). Pode não estar suficientemente claro porque falamos de um significado conativo em quadros intelectuais como o fonêmico, o confabulatório, as esquizofrenias paralógicas, as psicoses de influência, da mesma maneira que na hebefrenia pueril. Para ser breve, os processos fonêmicos ou verbal-alucinatório (Kleist), da mesma maneira que a articulação intra-psíquica dos pensamentos, dependeriam do estímulo indispensável mediado pela conação – na acepção de Comte (4), Audiffrent (2) bem como de McDougall (16); os outros distúrbios refletem patologicamente, a mesma participação de forças conativas para liberar processos do pensamento: como desvio global na fabulação, como sensação de ser dominado ou de estar dominando outros, na psicose de influência, como na mudança da corrente de pensamentos no desvio paralógico; hebefrenia superficial, de outro lado, mostra uma acentuada falta de iniciativa, de acordo com o que Leonhard refere.

Cremos que esta mesma maneira de pensar pode se aplicar a outras condições anormais, mais remotamente relacionadas ao grupo principal de condições endógenas: temos em mente as neuroses e as personalidades psicopáticas. No primeiro grupo, cremos que os processos que desorganizam a personalidade dão origem a quadros diferentes conforme se situem primitivamente na esfera afetiva, conativa ou intelectual. Aqui também deve ser considerado, para a mesma esfera, o período de desenvolvimento da personalidade em que as forças perturbadoras entraram em ação: assim a diferença de nível organizacional explicaria o aparecimento da histeria de ansiedade ou da neurose de ansiedade – na esfera afetiva – ou, o desenvolvimento do caráter histérico ou, de uma neurose obsessiva, dentro da esfera intelectual. Ao mesmo tempo – Quadro IV – as funções de cada esfera podem explicar a semelhança principal entre a histeria e a neurose correspondente. A inferioridade psicopática, como a entendemos, significa um desvio geral situado na esfera afetiva ou conativa da personalidade. Desse modo, nesta base patogênica, restringimos as personalidades psicopáticas a somente cinco grupos, todos eles pertencentes a classificações geralmente aceitas – Quadro V – o nível predominante de desorganização profundo ou instintivo, superior ou relacionado a sentimentos sociais, deveria explicar que um seja anti-social, outro aceito, dentro da esfera afetiva da personalidade; do mesmo modo as diversas inter-relações das forças conativas explicariam a explosividade, instabilidade e o comportamento astênico dentro da estrutura conativa de referência.

Quanto às psicoses degenerativas, descritas por Kleist, podemos ver a semelhança com aquelas relacionadas patogeneticamente com a mesma esfera de personalidade, mesmo quando pertencem a grupos geneticamente diferentes: assim, algumas são multiformes nos quadros, isso é, mais marcadas por uma base heredológica, outras monopolares ou puras no quadro clínico o que evidencia um substrato menos grave – ver o Quadro VI. Todos os quadros de Kleist aqui considerados – que foram considerados de uma maneira um tanto diferente na classificação de Leonhard (15) – têm em comum a natureza de seu decurso: eles têm uma evolução benigna, alguns tendendo a recidivas, mas não deixando traço definitivo

Traço distintivo na esquizofrenia, no sistema de Kleist, da mesma maneira que no de Leonhard, é a tendência para uma evolução progressiva e para a entrada – algumas vezes retardada – na fase de deterioração. Kleist usou um sistema complexo para a classificação das esquizofrenias que ele inicialmente descreveu como entidades independentes – as hebefrenias, as catatonias, as deteriorações paranóides, as esquizofrenias confusionais e as parafrenias. Algumas eram formas puras, combinadas ou simples, algumas eram extensivas: estas são mostradas no Quadro VII, as últimas em parênteses, as mais típicas entre as primeiras grifadas. Leonhard considera as formas não sistemáticas como geneticamente diversas das sistemáticas e, além disso, simplificou a lista de formas individuais (5, 6 ,15). Contudo, desde que ambos esses autores tomam como princípio diretor a patogênese e a concepção dos sistemas cerebrais, suas classificações coincidem em muitos pontos e não há contradição especial entre elas, como podemos ver no Quadro VII.

Aqui deve-se notar que Leonhard não relaciona explicitamente a esquizofrenia paralógica de Kleist à sua própria esquizofasia. Contudo, atribui à desagregação do pensamento incluindo aqueles dinamismos paralógicos – as principais características da esquizofasia. Apresentando este quadro diz Leonhard (15) “Não posso endossar a opinião de que na esquizofasia a palavra é perturbada independentemente dos processos do pensamento com Kraepelin mencionou e também Kleist admitiu. É sempre possível demonstrar um distúrbio do pensamento, até mais acentuado (Pag. 219).

Finalmente, gostaríamos de sublinhar o fato de que ambos os grandes grupos de psicoses endógenas – as esquizofrenias e as psicoses degenerativas – costumam ter muitos caracteres em comum: isto é devido, a nosso ver, ao fato que a mesma esfera de personalidade – ou o mesmo sistema dentro de cada uma – está comprometido no processo mórbido. Este modo, geneticamente eles se diferenciam, mas patogeneticamente eles permanecem semelhantes quando analisados de um modo superficial. 

Talvez as formas não sistemáticas da esquizofrenia, na concepção de Leonhard, possam permanecer como um intermediário entre ambos os grupos. Isto está de acordo com as esmeradas pesquisas genéticas levada a efeito por Leonhard, as quais o autorizam a afirmar: “A semelhança com as psicoses ciclóides vêm mais acentuadamente à luz, do fato de que, para cada uma destas últimas formas curáveis, corresponde uma esquizofrenia não sistemática. Da psicose de êxtase e ansiedade (Angst-Glücks Psychose) vem a ligação com a parafrenia afetiva; da psicose da motilidade, a catatonia periódica; da psicose confusional àquela da esquizofasia” (Pag. 184-15). Tomando, agora, todo o grupo de psicoses degenerativas, e, de outro lado, todo o grupo de esquizofrenias conforme descrito por Kleist e Leonhard, achamos a mesma semelhança nos caracteres principais dos diversos quadros, confrontando grupo com grupo.

A fim de tornar esta comparação mais simples, reunimos tais estados mórbidos no Quadro VIII, onde estão arrumados de acordo com seus grupos clínicos e com os supostos dinamismos patogênicos em ação.

Como pode ser visto no Quadro, a semelhança nos sintomas predominantes de cada psicose de degeneração pode compartilhar com a forma correspondente de esquizofrenia, não implica semelhança das condições clínicas. Ao contrário, se o psiquiatra não se contenta com a atitude superficial e ingênua de descrever o quadro baseado somente em fatos fenomenológicos, elas aparecem como entidades perfeitamente separadas, clinicamente distintas. 

Em aditamento, não é meramente uma questão de minúcias irrelevantes para a construção da conclusão diagnóstica. O prognóstico do desfecho do próprio quadro e para as implicações genéticas, varia de um extremo a outro, no que se refere às psicoses degenerativas e às esquizofrenias.

Daí o cuidado que o psiquiatra deve votar ao diagnóstico diferencial, o qual é imperativo para o próprio tratamento do paciente como um momento da corrente genética que caracterizam as diversas psicoses endógenas: daí o quadro clínico que as distingue.

Nessas condições, a compreensão e a classificação das psicoses deveriam basear-se no dinamismo patogênico e não na descrição clínica. E é por isto que as concepções de Kleist e de Leonhard sobre as psicoses endógenas ultrapassam o valor de quaisquer outras. Kleist figura entre os fundadores da psiquiatria ao criar o grupo das “psicoses degenerativas” e várias psicoses isoladas, bem como ao redefinir, isolar e esclarecer o conjunto das psicoses progressivas que mais tarde redenominou esquizofrenias (quadro III). Tal critério patogenético pode também ser útil para a definição de quadros clínicos mentais que não são psicoses, tais como a histeria, as neuroses em geral, as personalidades psicopáticas (quadro IV e V). 

Neste domínio, haveria a considerar, na patogênese, tanto as esferas e os sistemas mentais quanto o modo pelo qual foram desorganizados, e a fase de desenvolvimento em que se encontravam.

Nas “psicoses degenerativas” de Kleist – sejam clínicas, sejam episódicas (quadro VI) – as esferas e os sistemas são alterados por processos funcionais transitórios devidos a disposições genéticas latentes, ao passo que as esquizofrenias dele e de Leonhard (quadro VII) decorrem em geral de modo progressivo e levam à decadência mental. A própria desordem é de natureza genética, como também o fato de se limitar a determinada esfera psíquica ou de se propagar a mais de uma. 

Os quadros clínicos em que ocorre esta propagação são excepcionais na esquizofrenia ao passo que constituem a regra nas “psicoses degenerativas”, na nossa opinião. Ambos estes grupos mórbidos podem ter sintomas clínicos em comum pelo fato de estar atingindo o mesmo sistema cerebral (Quadro VIII), mas o diagnóstico clínico poderá ser estabelecido corretamente se a patogênese for levada em conta. 

S U M M A R Y

Mental processes imply a harmonious functioning of psychic systems, assembled into larger units, psychic spheres (Table I). Their neurophysiological representatives are brain systems of areas and pathways (Fig. 1-4). “Under functional and/or organic disturbances these systems originate the leading mental symptoms (Table II) characterizing the diverse endogenous psychoses: hence, the latter’s distinctive patterns.” (“Cerebral systems in the pathogenesis of endogenous psychoses”)

Accordingly, understanding and classification of psychoses should rest on the pathogenic dynamisms, not on clinical description. “This is why Kleist’s and Leonhard’s conceptions of the endogenous psychoses surpass any other to exist.” (“Cerebral systems in the pathogenesis of endogenous psychoses. 1974.”) Kleist stands among the founders of psychiatry, by describing the “degeneration psychoses” and many single psychoses, as well as redefining, isolating, and clarifying the progressive ones, later on renamed as schizophrenias (Table III). Such pathogenic criterion may also be useful to define mental conditions other than psychoses, as hysteria, neuroses, and psychopathic inferiority (Tables IV and VI). One should consider here, besides the psychic systems and spheres involved, the way they were caught and the corresponding developmental phase. 

In Kleist’s “degeneration psychoses” cyclic or episodic (Table VI) the systems and spheres are disturbed by functional transient processes due to latent dispositions, while his and Leonhard’s schizophrenias (Table VII) show a rather progressive, deteriorating course. The nature of the disorder is itself genetically determined, as is either its confinement to one sphere or it’s spreading out. 

The spread-out pattern, while exceptional in schizophrenia, represents a rule for the “degeneration psychoses”, in discussant’s mind. Both groups may have symptoms alike by involvement of the same sphere (Table VIII), but proper diagnosis is reached by taking pathogenesis into consideration. 

R E S U M O

Os processos mentais implicam no funcionamento harmônico de sistemas psíquicos, os quais se reúnem em unidades mais amplas, as esferas psíquicas (Quadro I). 

A eles correspondem, no plano neurofisiológico, sistemas cerebrais formados por áreas e fibras que as interligam (fig. 1-4). Em condições patológicas, orgânicas e funcionais, tais sistemas originam os sintomas principais (quadro II) que caracterizam as diversas psicoses endógenas: daí o quadro clínico que as distingue entre si. (“Cerebral systems in the pathogenesis of endogenous psychoses”)

Nessas condições, a compreensão e a classificação das psicoses deveriam basear-se no dinamismo patogênico e não na descrição clínica. E é por isto que as concepções de Kleist e Leonhard sobre as psicoses endógenas ultrapassam o valor de quaisquer outras. Kleist figura entre os fundadores da psiquiatria ao criar o grupo das “psicoses degenerativas” e várias psicoses isoladas, bem como ao redefinir, isolar e esclarecer o conjunto das psicoses progressivas que mais tarde redenominou esquizofrenias (quadro III). Tal critério patogenético pode também ser útil para a definição de quadros clínicos mentais que não são psicoses, tais a histeria, as neuroses em geral, as personalidades psicopáticas (quadro IV e V). Neste domínio, haveria a considerar, na patogênese, tanto as esferas e os sistemas mentais, quanto o modo pelo qual foram desorganizados e a fase do desenvolvimento em que se encontravam.

Nas “psicoses degenerativas” de Kleist – sejam cíclicas, sejam episódicas (quadro V) – as esferas e os sistemas são alterados por processos funcionais transitórios devidos à disposição genéticas latentes, ao passo que as esquizofrenias dele e de Leonhard (quadro VII) decorrem em geral de modo progressivo e levam à decadência mental. (“Cerebral systems in the pathogenesis of endogenous psychoses”) A própria desordem é de natureza genética, como também o fato de se limitar a determinada esfera psíquica ou de se propagar a mais de uma. Os quadros clínicos em que ocorre esta propagação são excepcionais na esquizofrenia ao passo que constituem a regra nas “psicoses degenerativas”, na nossa opinião. Ambos estes grupos mórbidos podem ter sintomas clínicos em comum pelo fato de estar atingindo o mesmo sistema cerebral (quadro VIII), mas o diagnóstico clínico poderá ser estabelecido corretamente se a patogênese for levada em conta. 

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